1 | O tempero da existência
Três expressivos livros de poemas – Alumbramos
(2012), Livro de possuídos (2002) e Livro de auras (1994) – e o esplendor
de uma poesia intrigante pela serenidade com que mergulha na reflexão do mundo que
a habita, íntima e exteriormente. Maria Lúcia Dal Farra (1944) é uma sábia ausente
da cena literária, sem que isto implique no desconhecimento de seus artifícios.
Vivendo há anos em Sergipe, guiada por uma intensa sintonia com o cotidiano, seu
espírito resplende aquele ensinamento alquímico evocado por Juan-Eduardo Cirlot,
de que em todo labor, mesmo no mais
humilde, as virtudes se exercitam, o ânimo se tempera, o ser evolui. Temperados
justamente pela grandeza de sua humildade, nós nos sentamos para uma deliciosa conversa.
FM
| Comecemos pelo alumbramento. Com quem dialoga a poesia
de Maria Lúcia Dal Farra? Quais as fontes de teu alumbramento?
MLDF
| Essa história das luzes é uma mania antiga da minha poesia (sou leitora de Bandeira
desde os tenros anos) e ao mesmo tempo uma tortura. Pra começar pelos fundamentos,
ou seja, pelo meu corpo, tenho uma cegueira periódica que ocorre a partir de um
ponto luminoso que se instaura no meu campo de visão sem mais nem menos, como se
uma auréola muito poderosa crescesse da cabeça de uma Madonna medieval que se manifestasse
na minha frente e se expandisse por toda a minha órbita visual, preenchendo-a. Fico
então sem enxergar nada, a não ser essa potente luz (por muitos e longos minutos)
até que ela atravesse de lado a lado a abóbada e cumpra o seu percurso. Como vê,
encegueiramentos e alumbramentos são coisas do arco-da-velha na minha vida primária.
Mas
não foi por isso que o meu primeiro volume de poemas chamou-se Livro de auras
– se bem que entre corpo e espírito o elo seja tão cerrado que tudo se passe
sem o nosso entendimento. Leitora de Walter Benjamin há tempos, eu buscava deliberada
e desesperadamente (na década de 1990) lutar contra a histórica perda da aura (das
coisas e do poeta) para encetar uma comunicação com o leitor que nos fizesse, a
mim e a ele, reaver (para comungar) uma unicidade impossível. Era um esforço louco,
baldado e urgente, num tempo em que o mundo que conhecia desabava: de um lado porque
eu sofrera o mais duro golpe da existência; de outro, porque todos entrávamos na
tal da pós-modernidade líquida e vertiginosa onde tudo já é outra coisa.
É
verdade que isso vinha acontecendo paulatinamente na minha história subterrânea,
porque antes de publicar tão tarde esse livro inaugural (aos 50 anos, em 1994),
eu escrevera (desde muito cedo e ao longo da minha vida) sete outros que restavam
e restam mudos e surdos – visto que não tocados por ninguém. Na carência de leitor,
a minha poesia solitária parecia prestes a desembocar num ilegível absoluto, e foi
assim que resolvi tomar, contra toda a evidência, aquele caminho para tentar falar
com alguém. Abandonei tudo o que havia escrito até então e me botei na empreitada
de escrever um novo livro (publicável) e que, em princípio, me salvaria. (Quem,
se eu gritar, me atenderia nesse turbilhão de vozes?) Não me salvei e nem a ninguém;
minha aura espatifou-se quando tentei levitar como os anjos de Rilke. Mas o esforço
valeu.
A
experiência de estraçalhamento me mostrou que talvez fosse mais seguro (pelo menos
para ter chão aonde pisar) conversar mais cerradamente com os meus pares: os poetas
mortos. Eles sempre foram os meus interlocutores, as obras com quem falo. De resto,
para além deles, dirijo-me desde então a um elenco de pessoas com quem suponho estar
entrando em diálogo (repare como os meus poemas são repletos de dedicatórias); e,
depois, a toda a gente que bote os olhos em cima da minha escrita. O fato é que
não tenho ilusões: possuo pouquíssimos leitores vivos, e isso é bom porque escrevo
mesmo para alguns, sobretudo hoje que a medida é a massa.
A
fonte do meu alumbramento é, pois, o outro; aquilo que o outro me traz de luz para
qualquer tipo de conhecimento que possa realizar na escrita de um poema, quando
tento desvendá-lo ou trazê-lo para mim.
FM
| Há uma distinção possível entre o poeta e o poema?
MLDF
| Transforma-se o amador na coisa amada…
FM
| Eu gostaria de me referir ao universo da crítica de
poesia no Brasil, porém este universo é inexistente. Em seu lugar, o que temos,
e muito ocasionalmente, são anotações dispersas, de cunho jornalístico, que tocam
mais o pitoresco do que propriamente o essencial sempre que remetem a algum poeta.
O ambiente de pesquisa acadêmica é igualmente desalentador. Evidente que não escrevemos
para atender a essas vertentes. No entanto, cabe indagar: considerando os personagens
envolvidos, quem não está desempenhando bem o seu papel?
MLDF
| De verdade mesmo escrevemos para ninguém, pelo menos para ninguém que nos ouça
ou que nos leia – escrevemos sempre para quem ali não está e que, se estivesse,
não se encontraria onde supomos que pudesse estar. A poesia nasce desse desencontro
jamais resolvido e essa é a maneira de ela se projetar para adiante – porque procura
aquele que ainda não há. A rigor, portanto, era bom que o crítico ocupasse esse
lugar des-sabido e errático (pelo menos por alguns instantes) nem que fosse dentro
da máscara de um “hypocrite lecteur” baudelaireano (que, aliás, nesta versão da
modernidade, data pelo menos de 1848 – donde se vê que o espaço vazio é antigo).
Mas
não dá para falar, a não ser raramente, em existência de crítica de poesia no nosso
país, e desde há largos anos. Para referir minha experiência própria, desde muito
jovem eu lia aquilo que se produzia no Brasil (e também lá fora) através do Suplemento
Literário de Minas e do Estadão – mas esse mundo já acabou. Será que
em algum lugar da internet isso ainda se asila? De que maneira? Vejo (algumas vezes)
que blogueiros se conectam (intuitivamente, suponho) em algum poema que lhes cai
nas mãos, e passam a exibi-lo e a dividi-lo com quem os visita. Creio que não saibam
bem do que se trata. São (digamos) tocados por seu súbito raio de inusitado e o
divulgam porque aquilo se afina de alguma maneira com eles, graças a esse raspão
hipnótico com que o poema os fende. Quero crer (que mesmo assim minimamente) o senso
crítico desse leitor transparece esbatido aí, mercê desse insight ocasional
que fica embutido na sua escolha (implicitado nela), o que já é, nestes tempos de
calamidade, pra lá de bom. Talvez seja por aí que a poesia faça o seu passe e avance
para outro e outro leitor até que encontre aquele que a invente. Aliás, a minha
poesia tem tido a alegria de conhecer alguns desses passageiros de lumes, sobretudo
no meio acadêmico e junto a meus pares.
Acho,
por outro lado, que a gente poderia, se quisesse, escrever aquilo que o mercado
pede (tratar a obra como mercadoria) e então faríamos o maior sucesso, teríamos
“críticas” condizentes e ganharíamos dinheiro. Mas pra quê? Para que andar na mão
se a gente pode obter um prazer desmesurado seguindo em contrapelo? Para que ler
Elisa Lucinda se se pode ler Cecília Meireles? A poesia só existe quando se coloca
contra a linguagem que vigora, cavando frestas por onde significar outra coisa que
ela mesma ainda nem sabe o que é. E só há um jeito de viver isso: no impasse. Porque
não é só uma questão de contenda sempre armada entre o poema e o seu leitor. Mas
de uma luta engalfinhada entre o que a poesia busca produzir e aquilo que suas leis
de produção lhe permitem ou não ultrapassar enquanto fatores constitutivos da comunidade
da qual ela emerge e com quem dialoga. Muito embora em trânsito permanente, esse
mecanismo de mercado só sossega se domá-la, ávido por abocanhá-la como sua presa,
pasteurizando-a em definitivo. Fugir desse sequestro, enfrentá-lo no texto, situa
a poesia nesse impasse de que falo, pois que o ato poético, na impossibilidade do
heroísmo que redundaria inócuo, não pode ceder à contraparte cínica contida no desejo
de se realizar.
O
fato é que, assim, o ato poético parece fadado ao suicídio. Porque manter-se nesse
limiar beligerante e perigoso, em estado de periclitância entre um e outro valor,
em equilíbrio para a criação de uma linguagem que, obrigada a fazer concessões,
não as autentica – é o que parece ser o impossível e legítimo ofício do poeta contemporâneo.
E o que solicita dele uma ação contraditória, uma absurda práxis que só pode exercer-se
em oximoro.
FM
| O Brasil sempre foi muito acanhado ou mesmo ausente
em relação a um tipo de evento literário que surge em nosso continente nos anos
1960, os encontros internacionais de poetas. A legitimidade desses eventos expressou
sempre uma forma de resistência. Quando surgem no Brasil tratam de atrelar-se à
outra margem da tradição, adotando as perspectivas de mercado. O que era para ser
característica de uma reação, entre nossos escritores e intelectuais, se torna a
adoção de um festejo de mercado. É outro evento, muito revelador de uma cultura,
não resta dúvida. E o mecanismo adotado, muito feliz, pouco a pouco está banindo
os poetas.
MLDF
| Tenho participado dos festivais de poesia fora do Brasil, e são algo que nunca
vira antes! Acorrem muitíssimos interessados que vêm para te ouvir nas praças, nas
ruas, no carnaval, nas esquinas, nos mercados, nas universidades, enfim, em todo
o canto, e pessoas que também querem dizer poemas, próprios ou alheios, e que participam
do microfone aberto nas praças ao longo do evento. Não se trata de uma vitrine aonde
a poesia de cada um é exposta, mas de uma autêntica confraternização, pois que nos
ouvimos uns aos outros sem cessar, acompanhamos o trabalho alheio, papeamos, aprendemos
às pampas e nos damos conta da força que temos. Somos muitos a resistir a quaisquer
intempéries políticas, e essa aliança é fundamental e ritualiza a razão da nossa
existência.
Só
vi isso acontecer aqui no Brasil uma única vez, há muitos anos: foi no Festival
de Poesia de Goiás Velho, e talvez tenha sido o derradeiro. Sim, a participação
também era gratuita, como acontecia na Nicarágua, no México e no Peru. Estive neste
ano em Paraty e reparei que muito embora tudo girasse em torno do Drummond havia
apenas uma ou outra mesa de poetas, e uma delas bem localizada, aliás. A organização
era perfeita e tudo era um espetáculo – de outra natureza, é verdade. Não que o
homenageado não fosse lido inúmeras vezes nas sessões, discutido e priorizado –
mas a poesia, tal como a conheço desses festivais além do Brasil, foi a grande ausente.
FM
| A prosa e o verso. A distinção entre ambos era quase
da mesma ordem do vertical e horizontal. Distinção irrefletida, pois os dois ambientes,
na física e na literatura, podem remeter a seu inverso ou, em adorável expansão,
à soma de suas matrizes, incluindo aí as invisíveis e rejeitadas. A criação determina
a forma e não o contrário.
MLDF
| Bem, essa coisa do vertical e do horizontal pode ter alguma serventia como camisa-de-força
que te obriga a te virar dentro de um espaço literário fechado como uma urna, a
fim de te desafiar para ver do que você é capaz. Estou pensando numa forma fixa,
no soneto. De um lado, ele lembra até uma prática à Poe, das mais tenebrosas, pois
que é mais ou menos como estar sendo emparedado vivo; ou até à Florbela – os limites
do claustro. Mas também remete a Sade, à prática masoquista das mais eficientes,
já que desemboca numa tortura benfazeja. Ou então a um exercício de desporto, que
é o que ocorre com o soneto estandardizado quando é feito fora do Classicismo. Você
tem aquela medida imexível de decassílabos e tem de verrumar no mais longínquo do
seu ser para conseguir expressar o que pretende dentro de um espartilho que não
te permite qualquer movimento. E também tem isso: se descobrir (dentro dessa forma
pré-moldada) do que a sua poesia é capaz, é já um baita avanço. Dialogar com essa
forma para questioná-la no centro da sua própria medida é sempre muito instigante,
porque te permite derretê-la dentro dela; encontrar enjambements interessantíssimos
e acentuar o decassílabo de maneira enviesada, por exemplo. Aliás, pra que ser livre
quando se pode ser tão vigorosamente aprisionado? E, afinal, não é assim que a tradição
literária funciona para cada um de nós?! Para estar ali como um desafio a se vencer
de dentro dela?
Sobre
a questão que me propõe tenho algo curioso a relatar. No tal Livro de auras
há uma secção chamada “lição de casa”, onde eu buscava narrar as histórias familiares
ou andar à volta delas. De todas as três partes, esse era o lugar que eu escolhera
para comunicar alguma coisa ao leitor, no sentido de que a mensagem a passar prevalecia
sobre o próprio fazer poético. E, de fato: escrevi 33 poemas sob tal tônica. Muito
bem. Passados tempos – exatamente onze anos – publiquei o Inquilina do intervalo.
Neste, retomava as mesmas histórias, só que desta feita em prosa. Era como se eu
atestasse, assim, a insuficiência da poesia para tal fim. Ou, então, que o poder
enigmático e transcendente desse real histórico ultrapassasse em muito a medida
que eu lhe dera, e fosse necessário completar o meu “depoimento” por meio de um
“outro” gênero. Você me entende? No caso, não sei se a necessidade era de facetar,
de criar novos pontos-de-vista sobre cada enredo anterior (a fim de que eu os compreendesse
melhor – e isso pressupõe um exercício outro, o de psicanálise), ou se eu não escolhera
com acerto o meio condizente para tal conteúdo. Ou seja: era como se eu tivesse
forçado a forma para que ela aceitasse aquilo que lhe era alheio. A poesia tem disso:
ela não aceita ser “usada” – e parece que foi o que (bem ou mal) acabei por fazer,
talvez porque exorbitei, talvez porque a coisa não fosse do âmbito do poético, mas
(como suponho agora) do território do privado (mas o que não é?!), e a forma tivesse
se insurgido contra mim… Não sei.
Mas
(ao fim e ao cabo), como a gente sempre escreve sobre as mesmas coisas, ainda não
sei se parei por ali ou se continuarei a tratar desses mesmos assuntos de modo a
delucidar o que se passa. Uma coisa é certa – isso é uma fonte inefável. Ou será
que é o nó que há entre prosa e verso que explicaria essa mais recente tentativa?
Não tenho ainda uma posição e continuo a pensar no caso que estou dividindo com
você.
MLDF
| A poesia, independente da forma que buscamos ou encontramos para o poema, agrega
um componente inesperado à relação, por mais que acreditemos, ao rever dado tema,
que o mesmo impõe certa repetição. Evidente que há poetas que se repetem até mesmo
quando tratam de assuntos distintos, uma espécie de cristalização do discurso que
não é o mesmo que a definição de um estilo. Mas não estamos tratando dessas almas
reiterativas. A linguagem poética, como qualquer outra, possui seus mecanismos,
truques, ardis, e a experiência naturalmente nos leva a alcançar novos tons, variações
inúmeras, a partir das mesmas matrizes. A mim, por exemplo, muito me atrai mesclar
registros dentro de um mesmo poema. O dilema maior que encontro é essa deformação
maniqueísta que se estabeleceu entre nós, digo, na lírica brasileira, limitando
a criação a dois padrões opostos e desconexos entre si: a escrita a seco ou a inspirada.
E ainda pior: tratando de dar à primeira uma primazia sobre a segunda. Se o engasgo
perdura em aspecto tão irrisório, ainda hoje debatido – quando alguma forma de debate
se verifica – como evidência relevante na criação, o
que
esperar da compreensão dos vasos comunicantes entre prosa e verso? Recordo aqui,
trazendo mais lenha para nossa adorável fogueira, uma observação de Antonin Artaud,
quando se referia a Diego Rivera, mas dele dizendo algo que podemos trazer para
o ambiente poético: “Quando não se tem o sentimento de uma força transcendente –
na arte de pintar como também toda arte –, isto resulta em uma espécie de bloqueio
da interpretação, em uma opacidade interior das formas”.
MLDF
| Você disse direitinho, Floriano. E adorei quando sublinha um dos nossos ocos atuais,
pois que hoje nem mesmo “alguma forma de debate se verifica”. Acalentando, pois,
mais um pouco a “nossa adorável fogueira”, acho que depois da alforria que o surrealismo
nos deu, quando tudo indicava que a gente aqui na terrinha tinha ficado absolutamente
livre para fazer entre as palavras o amor que elas bem quisessem manter entre si
– eis que carnavalizamos uma luta corporal entre Eliot e Breton. Pois não é que
vem essa história da primazia da poesia “objetiva” e cerebral sobre a inspirada?
E, o que é pior, vem, como você bem repara, separando uma da outra, como se ambas
fossem inconciliáveis e de mal, de cara virada uma para a outra. Não existe isso!
Há um laço incessante entre ambas, algo entranhado e recíproco, pois que uma depende
da outra, e a decisão de prevalência de uma sobre outra é apenas do específico poema
em pauta. Eu vejo (pra falar de um dos chamados “representantes” de uma dessas alas)
muitíssimo de inspiração em João Cabral, e mesmo de surrealismo – quem é que não
vê? “Um cão vivo dentro do bolso”, um “cão sem plumas/ é quando uma árvore sem voz”,
uma “úmida gengiva de espada”, “os gestos defuntos da lama” – isto só para lembrar
o pra lá de sabido, o que está mais à mão na minha memória.
Até
o Valéry, que é um dos padrinhos da poesia “pura”, abre brechas para a inspiração,
quando trata do fazer poético, e isso já na sua célebre aula inaugural no College
de France, em 1937. Quando aí ele refere o litígio total entre vários registros
que são chamados a atuar simultaneamente na produção poética (por serem justo muito
diversos entre si), o que nos pede, portanto, um rol de acomodações muito diferenciadas
e sempre incompatíveis uma com a outra (domínio que, segundo ele, é apanágio do
faber poeta), Valéry não deixa de sublinhar que (malgrado todo o controle
que possamos manter sobre tais materiais) o poema, como todo ato do espírito, vem
sempre acompanhado de “uma indeterminação mais ou menos sensível”, de um “indefinível”.
Ora, qual é o nome desse fenômeno não compatível e que extrapola a nossa “destreza”
(ou seja, como você diz, Floriano, os nossos “mecanismos, truques, ardis”), senão
inspiração, senão acaso? Creio, por isso mesmo, que a palavra que designa “le hasard”
do “coup de dés” do Mallarmé não seja outra que não essa. (Sobre o Valéry, não consigo
deixar de comentar o meu constrangimento com o que me deparei outro dia, quando
compulsava, na Biblioteca Nacional de Lisboa, um material sobre a ditadura salazarista.
Eis senão quando topo com um livro sobre o Salazar, escrito por António Ferro que,
além de ter sido contemporâneo da Florbela e diretor do terceiro número do Orpheu
(que nunca veio à luz), foi também Secretário da Propaganda Nacional do Salazar.
E quem faz a apresentação da dita obra? Nada mais nada menos que Paul Valéry!)
Retomemos,
pois, a nossa conversa ao pé do fogo, Floriano. E convenhamos: aquilo que ocorre
fortuitamente modificando a direção do que escrevíamos (quer estejamos emborcados
na consciência super-desperta ou não) – que nome tem?! O Pessoa chama, a esse indefinível
(creio que em 1934), de o “Homem de Porlock”, e isso a propósito do relato de Coleridge
sobre a escrita do Kubla Kahn. O poema, nas mãos do romântico inglês, caminhava
de um jeito, quando é interrompido pela chegada de um sujeito à sua casa (que vinha
da aldeia vizinha), com um recado não sei das quantas. Esta suspensão da escrita
muda em tudo o feitio do poema e o Pessoa passa a denominar a esse processo de desvio
das intenções originais como “O homem de Porlock”. Quem é esse homem que vem de
Porlock, senão o representante das musas? Pulando muitas etapas, mas só para constatar,
vê-se, afinal, que o “je est un autre” rimbaudiano (que desemboca no “vidente”)
é parente desde sempre desse “Homem” – não te parece?
FM
| Evidente, pertence ao mesmo capítulo da alteridade.
Interessante que menciones o António Ferro (1895-1956), um poeta português afeito
ao aforismo. Em um ensaio meu sobre Carlos Drummond de Andrade, observo o impacto
que este poeta provocou no brasileiro, quando se apresentou, em 1923, no Teatro
Municipal, tocando bumbo e disparando sua propaganda poética: “A minha época sou
eu”. Agora, além do mundo dos livros, qual outro ambiente artístico foi importante
para a tua poesia?
MLDF
| O da música, das telas, da escultura, da dança, do teatro, do cinema, sem falar
de um outro universo: o culturalmente feminino. Aquele que compreende a domesticidade,
a casa e seus habitantes, os bichinhos todos de estimação, a culinária, a horta,
o pomar, a mobília, os trabalhos manuais etc., etc. – enfim, tudo o que não tem
importância canônica e que nunca foi alçado a objeto de atenção poética, e que,
de certa maneira, pertence a uma jurisdição próxima (muito embora opaca) da “áurea
mediocridade”.
Sou
absolutamente sensível a toda a arte e fico arrebatada por ela, me deixando carregar
por sua obnubilação, sem nunca saber do que se trata. Vou indo, e só, muito depois,
é que me parece entender o que se passou e, geralmente, essa revelação ocorre dentro
da feitura de um poema, como algo que me acode e que se desvela de repente. Daí
reconheço o que vi e o que experimentei então, mas já agora de uma maneira outra,
porque me surge inopinadamente como um puro instante fortuito de epifania – e não
será isso a tal musa de que falávamos?!
Eu
sempre estudei música, desde os 5 anos de idade, e, além de pianista, eu queria
muito ser bailarina. Mas na minha infância não pude porque havia um preconceito
danado a respeito dos professores: meu pai não deixou. Eu também queria ser cantora
popular, mas de novo o preconceito não deixou. Vale a pena eu te contar, Floriano.
Tinha 12 anos (mas eu afirmei ter 14, porque naquela altura era interdito para menores
dessa idade) quando meu pai me levou para o programa de calouros do Ari Barroso,
na TV Tupi da Rua das Palmeiras, em Sampa. O compositor gostou muito da minha voz
e da minha conversa (ele entrevistava o candidato, queria saber como é que a gente
era), e quis falar, depois do programa, com o meu pai, a quem praticamente exigiu
que não me permitisse fazer “vida artística” porque aquilo não era coisa para “menina
de família”. Contou vários casos para o meu pai, diante de mim, com certos circunlóquios
e metáforas que traduzi razoavelmente bem. E, pronto, lá se foi mais uma vontade
minha. Nessa altura eu fazia conservatório e tinha aulas com o José Eduardo Martins,
o irmão do João Carlos (que andava pelo mundo em concertos). Nunca me esqueço: a
primeira vez que vi o João Carlos Martins, fiquei tão nervosa que, na conversa,
perguntei-lhe se algum dia ele iria dar aulas no “reservatório”… Mas já nesta altura
a coisa complicava porque eu era várias: tinha descoberto a escrita da poesia e
me dedicava a isso; queria ser concertista e também cantora (não mais de rádio!),
e começava a estudar canto lírico com o Miguel Archerons (regente do Coral Paulistano
do Teatro Municipal de SP). Continuei esses estudos, formei-me em piano, executava
várias árias como soprano dramático, era solista, mas a dubiedade música/poesia
ficava a cada vez mais notória. Imagine que, sendo pianista (na formatura tocaria
o Concerto no. 1 de Beethoven, com a Orquestra do Teatro Municipal de São
Paulo, sob a batuta do Tullio Colacioppo), compus, sob música do Maestro Miguel
Izzo, a letra do hino do conservatório… E foi depois disso que passei a ter aulas
com o Maestro Souza Lima (na casa de quem conheci de passagem a Tarsila, imagine!)
e tudo parecia se encaminhar para uma bolsa de estudos fora do país e para uma carreira
afim. Todavia, foi aí que entrou areia no pedaço e minha vida mudou de rumo. Eu
vinha, há tempos, tendo aulas simultâneas com o Robert (Adolphe Léon Sylvain) Dierckx,
um pianista dos mais extraordinários, um belga que tinha sido aluno de um aluno
do Liszt (Arthur De Greef), escritor que recebera a Grande Croix de la Reigne Victoire,
por sua atuação como paraquedista do Exército Inglês durante a Segunda Grande Guerra.
O Dierckx era uma pessoa fascinante: improvisava ao piano e em seguida escrevia
o que havia criado em música; em seguida, lia o que havia escrito e tocava aquilo,
e, assim, permanentemente num diálogo incessante entre música e poesia, poesia e
música. Anarquista, intelectual, grande leitor dos surrealistas, admirador do Magritte
e do Delvaux (ele tinha um Picasso que ficava dependurado atrás da porta da toilette,
diante do vaso sanitário, como se nada fosse…), questionador de absolutamente tudo,
Dierckx não deixava pedra sobre pedra, e essa sua maneira de ser marcou-me por inteiro.
Eu me lembro que, contra toda a evidência (e numa metodologia de vanguarda), ele
botava uma partitura diante dos nossos olhos e pedia para que tocássemos o que ali
não estava, ou seja, a armação harmônica que subjazia à peça, para, por fim, tocar
a partitura que, assim, acaba por tornar-se consabida: era por dentro que a gente
estudava a música (e a poesia e a vida). O fato de tê-lo frequentado e de ter-me
decidido a fazer o curso de Letras (e aí topo com outro sujeito impossível, o José
João Cury, que foi meu amado professor; e com o queridíssimo Antonio Candido, com
Jorge de Sena e Adolfo Casais Monteiro – apenas!) foi me puxando muito mais para
a literatura que para o piano e o canto. A ausência real dessa querida dupla inquieta
na minha vida de hoje é um baita buraco (claro que toco e canto, mas agora em surdina).
Todavia, quero crer que arrumei um jeito de fundi-la na minha poesia onde, de alguma
maneira, fantasio que tanto o piano quanto o canto sobrevivem.
Há
coisa de alguns anos atrás, um velho conhecido do meu pai chamou-me pra Botucatu
para que gravasse as canções (sem partitura) do Angelino de Oliveira (autor de Tristeza
do Jeca). Tenho que dizer que meu pai era muito amigo do Angelino e que eu,
desde muito pequena, cantava com meu pai as composições dele, acompanhada por ele
e por Zé Maria, seu parceiro. Ocorre que o Angelino era um boêmio por excelência
(tocara com Catulo) e, muito embora gravado por Gastão Formenti e Paraguassu (na
década de quarenta), nunca se preocupou em registrar patentes e daí por diante.
Assim, quando ele faleceu em 1964, meu pai conseguiu publicar (ao menos) um libreto
com as letras de suas melodias, visto que aquilo tudo ia se perder; depois, quando
meu pai faleceu, eu e meu primo Zebba Dal Farra (grande violão), começamos (como
herdeiros de oitiva de suas composições) a pôr em pauta a obra dele. Mas nessa altura
vim para o Sergipe e interrompemos o trabalho, que ia ficar assim mesmo, a ver navios.
Mas foi aí que, por esse golpe do destino, acabamos nós dois gravando, num final
de semana, tudo aquilo que sabíamos do Angelino (em dois CDs, fora do comércio),
que cumprem o papel a que nos destinamos: o de produzir um documento. Fiquei de
bem com meu pai e com o Angelino, finalmente. Posso morrer sossegada porque aquilo
está preservado. Creio que também essa sintonia subjaz à minha poesia.
FM | Como saltas de um poema a outro, querida?
MLDF
| Às vezes, Floriano, tomo um poema alheio e fico tentando responder aquilo que,
segundo creio, ele pergunta. E isso que começa como um exercício de adivinhação
vai caminhando e se torna independente daquilo que o suscitou. Vira, portanto, um
poema meu que vasculha outros cantos daquilo que no outro encontrei, e que acaba
por perder esse cordão umbilical, desaguando em outras vertentes que, às vezes,
vou procurar elucidar pra mim mesma em outro e outro poema que faço a partir do
que não aconteceu nesse.
Houve
uma época em que eu resolvi invocar as musas, ainda que artificialmente. Decidi
que iria escrever um poema por dia, custasse o que custasse. E fiz isso durante
uns três meses seguidos. As criaturas resistiam muito, mas eu teimava e as sacrificava,
se fosse o caso, até que saísse da minha ousadia alguma coisa. Queria me disciplinar,
era isso. Queria recuperar uma familiaridade com a poesia que me parecia estar naquele
momento meio esbatida e adormecida. E então eu ouvia uma música, via uma tela, abria
uma página qualquer – e me obrigava a produzir um poema. Claro, deu isso em muitas
drogas, mas, de repente, havia também um raro oásis, uma pequena coisa que me fazia
bem.
Mas
há o caso de poemas que me acorreram, que baixaram em mim e que precisei escrever
sem determinação alguma. Por aí entendo muito bem aquelas histórias do Pessoa sobre
o nascimento súbito dos heterônimos, de pé, escrevendo como um louco em cima daquela
cômoda. E, claro, os jogos surrealistas todos. Lembro-me muito bem de um poema que
“escrevi” (na verdade, apenas registrei) e que vinha absolutamente pronto. Depois
de feito, ele me pareceu ser do Pessoa, e começava assim: “Há um enorme espaço no
meu passo/ entre o que sou e o que passo a ser” e daí por diante. Nunca o publiquei,
porque creio que foi escrito por interposta pessoa. Todavia, há um outro, cuja memória
do registro trago muito viva em mim, pois que o escrevi aos prantos, e que é sobre
a morte do meu pai. Esse me perturba à beça até hoje, a cada vez que o leio ou me
lembro dele, porque não me parece um poema, mas apenas o testemunho de um fato,
tal e qual, com detalhes que eu não conhecia e que só depois me contaram. E isso
permanece espantoso para mim.
Então
é assim, Floriano: escrever poesia é, no mínimo, uma proeza que nos bota em sintonia
fina e perfeita com o ignoto mundo, num diapasão (surpreendente) com ondas paralelas
e transversais e simultâneas e interseccionadas que pairam por aí e que a escrita
capta e identifica. Vidência? Mediunidade? Sublimidade? Visita ao baixo mundo? Existência
pra além do planeta? Ação, recuperação, futuração da realidade? Mergulho na miséria
total? Visita ao inferno? Vida.
FM
| Essencialmente vida. O Fellini, certa vez comentando
sobre o sentido histórico da criação, dizia que se tratava de uma perspectiva que
não lhe agradava, resumindo de forma brilhante: “Olho para o cotidiano, enquanto
estou vivo. O resto é especulação.” Mas quero aqui recordar o Georges Bataille:
“Se rio agora, posso pagar por esse riso o preço de dores excessivas. Posso rir
do fundo de uma miséria infinita. Posso rir igualmente bem mantido pela sorte.”
Eu não creio em arte sem riso. Não creio na própria existência humana sem a capacidade
de rir. O riso mata a moral em seu sentido mais patético, o do preconceito. E não
há dano pior à espécie humana que o preconceito em relação ao riso. E nós, Maria
Lúcia, que nos rimos tanto, de que nos rimos?
MLDF
| Penso, querido, que a gente ri para abrir aquilo que está fechado, para procurar
nele um interstício por onde vê-lo com outra cara. O riso amplia a coisa, lhe dá
novos matizes, mais substratos, atravessa-lhe a carne, descobre nela um foco de
outros transtornos, um enviesamento, um jeito de desventrá-lo para reconstruí-lo
melhor do que se apresentava. Na verdade, o riso rearranja a coisa, torna-a mais
distante da dor que ela causa – a dor mata. Não confundir com alienação. O riso
abre brechas, arcoiriza o objeto, arruma nele um leque de outras garantias e, graças
a Deus, nos deixa de fora para observá-lo melhor a fim de que a gente possa sanar
em nós o que incomoda e maltrata. O riso dá-nos uma sobrevida.
Floriano,
em meio a tantas falcatruas, imposturas, delitos contra a inteligência, injustiças,
arrogâncias – o que seria de nós, neste país, sem o riso?!
FM
| Aqui eu digo como o Fellini: esta é uma perspectiva
que não me agrada. Assim posto, o riso parece um recurso catártico dos brasileiros
suportarem a si mesmos. Esquecemos algo?
MLDF
| Certamente. Daqui a pouquinho vamos nos recordar do tanto que esquecemos. Já agora
mesmo me lembro que na minha vida de música/poesia conheci um violonista como nenhum:
chamava-se Pedro Campos de Paula, piauiense, menino-prodígio desses que dão concerto
aos 4 anos (com essa idade se apresentara no Teatro Amazonas) e arrebatam plateias.
Além disso, ele era um talentosíssimo acompanhante que pulsava com o cantor, que
improvisava enquanto a gente entoava, de modo que tudo se seguia de maneira vertiginosa
e engendrada, num entendimento desconcertante. No tempo em que morou na Bahia, ele
foi um dos primeiros acompanhantes da Maria Bethania. Quando o encontrei em Botucatu,
para onde foi morar com a família na década de 1960, acabamos gravando um LP de
33 rotações (você sabe o que é isso, Floriano?!), mas só com composições de Vinicius
e Jobim, Mário de Andrade, Jaime Ovalle, Hekel Tavares, Ari Barroso, Dolores Duran,
Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, do Francisco Alves (sobretudo uma valsa que diz
“Coração, por que preferes/ amar a todas as mulheres/ no amor de uma só mulher?”).
Esse violeiro era do tipo que não existe mais: você cantava num tom, mas não estava
lá muito bom; precisava subir ou descer algo como um meio tom, coisa sempre complicada
para quem toca. Mas com Pedro não tinha problema. Ele fazia esse milagre de transposição
com os dedos (e sem, claro, a ajuda daquele objeto safado que prende as cordas para
tal efeito) e já ia tocando a introdução no tom que fosse, espécie de anjo que nos
fazia levitar. A ele, ao Dierckx, ao querido poeta Carlos de Oliveira (e à minha
amada comadre Lúcia Wisnik) dediquei, em 1986, o meu Alquimia da linguagem,
pois que os perdi a todos de uma vez só: baque bravo! Mas me lembrei de te contar
do Pedro porque foi ele quem conseguiu publicar, de maneira inaugural, um poema
meu. Foi no Jornal da Bahia no começo de 1960. Agora, a coisa incrível –
e a poesia (só para completar o nosso pensamento anterior) é, como vê, Floriano,
também o lugar das imantações. Conheci no Rio Grande do Norte, em 1999, um escritor
que passei a admirar pela sabedoria e dignidade, por seu caráter irrepreensível,
o Oswaldo Lamartine, grande conhecedor das coisas da terra (desde a maneira de identificar
uma pegada até a arte dos ferros de gado, passando pelo tratamento das armas de
pólvora e das brancas, e de muitas outras miudezas caídas em desuso). Ele tinha
um sobrinho que era casado com uma médica, um pouco mais velha que eu, que conheci
e passei a frequentar. E qual não é o espanto quando me dei conta de que ela conservava,
nos seus guardados e como algo de muita estimação, o tal poema que o Pedro publicou
na Bahia? A poesia tem as suas prestidigitações, não é, Floriano?
2 | Sinais
de fumaça do Surrealismo
MLDF
| Aprendi com o Surrealismo a ver tudo pela primeira vez, de modo inaugural,
mesmo que o objeto em causa tenha sido capturado pelo meu verbo antes, uma centena
de vezes. Ele me ensinou (o Surrealismo não concordaria com esse verbo ensinar!) quase tudo o que sei. Que desmontar
o que vejo, quaisquer coisas que sejam, e procurar nelas outras ilações, as suas
afinidades secretas, o seu magnetismo
universal, os seus vasos comunicantes;
que reconstituir esse objeto, essa palavra, da maneira como eles nunca se mostrariam
a mim – é a única forma de conhecê-los e ao real e a mim própria. Que situá-los
em outra dimensão que a deles, que botá-los em contiguidade com outros que culturalmente
não lhe dizem (até então) respeito – é modo de inventá-los de novo e de novo, de
reconhecê-los através de outra natureza. Que esperar pacientemente que eles se mostrem
a mim e que comecem a manter algum tipo de comunicação comigo – é deixá-los emprenharem-se
de si mesmos e confessarem-me a que vieram, transfigurando o mundo.
O ideal estético
do Surrealismo é, creio firmemente, um humanismo: ele nos incita a reatarmos, à
nossa existência, as nossas forças vitais, tornando o universo habitável – muito
diverso daquele que hoje é o nosso.
FM
| As clássicas expulsões de surrealistas levadas a termo na formação original
parisiense foram de natureza comportamental. A má qualidade de uma obra jamais foi
aspecto que chegou a julgamento. Mesmo hoje, embora as expulsões não sejam mais
um fato corrente, surrealistas quando comentam seus pares, o fazem considerando
simpatias e adesões, o que acentua a existência de uma confraria. Até que ponto
esse clube de amigos distorce o entendimento que se poderia ter dessa mais relevante
revolução cultural do século XX?
MLDF
| Esse clube parece desvirtuá-lo na medida em que impõe à desmesura (que é
própria do Surrealismo) um regramento
que não combina, de modo algum, com a contra-ortodoxia que é a sua máxima.
Por outro lado,
a minha experiência pessoal do Surrealismo fez dele (para mim) uma maneira de pensar
e de agir. Se isso nos leva a nos descobrir acompanhados de outros, isso não é nem
de longe uma confraria, mas antes, quero
crer, uma comunidade.
De resto, distorcer é verbo muito típico de tal procedimento,
tal modo de ser. E se se altera, se modifica ou se transforma o que era o seu significado original – creio que estamos
praticando o Surrealismo comme il faut, dando-lhe a legitimidade revolucionária
que ele se empenha em ativar para si mesmo. Porque, afinal, trata-se do igual investimento
nas metamorfoses para o qual, aliás, ele não se cansa de apontar.
FM
| Revistas surrealistas – antes apenas impressas, hoje também virtuais e com
extensa recuperação dos primórdios dessa atividade em edições fac-similadas e em
formato pdf – formam um acervo incomparável frente a qualquer outro movimento, escola
ou vanguarda ao longo dos séculos. Defendo que as mais valiosas são aquelas que
jamais refutaram outras perspectivas de vida e obra, alheias e/ou complementares
do Surrealismo. Tais revistas são, a meu ver, o espaço entranhável de uma contra
ortodoxia, pleno exercício de generosidade e compartilhamento de mundos dispersos.
No entanto, temos ainda, declarada ou não, imensa rejeição do Surrealismo justamente
por seu princípio ortodoxo. Como separar joio & trigo?
MLDF
| Temo ser simplória demais na resposta, mas creio que o próprio Surrealismo
acabou nos curando desse propósito bitolador sacado (e, malgrado tudo, praticado)
aquando da subjugação do movimento a uma escola ou a uma ideologia – e isso é nocivo.
A meu ver, a vontade de desvelamento de outra história da Humanidade, o uso da máquina infernal como arma de demolição da
realidade, o humor negro, o descobrimento da boca de sombra que fala em nós, a desrealização, a hostilidade e a inacomodação convulsiva à moral burguesa,
a iluminação profana, enfim, esse repertório
de trabalho e de corrosão do estabelecido – jamais poderá ser dogmático. Ao contrário,
é a formalização dessas atividades enquanto programa estético que é tão absurda
quanto aquilo que se propõe combater.
As tentativas
de Breton no sentido de desentranhar as raízes luminosas e ardentes do Surrealismo
são uma demonstração de achego ao outro, e não um princípio de monopolização do
alheio. Tal atividade arqueológica de vasculhar a História para vislumbrar as atuações
antecipadoras e preconizadoras do Surrealismo, enfim, esse esforço de enxergar e
discernir os parentescos que estavam traçados avant la lettre – rompem com
o estaticismo de qualquer ortodoxia.
FM
| Duas denominações sempre me chamaram a atenção, dentro do ambiente surrealista,
não porque me pareçam inapropriadas, mas antes pela partição que levam entre si
de elogio e rejeição: movimento surrealista e civilização surrealista. Até onde
tais denominações se distinguem e o que representam a ponto de parecerem antípodas?
MLDF
| Não sei se você se refere à tendência em se cunhar, com tal expressão civilização surrealista, uma espécie de anarquismo
maléfico ao funcionamento social, supondo-a referente a um mundo caótico, sem regras,
carnavalizado, onde tudo pode acontecer, e, por isso mesmo, uma civilização a ser
grandemente evitada. Na linguagem vulgar, costuma-se apodar de surrealista a uma situação kafkiana, digamos, impensável e absurda em
moldes civilizacionais. Designa-se com isso a uma sociedade de barbárie – que é,
aliás, aquela em que vivemos.
Com o fito de
criticá-la, questioná-la e modificá-la, teria sido esta a sociedade que, de propósito,
o movimento surrealista procurou sempre
desocultar através da sua arte?!
FM
| É comum evocar-se no Surrealismo sua potência imaginativa e seu caráter experimental,
a rigor aspectos complementares. No entanto, na inquestionável impossibilidade de
uma renovação perene no ambiente da criação artística, em muitos casos, o que se
verifica no Surrealismo são uma repetição de recursos, modos de ser e truques de
linguagem. Como lidar com essas oscilações tão comuns a qualquer território criativo?
MLDF
| Se o pensarmos através de uma ótica burguesa, claro que tudo no Surrealismo
não passa de truque. Mas se o dito “truque”
pode se constituir numa via de conhecimento – por que não utilizá-lo?! Os recursos,
como você diz, podem ser os mesmos, mas o mundo, que é sempre outro e outro (e essa
convicção foi o Surrealismo quem – depois de Heráclito – nos inculcou), os transforma
numa fonte inesgotável de criação.
O Herberto Helder
tem um texto exemplar a respeito disso no Retrato em Movimento (1968): a
história de um pintor que pintava um peixe amarelo, mas que, para ser fiel ao peixe,
o fixava em vermelho na tela, visto que não queria correr o risco de ser surpreendido
pelo real, já que este, sim, é que é… prestidigitador!
FM
| Aldo Pellegrini é um dos raros estudiosos do Surrealismo que tratou especificamente
de seu ambiente poético. Em uma bibliografia surrealista, a tônica reforça a relevância
da imagem plástica. Tal adjetivo sempre me pareceu uma falha crítica, porque a essência
renovadora, já no princípio do século XX, diz respeito à imagem em si e suas múltiplas
perspectivas. Esta é uma das inúmeras adulterações dos princípios surrealistas ou
sequer entre eles pouco se percebeu a inexistência de uma distinção – exceto meramente
técnica – entre imagem plástica e poética?
MLDF
| Quando falo em imagem no Surrealismo só me ocorre aquela obtida por meio
da razão ardente, aquela que convoca para
uma conciliação inaugural, para uma unidade
secreta, aquela que fornece luz ao
real. A imagem surrealista é a prova de que não se trata de truque ou de brincadeira artística, mas de experiências
mágicas sobre as palavras, como diz o Walter Benjamin.
Para além disso
(poderíamos admitir para especular) toda a imagem é plástica, de modo que nomear
imagem plástica consistiria em produzir
uma redundância. Todavia, nem toda imagem é poética. É isso que você quer discutir?
Não tenho a leitura
do Pellegrini viva na memória para apreciar devidamente a sua colocação. Talvez
a aproximação (ou a suposta identificação) do Surrealismo com a imagem plástica dar-se-ia de maneira mais evidente
(e corrente) porque o movimento se fez
conhecer (ou seja, foi mais divulgado ou teve maior acesso junto aos apreciadores)
enquanto arte da pintura, da escultura, da fotografia e do cinema. A poesia, pela
sua própria dificuldade intrínseca (sic), não obteve certamente a mesma penetração
junto àqueles, que as outras artes. E daí que se suponha que, por ter sido conhecida
como essencial ao movimento (por meio
de outras manifestações mais explícitas), a imagem
plástica também acabasse nomeando o tipo de linguagem poética mais afeita ao
Surrealismo. Serão estes os pressupostos do seu questionamento?
FM
| Em seu surgimento, as expectativas sociais do Surrealismo giravam em torno
do que então se apresentava como ações revolucionárias, em especial o que tomava
por base as proposições de Marx e Freud. Octavio Paz chegou a declarar que o século
XX seria lembrado como o século de Freud e do Surrealismo. Ao eliminar Marx de suas
profecias esqueceu-se – isto se de fato se trata de esquecimento – que o mercado
derrotaria, para dizer o mínimo, todas as pretensões revolucionárias, sem deixar
de fora as duas destacadas pelo mexicano. Como avaliar o tema em nossa época? Diante
de um virulento absolutismo do mercado, o que houve com as forças deflagradas por
Freud, Marx e o Surrealismo?
MLDF
| Para já continuo a pensar que o Surrealismo realiza, dentro da história das
vanguardas do século XX, um grande tento. É a derradeira vanguarda histórica, e
esse papel heroico ninguém lhe tira. Também não creio que Marx foi esquecido no
andar dessa carruagem – talvez Octavio Paz não tivesse querido mexer num ninho de
gatos, nesse enxame de abelhas africanas, de cuja história já ouvimos tanto falar.
O fato é que se o Surrealismo buscou fazer frente ao mercado na medida em que se
nutre do escândalo, do fato insólito e
do espanto (para citar Adorno: do shock, da montagem) como maneira de minar
a moral burguesa – o mercado, por sua vez, o assimilou de tal forma, que utilizou
(e usa) tais recursos para a sua atualizada implementação e crescimento, como um
valor especulativo, tomando o que lhe era contra a seu favor. Não dá para escapar
a esse imperialismo consumista, e a arte que se preza passa o tempo medindo forças
contra essa heterofagia – que é, a meu ver, o que o Surrealismo continua a fazer
desde sempre.
Assim, para responder direto a sua última pergunta: as forças deflagradas por Freud e Marx continuam vivas e atentas dentro do Surrealismo e, a cada tempo, engendrando reações próprias à sua respectiva época. Isso é uma parada eterna, é um certame interminável, um litígio infindável – e, de certa forma, o combustível para a teimosa (e gloriosa!) permanência da arte.
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO
Número 166 | fevereiro de 2021
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Uma excelente entrevista. Parabens.
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