sexta-feira, 17 de junho de 2022

LUIZ NAZARIO | O erotismo mórbido de Walerian Borowczyk

 


Erotismo, sexo, é uma das partes mais morais da vida. Erotismo não mata, não extermina, não encoraja o mal, não leva ao crime. Pelo contrário, ele torna as pessoas gentis, traz alegria, dá satisfação, leva ao prazer altruísta.


WALERIAN BOROWCZYK

 

Walerian Borowczyk (1923-2006) foi um dos diretores mais polêmicos do cinema polonês. Depois de concluir seus estudos na Faculdade de Artes Gráficas da Academia de Artes de Cracóvia em 1951, elaborou cartazes de cinema bastante inspirados, que lhe deram o Grande Prêmio Nacional de Grafismo. Iniciou sua carreira de diretor realizando com o colega Jan Lenica animações de objetos, recortes e fotografias, em colagens surrealistas destinadas ao público adulto, com mensagens políticas de humor negro e violência gráfica.

As animações de Borowczyk e Lenica Era uma vez (Był sobie raz, 1957, 9’), com trilha eletroacústica composta pelo Estúdio Experimental da Rádio Polonesa, sobre uma mancha que ganha vida e explora o mundo;  Sentimento recompensado (Nagrodzone uczucie, 1957, 8’), um terno romance contado através das pinturas de Jan Płaskociński; Bandeira da juventude (Sztandar mlodych, 1957, 2’), um noticiário anunciando o jornal da União da Juventude Polonesa; Strip-Tease (Strip-Tease, 1957, 2’), com um strip-tease de bonecos de papel que termina com uma gag semiótica; e Casa (Dom, 1959), com trilha eletroacústica de Włodzimierz Kotoński, onde uma mulher solitária em sua casa sucumbe a pesadelos enquanto em live-action outra faz amor com um manequim que se desintegra – fugiam da tradição comunista da animação em stop-motion inspirada em contos de fada e lendas populares.

Casa, a obra-prima da dupla, ganhou a Medalha de Ouro (10.000 dólares) no Festival do Filme Experimental em Bruxelas. Utilizando técnicas de animação variadas (recortes, pixilation, animação de objetos, fotografias e desenhos), as colagens alegóricas e surreais de Borowczyk e Lenica retratavam uma humanidade presa numa burocracia insana, mutilada e ameaçada por bombas atômicas e campos de concentração. Os animadores poloneses assimilavam tanto as técnicas de Norman McLaren e Len Lye quanto as criações dos vanguardistas europeus Jean Cocteau, Hans Richter, Man Ray, Fernand Léger, Max Ernst, Hans Calder e Marcel Duchamp, ao mesmo tempo em que abriam o caminho para as inovadoras animações surrealistas do tcheco Jan Švankmajer.

Após abandonarem a Polônia por problemas ideológicos com o regime soviético, Lenica e Borowczyk continuaram a produzir na Alemanha e na França suas animações adultas, com temas filosóficos críticos e audaciosos. Borowczyk observou que os filmes de Lenica seriam inconcebíveis sem o Teatro do Absurdo de Eugène Ionesco (BENDAZZI, 2001). De fato, Lenica convidou Ionesco para escrever o roteiro de Monsieur Tête (1959) e, depois, adaptou livremente sua peça Rhinocéros (1963), um dos marcos do Teatro do Absurdo, com sua metáfora crítica do totalitarismo. Já Borowczyk trilhou um caminho paralelo mais influenciado pelo Surrealismo, onde o erotismo sadiano conquistará cada vez mais o espaço antes ocupado pela política, colocada em segundo plano até ser suplantada pelo fetichismo e as fantasias sexuais.

Em parceria com Chris Marker, Borowczyk realizou o curta-metragem Os astronautas (Les Astronautes, 1959, 13’), sobre um inventor e sua nave espacial improvisada percorrendo cidades como Paris e Roma, observando mulheres se trocando em seus quartos e afrontando um homem poderoso. Ele chega até a Lua, mas é finalmente alvejado pelo ricaço que havia provocado.

A escola (Szkola, 1958, 6’10’’) é uma sátira ao militarismo toda feita de fotografias fixas animadas. Um soldado da Primeira Guerra se exercita com sua baioneta ao som de uma marcha militar e depois, em posição de sentido, é atormentado por uma mosca que insiste em pousar em seu rosto, sem que ele possa matá-la. Depois de mais exercícios, em que se cansa, e sem conseguir dar um tiro com a arma defeituosa, acaba pedindo uma trégua para dormir, sonhando com pernas femininas marchando sobre seu corpo.

Na animação de desenhos em preto e branco com detalhes coloridos O concerto do Sr. e da Sra. Kabal (Le concert de M. et Mme. Kabal, 1963, 7’), o amor pela música que a senhora Kabal manifesta apenas mascara sua natureza violenta e cruel: ao executar peças clássicas ao piano, ela sonha ser uma jovem pura, uma bela mulher loira de alta estirpe, mas ao perceber que o marido, depois de beber muito, começa a roncar em sua audição, ela não hesita em destroçar o insensível, cortando o corpo do Sr. Kabal em muitos pedaços.

Em Renascimento (Renaissance, 1963, 9’), ao som de trombetas militares, um quarto arruinado repleto de objetos do começo do século XX é lentamente reconstituído. Magicamente, os objetos ganham vida e retornam, um a um, à sua integridade original depois de terem sido destroçados: uma coruja empalhada, uma boneca, um trombone, um cesto, dois livros, a fotografia de um grupo de família, um prato, um relógio, e, finalmente, uma granada. Imediatamente, quando os ponteiros do relógio de movem, a granada explode e o quarto e seus objetos tornam-se coloridos por um segundo, antes de voltarem à ruína anterior em preto-e-branco. A animação é tão perfeita que hipnotiza o espectador, que imagina uma história, nunca contada, para o triste quarto destinado a ser eternamente arruinado.

A enciclopédia da vovó em 13 volumes (L’encyclopedie de grand-maman en 13 volumes, 1963, 7’) traz, na verdade, apenas o primeiro volume: três vinhetas com as três primeiras letras do alfabeto em animações que ilustram três meios de transporte e seus inúmeros desastres: o automóvel, o balão e o trem, com figuras inspiradas nas ilustrações dos livros da era vitoriana. O progresso leva à catástrofe, mas o homem, essa formiga, não cessa de aumentar o formigueiro.

Os jogos dos anjos (Les jeux des anges, 1964, 12’) é uma animação sombria onde imagens cruéis evocam os horrores do nazismo através da trilha sonora de Bernard Parmegiani, composta a partir de um canto original de prisioneiros dos campos de concentração da Polônia. Trens chegam incessantemente noite adentro a celas e fábricas da morte, onde anjos de asas azuis são torturados, mutilados e decapitados. O filme ganhou o Prêmio da Crítica Internacional e o Prêmio Especial do Júri no Festival de Tours de 1964.

O dicionário de Joachim (Le Dictionnaire de Joachim, 1965, 9’) é um dicionário “completo” ilustrando, em Eastmacolor, todo o alfabeto do personagem Joachim, desenhado por Laurence Demaria e animado por Borowczyk, ao som de conhecidas peças musicais deformadas por Bernard Parmegiani.

Rosalie (1966, 10’) é um filme-animação em preto e branco, inspirado na novela Rosalie Prudent, de Guy de Maupassant. Borowczyk integra com perfeição a animação de objetos na ação ao vivo: numa tomada estática, Rosalie (Ligia Branice, esposa do diretor e única atriz do filme) presta depoimento no tribunal, revivendo o crime que cometeu, com suas lembranças animadas pelos objetos que constituem as provas, alinhadas sobre uma mesa da sala. Quanto ao júri e à audiência, podemos apenas imaginá-los. Rosalie, doméstica na casa dos Varambot, engravidou sem o conhecimento dos patrões e teve seu filho em segredo, à noite, em sua mansarda. Depois, matou e enterrou o bebê nos jardins da casa. O longo travelling de abertura apresenta as provas do crime: cada objeto evoca imagens mentais de como Rosalie matou a criança, enquanto ouvimos seus soluços de dor. Ei-la de pé, lenço rendado na mão, diante do tribunal. Ela denuncia: “Foi o senhor Joseph, sobrinho do senhor Varambot!”.

Daniel Bird observou que Borowczyk amava o artesanato, especialmente o do século XIX, onde os traços da mão do homem eram bem visíveis. Se os objetos possuem uma história ao passar de mão em mão, nos filmes de Borowczyk eles possuem uma narrativa ao passar de imagem para imagem. Mas Borowczyk não hesitava em destruir seus fetiches: binóculos, sapatos, rosas, espartilhos, espelhos, borboletas, canos, etc. E mesmo explodidos, demolidos, esmagados, estilhaçados, moídos, os objetos continuavam a fascinar Borowczyk no modo catastrófico. Há um apelo à destruição por trás de seu fetichismo (BIRD, 2020).

Em Díptico (Diptyque, 1967, 9’), Borowczyk apresenta duas vinhetas distintas, quase dois filmes em um. No primeiro, em preto e branco, vemos o velho Léon Boyer, um camponês “celibatário e quase centenário” cuidando de sua terra, de seus cães, e retornando à cidade em seu primitivo carro com buzina de mão - tudo é seco, infrutífero, inútil. No segundo, colorido, um lindo gatinho observa vasos de flores ao som da ária Romance de Nadir, da ópera Os pescadores de pérolas, de Georges Bizet, com libreto de Michael Carré e Eugène Cormon, cantada por Tino Rossi – tudo é encantador, abundante, esplendoroso.

O casal Kabal retorna em O teatro do Sr. e da Sra. Kabal: um filme desenhado para os adultos (Le Théâtre de Monsieur & Madame Kabal: un film dessiné pour les adultes, 1967, 80’), o primeiro longa-metragem de Borowczyk, feito de desenhos em preto e branco com detalhes coloridos. Num estranho universo regido por leis misteriosas, o Sr. e a Sra. Kabal vivem caçando e matando borboletas multicoloridas que se metem em todos os lugares. Os Kabal alimentam-se de peixes, de pedras e de peças de metal, pois seus organismos são feitos de órgãos, metais e pedras. Nessa animação extraordinária, a ilusão da vida é criada por uma edição primorosa que concede, graças à perfeita sincronia entre imagem e som, carnalidade aos personagens e concretude aos mecanismos desenhados, fazendo viver o casal Kabal no mundo bizarro desenhado por Borowczyk. O filme conquistou o Prêmio Max Ernst de 1967.

Depois de passar do curta-metragem de animação ao curta-metragem de animação com ação ao vivo, Borowczyk passou do longa-metragem de animação ao filme de longa-metragem de ação ao vivo com o kafkiano Goto, a ilha do amor (Goto, l’île de l’amour, 1968, 93’), onde já aflora o erotismo mórbido que será a tônica de seu cinema desde então. Sobre essas passagens Borowczyk escreveu: “Não há diferença entre uma narrativa e um filme de animação. Duas técnicas diferentes, mas um processo de pensamento.” Tendo como trilha sonora o Concerto número 11, opus 7, de Georg Friedrich Haendel, Goto, a ilha do amor foi rodado em preto-e-branco, com alguns flashes de cenas coloridas inseridas em momentos-chave da narrativa. Essas cenas não incluídas na versão lançada nos cinemas foram recuperadas e reinseridas na restauração do filme. Goto, a ilha do amor possui enquadramentos de grande plasticidade, lembrando uma animação, com seus personagens esquemáticos e caricatos. O ditador gorducho Grozo III (Pierre Brasseur), casado com a bela Glossia (Ligia Branice), governa, em sua fortaleza-residência, a Ilha de Goto, que renasceu após a catástrofe de 1887, que exterminou, num terremoto seguido de maremoto, 99% da população. A Ilha é desde então governada pela família Goto e todos ali são batizados com um nome iniciado pela letra G de Goto: Grozo, Glossia, Gono, Gurto, Gabro, Gimn, Gotudo... Os ambientes são cheios de areia e objetos quebrados, com paredes descascadas e móveis estragados. Todos parecem seguir a carreira militar e as poucas mulheres servem aos homens como prostitutas num bordel. Goto III encarrega o ex-condenado Grozo (Guy Saint-Jean) de escovar seus sapatos, alimentar seus cães e matar as moscas que infestam a Ilha. Enquanto Glossia se apaixona pelo tenente Gono, o criado Grozo, que a deseja loucamente, ascende na hierarquia cometendo crimes, que culminam com o assassinato de Goto III. Ele mascara o crime como suicídio para depois “descobrir” que o governador foi assassinado para culpar do crime o tenente Gono, que será executado. O monstro é eleito o novo governador, e tenta, assim, apossar-se de Glossia. Esta, desesperada, foge dele e consegue escapar de ser estuprada saltando do alto da fortaleza. Ela é carregada por Grozo e deitada na cama, como morta. Grozo chora ao perceber que todos os seus crimes foram perpetrados em vão. Na última cena do filme, contudo, Glossia volta a respirar e abre os olhos, criando uma nuvem de ambiguidade. Na Espanha de Franco, o filme foi considerado “terrivelmente antifascista” e só pode ser exibido após o colapso do regime. Na Polônia comunista, os censores tampouco permitiram sua libertação. Anos depois, Borowczyk observou: “Meu primeiro filme entrou para a história cinematográfica como um projeto único, que provou através de sua existência que não há diferença entre o fascismo e o comunismo.” (BOROWCZYK apud STASZCZYSZYN, 2019).


Gavota (Gavotte, 1968, 11’), baseado numa peça de Jean-Philippe Rameau, com os anões Roberto e Ludo, é uma sátira cruel em torno do tema predileto de Borowczyk: a “luta de classes” entre homens e objetos. O fetichismo do cineasta atinge um ponto alto ao creditar o leque que aparece nas primeiras cenas: “o leque pertence à coleção particular de Robert Capia”. Com lindos figurinos do século XVIII criados por Marie Gromtseff, Borowczyk encena um concerto durante o qual um anão (Roberto) se sente incomodado por tudo – a cadeira pequena, onde ele não quer ficar; a cadeira maior, onde as pessoas de tamanho normal acomodam seus leques, chapéus e lunetas, expulsando-o do assento; os livros que repousam sobre um sofá-baú de madeira entalhada; as moscas que pousam em seu rosto; e outro anão (Ludo), que rouba sua cadeira pequena e depois sua almofada, e que o primeiro finalmente estrangula e esconde dentro do sofá-baú no fim da gavota (dança francesa dos séculos XVII e XVIII). O filme se inicia com uma citação truncada de Nicolas du Tillet (1672-1739): “E ao prazer, banal, de contemplar o músico em seu cravo durante o concerto, prefiro o de errar meus olhos aqui e ali, em direção aos recantos obscuros e tranquilos do salão. Ontem eu vi em casa de Madame de R., a coisa mais...”. No final, “a coisa mais...” (curiosa? grotesca? louca?) que Borowczyk nos faz ver durante o baile, que transcorre fora de nosso campo de visão, é o crime cometido pelo anão perturbado, enfurecido pelas micro-opressões, ao fim do concerto de cravo.

O fonógrafo (Le Phonograph, 1969, 6’), animação em cores de objetos, é ainda uma parábola antimilitarista, contrapondo um antigo fonógrafo que se monta sozinho e toca um tambor de cera, contendo uma marcha militar com gritos de entusiasmo, enquanto na parede o retrato de uma jovem ornado com rosas vermelhas se estilhaça, caindo despedaçado no chão, já repleto de ruínas de outros objetos destruídos, evocando a morte da juventude na guerra.

Blanche (Blanche, 1971, 94’), filme em ação ao vivo, é talvez a obra-prima de Borowczyk, que adaptou Mazepa (1889), de Juliusz Slowacki, mostrando como o erotismo, quase ausente da sociedade medieval, evocada pela cenografia rica em detalhes, assume a forma de uma repressão total da mulher. Blanche (Ligia Branice) é uma jovem pura e bela que desposou o velho e hediondo Mestre do castelo (Michel Simon), numa terra isolada. Todos os homens importantes da trama se apaixonam por ela, incluindo o filho do Mestre (Georges Wilson), o Rei (Michel Delahaye) e o servo Bartolomeo (Jaques Perrin), em visita ao castelo. Por mais assediada, Blanche permanece fiel. Mas o Mestre, rancoroso, a pune cruelmente e prepara uma armadilha contra todos os que ousaram abusar de sua hospitalidade. A vingança do Mestre não poupa sua esposa, que jamais o traiu, e produz uma tragédia terrível que atingirá também o vingador.

Em Uma coleção particular (Une collection particulière, 1973), Borowczyk apresenta a estranha coleção de objetos pornográficos do escritor surrealista André Pieyre De Mandiargues (1909-1991), que se tornará seu amigo e o mais constante de seus colaboradores. Vemos, assim, um boneco de corda penetrando uma mulher de seios pontudos e pernas abertas; outro vestido como coroinha que se masturba e revira os olhos; outro ainda vestido de padre no qual uma alavanca faz erguer um pênis vermelho diante do quadro de uma santa; sombras chinesas que narram um ménage à trois com sexo explícito... Alguns dos brinquedos foram construídos pelo próprio Borowczyk. Nunca vemos o rosto de Mandiargues no filme, apenas suas mãos, que manipulam os objetos de sua coleção com delicadeza e segurança, sem errar o ritmo que se deve impor às cordas e às alavancas. Ele imprime a força necessária, certa e justa para lidar com eles, pelo que esses objetos antigos se conservam em perfeito estado. O colecionador é assim reduzido pelo diretor às suas mãos, ao mesmo tempo firmes e delicadas, sugerindo um masturbador que se excita com brinquedos adultos: desenhos de séculos passados, fotografias pornográficas antigas, consolos de madeira e de marfim. Esses objetos são retirados e guardados cuidadosamente em suas caixetas pelo proprietário, que também demonstra como eles eram utilizados pelas damas. Nada é menos excitante que a curiosa coleção erótica de Mandiargues. Esses objetos quase infantis só cumpriam sua função numa sociedade altamente repressiva. Não por acaso Borowczyk elege um desses objetos para fazer um contraponto aos demais: um boneco chamado de “policial dos costumes”, que fica a olhar com um binóculo os demais bonecos e itens pornográficos. Mandiargues não cessa de colocar o “policial dos costumes” contra a parede para poder exibir em paz os itens de sua coleção. Mas o “policial dos costumes” sempre encontra um meio mágico de retornar à sua posição de vigilante. No final, apontando seu binóculo para o boneco de um rapaz que sodomiza um burro segundo o ritmo dado à alavanca que move seu membro, o “policial dos costumes” fica tão excitado que acaba por revelar seu grande pênis vermelho. Há duas versões do filme: a versão dos cinemas (12’12’’) e a chamada “versão Oberhausen” (14’31’’), mostrada naquele Festival em 1973, com cenas mais explícitas, como uma imagem antiga de bestialidade entre uma mulher e um cachorro – “pixelada” na versão inglesa do DVD para escapar à lei inglesa sobre os “crimes de extrema pornografia”. (COUZENS, 2014).

Contos imorais (Contes immoraux, 1973, 125’) é um filme em quatro episódios. No primeiro episódio, A maré (La marée), inspirado num conto de Mandiargues, sobre a perda de virgindade, André (Fabrice Luchini), de vinte anos, e sua prima mais jovem Julie (Lise Danvers, em papel originalmente oferecido a Isabelle Adjani, que o recusou) vão de bicicleta até a praia onde ele orquestra eventos que os deixarão isolados pela maré alta. No segundo episódio, A filósofa Thérèse (Thérèse philosophe), com ecos da literatura do Marquês de Sade, uma jovem (Charlotte Alexandra) experimenta êxtases religiosos com objetos fálicos, incluindo crucifixos e pepinos. No terceiro e melhor episódio, A condessa Bathory (Erszébet Báthory), baseado no estudo da poetisa surrealista Valentine Penrose do caso de Erszébet Báthory (RICHARDSON, 2006), a Condessa Sangrenta na Hungria do século XVII, que se tornou a modelo das vampiras modernas, banha-se no sangue de cem virgens para permanecer eternamente jovem e bela. A assassina mais infame da História é encarnada por Paloma Picasso e na cena de seu banho de sangue foram usados 30 galões de sangue de porco (COUZENS, 2014). No quarto episódio, Lucrezia Borgia, Savonarola (Philippe Desboeuf) denuncia os incestos da família Borgia envolvendo Lucrezia Borgia (Florence Bellamy), que aborta os filhos que teve com seu pai, o Papa Alexandre VI (Mario Ruspoli), e seu irmão Cesare Borgia (Lorenzo Berenizi), sendo o herege moralista queimado na fogueira.

A versão original de Contos imorais incluía um quinto conto (terceiro no filme), A besta de Gévaudan, que escandalizou a audiência do London Film Festival de 1973. Borowczyk acabou retirando o episódio para ampliá-lo, usando o material em 35 mm no longa-metragem A mulher e a besta (La bete, 1975). (COUSINS, 2014). A besta de Gévaudan foi incluído no Box Camera Obscura: The Walerian Borowczyk Collection (2015), a partir da única cópia sobrevivente, não editada para A mulher e a besta, infelizmente em 16 mm.

Caramujo de Vênus (Escargot de Venus, 1975, 5’) é um retrato da artista italiana Bona Tibertelli de Pisis (1926-2000), conhecida como Bona, esposa de Mandiargues, lendo em seu ateliê um texto de Remy de Gourmont, que ela recita ao som de músicas ciganas do grupo Les Flûtes Roumaines, e que descrevem poeticamente seu trabalho: imagens de criaturas hermafroditas em cópulas grotescas em tons suaves, onde cada corpo é, ao mesmo tempo, homem, mulher e monstro. No final, Bona alimenta com um verme seu camaleão de estimação, que agarra de sua mão a gourmandise com uma língua úmida, enorme e veloz como um raio.

Em 1975, Borowczyk retornou à Polônia para realizar História de um pecado (Dzieje Grzechu, 1975, 130’), baseado no romance polonês História de um pecado (Dzieje Grzechu, 1908), de Stefan Żeromski, um escândalo em sua época, com o crítico Teodor Jeske-Choiński acusando o escritor de ter chutado, esbofeteado e cuspido (n)a mulher polonesa”. O filme levou oito milhões de espectadores aos cinemas e foi aclamado pelos críticos, como Bolesław Michałek, que escreveu: “O filme é uma imagem absoluta e clara do desejo. Um sonho aterrorizante e maravilhoso. Um sonho com um grande desejo físico.” A revolução sexual chegava com atraso na Polônia e o filme respondia à ânsia do público por produtos eróticos. Borowczyk atendia aos seus desejos com um filme que chocava sem ofender. A narrativa seguia fielmente o romance e seu erotismo era temperado com um humor irônico (STASZCZYSZYN, 2014). Ao som de Mendelssohn, acompanhamos a lenta perdição da jovem Ewa (Grazyna Dlugolecka), alertada nas primeiras cenas, no confessionário, sobre os pensamentos e os sentimentos impuros. Sua família mantém uma pensão e certo dia o jovem Lukasz muda-se para lá e os dois se apaixonam. Ele pretende divorciar-se, mas a separação é negada pela Igreja. Depois que ele é ferido em duelo, Ewa e Lukasz passam a viver juntos. Ele vai a Roma tentar o divórcio. Ela tem um filho da relação ilegítima e afoga o bebê. Lukasz é preso. Ewa vai encontrá-lo, mas ao chegar descobre que ele fora solto. Errando à procura do amado pela Itália, pela França e pela Alemanha, ela descobre que Lukasz casou-se com uma mulher rica e voltou à Polônia. Ewa envolve-se com dois vigaristas que a usam para roubar Lukasz. Quando Ewa e Lukasz fazem amor, ela tenta matá-lo com uma injeção de veneno. Depois, foge e afunda na prostituição. Recebe ajuda de um homem rico, mas os vigaristas reaparecem, tentando usá-la em novos golpes. Ewa é presa. Lukasz não morreu e reaparece na prisão, vendo Ewa morrer de susto ao vê-lo vivo. História de um pecado foi o único filme de longa-metragem que Borowczyk rodou em sua Polônia natal (KHAN, 2017).

Com Carta de Paris (Brief von Paris, 1975, 40’), Borowczyk realizou uma sinfonia cacofônica revelando uma Paris feia e desagradável, imersa num trânsito caótico, onde o ruído incessante torna-se insuportável. O filme não irritou apenas o público, como também o Conselho de Turismo da cidade: o cineasta manchava a imagem romântica de Paris fazendo um recorte de suas ruas, deixando de fora tudo o que havia de belo e fascinante na cidade-luz. Sua Carta de Paris é um manifesto raivoso contra o barulho estressante das cidades.

Em seguida, Borowczyk rodou sua obra mais polêmica e conhecida: A mulher e a besta (La Bête, 1975, 94’). Prometida ao filho de um nobre francês, uma jovem deslumbrada (Sirpa Lane) chega à mansão do rapaz e passa a ter bizarros sonhos sexuais com uma besta horrível. O erotismo bestial do filme atinge o surrealismo paródico com os coitos equinos e as masturbações animalescas, que provocaram reações adversas nas plateias desavisadas. O caso escabroso da monstruosidade hereditária confirmava a tese apresentada por Jean Boullet no ensaio La Belle et la Bête, que associou a monstruosidade ao complexo de Édipo (NAZARIO, 1998). O filme foi censurado em várias partes do mundo. Na Espanha, Tomás Delclós, em Primera Plana, apresentou A mulher e a besta como um filme pornô. Borowczyk contestou o crítico: “Se mostrássemos a quem desconhecesse Bosch determinados fragmentos de O jardim das delícias aquele alguém poderia pensar que o pintor era um obcecado sexual, um pornógrafo ou um sádico.” Borowczyk não queria ser chamado de “mestre do erotismo”. Recusava a categorização: era obcecado pelo sexo, sim, mas também pelos detalhes. Era um artista minucioso, preciosista, que trabalhava suas películas com um cuidado artesanal quase fanático:

 

Não sou um mestre do erotismo, talvez um mestre do cinema. Toda película é erótica em sua forma. O tema preferido da arte, há séculos, é o amor. E falar de amor é falar de sexo. Não sou nenhum especialista, sou um cineasta. Tudo mais são pretextos. Erótico é um termo algo anedótico, uma classificação temática, quando na arte o tema é algo marginal. Para mim a película é um todo. O cinema não é uma arte sintética, mas autônoma. (TRUEBA, 1978).

 

A mulher e a besta sofreu tanto o estigma de obra pornográfica que acabou servindo de inspiração para um verdadeiro filme pornográfico: a produção italiana A besta no espaço (La Bestia nello Spazio, 1980), de Al Bradley, vulgo Alfonso Brescia, estrelada pela mesma atriz, a ex-modelo finlandesa Sirpa Lane, que morreu de AIDS. O filme era considerado perdido até que uma cópia dele foi descoberta num cinema abandonado prestes a ser demolido em Bolonha. Borowczyk tinha um olhar satírico sobre a vida e usava o humor para o alívio do drama, mas a comédia em si não o interessava. O riso pelo riso era, a seu ver, desprezível. Não gostava da caricatura. Considerava Federico Fellini um caricaturista, e se sentia alheio à sua estética. Curiosamente, A mulher e a besta não deixa de ser caricato e grotesco. Borowczyk usava a temática fantástica para seduzir o público para participar de um suspense e satisfazer uma curiosidade. A bestialidade seria, a seu ver, um mito arraigado em nossa cultura, em nossa mente, em nossa arte. Mas a mitologia da bestialidade era relegada ao subconsciente. Seu filme tentava fazer emergir esse mito à superfície usando o mecanismo dos sonhos replicado pelo cinema: “Quero que meu filme sirva para que as pessoas sonhem comigo.”. Apesar dos ataques dos críticos e das censuras sofridas, A mulher e a besta foi um grande sucesso comercial (MURRAY, 2005).

Depois de acompanhar os lançamentos internacionais de A mulher e a besta, Borowczyk planejou rodar Nefertiti na Tunísia e no Egito. Partindo da ideia de que os hieróglifos, ainda que pretendessem dizer a verdade, eram ditados pelo faraó, oferecendo uma visão oficiosa dos fatos, Borowczyk pretendia contar a “verdadeira historia” de Nefertiti. A princesa não teria nascido no Egito, e Borowczyk imaginava que ela tivesse sido raptada na Inglaterra e arrancada de seu noivo, um pastor. Por isso, casada com o faraó Aquenáton, que tentava impor uma nova religião do sol, a soberana procurava manter contato com o povo. O projeto não foi concretizado por falta de produtores interessados.

Enquanto Lenica, o antigo companheiro de Borowczyk, produzia Ubu roi (1976), uma adaptação da peça de Alfred Jarry que antecipou o drama grotesco e insólito que caracterizaria o Teatro do Absurdo, Borowczyk continuava a ser tratado como cineasta pornô por insistir na realização de filmes eróticos. Em Porque agrado os homens (La marge, 1976, 88’), baseado na novela La marge (1967), de Mandiargues, Sigismond Pons (Joe Dallesandro), casado com Sergine (Mireille Audibert), viaja a negócios para Paris e recebe a notícia da morte da esposa, envolvendo-se emocionalmente com uma prostituta (Sylvia Kristel) e terminando por suicidar-se. No filme belamente fotografado dois corpos icônicos – um da pornografia soft (Kristel), e outro do cinema underground (Dallesandro) – entregam-se longamente à sodomia. Borowczyk queria integrar arte e comércio, erotismo e pornografia, mas o resultado da mescla foi duvidoso, com momentos de beleza estranha numa trama rala e desinteressante.

Produzido na Itália e estrelado por Ligia Branice, Atrás do muro do convento (Interno di un convento, 1977, 95’) causou um grande escândalo, tendo sido denunciado e sequestrado três vezes, acusado de “ultraje à religião”, e julgado num tribunal, como acontecera com O último tango em Paris (Ultimo Tango a Parigi, 1972), de Bernardo Bertolucci, e com Salò ou os 120 dias de Sodoma (Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975), de Pier Paolo Pasolini. A trama se passa num convento em princípios do século XIX, inspirada numa anedota relatada por Stendhal em seu diário italiano, Passeio em Roma (Promenade dans Rome, 1829). Outras possíveis fontes seriam As crônicas do Convento de Sant’Arcangelo em Baiano (1570-1580), sobre as aventuras sexuais de Agata Acrimone, Giulia Caracciolo e Livia Pignatelli, jovens da nobreza napolitana forçadas a viver num convento para preservar a fortuna de suas famílias; A abadessa de Castro (L’abbesse de Castro, 1839), sobre uma jovem da nobreza italiana engravidada por um bispo; e o filme A monja e o demônio (Le monache di Sant’Arcangelo, 1973), de Domenico Paolella. Muitas jovens da nobreza eram destinadas a serem monjas antes mesmo de nascer. Ao chegar a certa idade, enamoravam-se de alguém do exterior ou se faziam amantes daqueles que lhes escreviam cartas, e que elas não hesitavam em responder. No filme, a Madre Superiora desempenha o papel da “polícia dos costumes”, vigiando e punindo seu rebanho. O convento de Borowczyk não é um local onde as noviças dedicam-se à vida contemplativa e votiva em clausura, orando e meditando sobre a morte: lembra mais um bordel, onde grassam as perversões sexuais. A Madre Superiora tenta impedir as jovens sexualmente reprimidas de experimentar os prazeres da carne: fracassando a cada advertência, aplica punições cruéis às monjas de comportamento ultrajante. Uma delas, a Irmã Veronica, enlouquece. Ela é interpretada por Marina Pierro, descoberta por Luchino Visconti, que a escalara para o pequeno papel da confidente da protagonista de O inocente (L’Innocente, 1976), e que depois de algumas pontas em filmes menores, tornou-se a nova musa de Borowczyk, desbancando desde então o estrelato em seus filmes de sua esposa Ligia Branice.


O amor, monstro de todos os tempos (L’amour, monstre de tous les temps) (1978, 10’) é um breve retrato do pintor sérvio Ljuba Popović (1934-2016) ao som de Richard Wagner. Ljuba vivia em Paris e o filme capta o ainda jovem artista andando pela cidade e trabalhando em seu estúdio, com close-ups de seu rosto e de suas mãos. Seu universo esfumado e barroco, povoado de monstros e corpos nus em paisagens indefinidas, pertencem à pintura surrealista.

Para relaxar os nervos e divertir um pouco, Borowczyk voltou mais uma vez à animação com Brinquedo alegre (Jouet joyeux, 1979, 3’), um filme colorido e sem diálogos, com imagens no estilo dos desenhos do fim do século XIX.

Produzido por Pierre Braunberger, o filme coletivo Coleções privadas (Collections Privées, 1979) apresenta três episódios: A Ilha das Sereias (L’Île aux Sirens), de Just Jaeckin; O Labirinto de Herbes (Le Labyrinthe d’Herbes), de Shuji Terayama; e O armário (L’armoire, 29’), de Walerian Borowczyk. Em O armário, Borowczyk adapta um conto de Guy de Maupassant (1884) onde um homem (Yves-Marie) procura satisfação sexual junto a uma prostituta (Marie-Catherine Conti) que trabalha numa revista musical. Mas o homem não quer apenas meia hora com ela, como é o trato comum: ele paga por sua companhia por toda a noite. A cafetina cede a garota com relutância e conduz o homem por um labirinto até um quarto escuro, onde o homem termina por descobrir uma triste verdade sobre a jovem. Um crítico considerou o filme, raramente exibido, “uma obra-prima de composição, luz e cor”, com imagens que lembram pinturas, fotografadas por Noël Véry, frequente colaborador de Borowczyk.

O tríptico As heroínas do mal (Les Héroïnes du Mal: Margherita, Marceline, Marie, 1979, 114’) evoca o universo do Marquês de Sade na mesma linha de Contos imorais. No primeiro episódio, Margherita, situado na Roma do século XVI, Margherita Luti (Marina Pierro), filha de um banqueiro, faz amor com seu noivo Tomaso (Gérard Falconetti) nas ruínas romanas e posa para o pintor renascentista Raffaello Sanzio (François Guétary), que a deseja. Enquanto ela é espionada no estúdio pelo buraco de fechadura pelo rico banqueiro Bernardo Bini (Jean Claude Dreyfus), Raffaello fura o olho do rival com um pincel. Bini então planeja seduzir Margherita para tentá-la com joias para matar Raphael com cerejas envenenadas. Mas Margherita tira proveito das obsessões de Bini e Rafael: ela mata os dois e foge com as joias de Bini para os braços de seu amado Tomaso. O crítico Michel Braudeau considerou os dois outros episódios do filme menos convincentes: “Capaz do melhor, Borowczyk não é imune à mediocridade. Depois de Marina Pierro, as heroínas parecem brandas e o mal não é tão bom. Borowczyk foi gentil o suficiente para nos servir o melhor como aperitivo.” (BRAUDEAU, 1979). Revendo o filme em 2005, Scott Murray considerou-o “uma obra-prima surreal e possivelmente a obra mais sofisticada de Borowczyk” (MURRAY, 2005). Borowczyk fantasiou o assassinato de Raffaello: segundo Théodore Mocon (1506-1571), o pintor morreu em 1520 após um resfriado contraído nas ruínas romanas; de acordo com Giorgio Vasari (1512-1574) ele morreu em 1529 da exaustão de prazeres sexuais. (MURRAY, 2015). O segundo episódio, Marceline (Marceline), baseia-se no conto O sangue do cordeiro (Le Sang de l’Agneau), de Mandiargues. No início do século XIX, a adolescente Marceline Caïn (Gaëlle Legrand) passa seu tempo livre com Souci, seu coelho branco de estimação, vivendo momentos íntimos no gramado. Os pais burgueses, Monsieur e Madame Caïn (Yves Gourvil e France Rumilly), irritados por não conseguir controlar o comportamento selvagem da filha, que come salada com as mãos, preparam com a cozinheira Floka (Lisbeth Arno) uma caçarola de coelho (cozinhando Souci) para o jantar, dizendo ser uma caçarola de ovelha, e revelando a verdade apenas depois que ela terminava de comer seu amado Souci, todos rindo da lição macabra que davam à menina rebelde. Marceline deixa o jantar infernal em silêncio, carregando um pedacinho do coelho, que ela guarda numa caixinha em seu quarto. À noite, Marceline visita o jovem entregador local, Pétrus (Assane Fall), no matadouro onde ele trabalha e perde a virgindade no curral de ovelhas, desmaiando ao ver seu próprio sangue. Pétrus pensa ter matado a garota e se enforca, percebendo seu erro pouco antes de expirar. Marceline vê com indiferença seu amante-estuprador morrer na forca, volta para casa com o facão de Pétrus e corta a garganta dos pais. No Orfanato Providência para meninas sem lar, ela encanta as órfãs contando-lhes sua história macabra. No terceiro episódio, Marie (Marie), filmado na moderna Paris, no mesmo estilo cinéma vérité que Borowczyk experimentou em Porque agrado os homens (1976) e Carta de Paris (1976), a jovem Marie (Pascale Christophe) é agarrada numa rua movimentada em frente a uma livraria e enfiada em caixas de papelão coladas pelo sequestrador Antoine (Gérard Ismaël). Ele a joga, algemada, numa van, e a força a exigir por telefone um resgate ao rico marido Mari (Henri Piegay). Mantida na mira do sequestrador, Marie se encontra com Mari noutra rua movimentada perto de um carrossel para obter o resgate, mas seu marido reclama da dificuldade em levantar o valor exigido, embora menor que o de qualquer quadro de sua coleção. Frustrado, Antoine leva Marie a um armazém em desuso e a estupra no chão da van. Felizmente, César, o doberman negro de Marie, ouviu sua conversa telefônica com o marido e começou uma busca frenética pelas ruas de Paris em direção ao Arco do Triunfo, atravessando parques, passando pelos lugares onde Marie esteve, até chegar ao armazém, onde emascula Antoine e, logo em seguida, Mari também, que apareceu ali inesperadamente (teria seguido o cão?). Os dois homens rolam pela rampa e afundam no Sena. Marie, ainda nua, abraça seu cão salvador. (MURRAY, 2015)

Lulu (Lulu, 1980, 95’), produção franco-italiana, realizada a partir da peça O espírito da terra / A caixa de Pandora (Erdgeist / Die Büchse der Pandora), de Frank Wedekind, adaptada por Georg Pabst no cinema mudo, traz Anne Bennent no papel imortalizado por Louise Brooks. A versão borowczykiana da história da dançarina sem coração que traz desgraça a quem se apaixona por ela, e que ascende socialmente relacionando-se com homens ricos, até decair como prostituta das ruas, e ser assassinada por Jack, o estripador (Udo Kier), não conseguiu convencer os críticos, e nem os fãs do diretor. Mas ainda encontramos alguns momentos de cinema na nudez espontânea da desalmada Lulu de Anne Bennent, na frustração do pintor vivido por Michele Placido, na interpretação expressionista de Beate Kopp como a lésbica apaixonada por Lulu e nos cenários teatrais elaborados por Borowczyk.

Em Dr. Jekyll e as mulheres (Docteur Jekyll et les femmes, 1981), com música de Bernard Parmegiani, na Londres do século XIX, durante a festa de noivado do brilhante cientista Dr. Henry Jekyll (Udo Kier) e da bela Fanny Osbourne (Marina Pierro), com a presença de pilares da sociedade vitoriana: um general, um médico, um padre e um advogado, este último chega trazendo a notícia de que uma menina foi assassinada na rua. Enquanto todos assistem à apresentação de uma jovem dançarina, Dr. Jekyll convence o advogado a deixar o caso para certo Mr. Hyde (Gérard Zalcberg). Pouco depois, a dançarina é encontrada estuprada e morta. Logo os convidados percebem que um maníaco com apetite sexual prodigioso tenta estragar a festa de noivado. Mas quem seria o louco? E por que Dr. Jekyll continua a fugir para seu laboratório? Todos sabem a resposta, mas a versão de Borowczyk do conto de Robert Louis Stevenson é repleta de toques perversos, como na cena em que a filha do general oferece as nádegas ao monstro, cujo falo enorme e ereto é visto em silhueta, ou a da besta quebrando as pernas da pianista. Borowczyk rodou o filme em quatro semanas e pretendia intitulá-lo O estranho caso de Dr Jekyll e Miss Osbourne. Fanny Osbourne era o nome da noiva de Robert Louis Stevenson na vida real. Ela teria ficado tão chocada ao ler os manuscritos originais de O médico e o monstro (The Strange Case of Doctor Jekyll and Mr. Hyde, 1886), que Stevenson os queimou e escreveu uma história diferente. O filme pretendia fazer uma homenagem à história original destruída, supostamente mais explícita na narrativa das violências sexuais praticadas por Mr. Hyde. A mudança do título para Dr. Jekyll e as mulheres por razões comerciais desagradou Borowczyk, assim como o título ainda pior escolhido pelos distribuidores italianos: No abismo do delírio. O filme se passa quase inteiramente no casarão do Dr. Jekyll na noite de seu noivado, que se transforma numa esbórnia sangrenta. Mergulhando numa banheira cheia de misturas químicas, Dr. Jekyll se transforma em Mr. Hyde, que se entrega à violência gratuita, à destruição de objetos preciosos e ao estupro, tortura e assassinato de todos os convidados. Quando Fanny Osbourne descobre o segredo do noivo, em vez de matá-lo, ela prefere se banhar no caldo e se tornar uma mulher-monstro, entregando-se às orgias de violência e sexo com seu companheiro mutante. A máscara fria e sinistra de Gérard Zalcberg em contraste com seus movimentos bruscos é o que mais fascina neste filme de terror sexual. O veterano ator britânico Patrick Magee interpreta o general com suas caretas desvairadas, levando aos limites da paródia sua caracterização horripilante do intelectual cuja esposa é estuprada e que fica paralítico em Laranja mecânica (A Clockwork Orange, 1971), de Stanley Kubrick. Para Borowczyk, Jekyll é tão horrível quanto Hyde, pois se jacta de transformar Henry numa bomba de puro prazer, enfrentando a sociedade sob a máscara da respeitabilidade inquestionável para, no instante seguinte, jogar fora a civilidade e chafurdar no crime. Hyde permite que Jekyll faça tudo o que lhe é proibido com uma máscara que lhe garante a impunidade. Na era vitoriana, como na modernidade, é necessário se esconder. A polícia e a justiça vigiam a todos. Jekyll sempre desejou fazer o mal, mas a hipocrisia da educação o impedia. Se revelasse sua natureza, seria eliminado imediatamente.

O amigo Mandiargues prefaciou o livro Borowczyk: Cinéaste Onirique (1981), lançado junto com o filme, que deu a Borowczyk o prêmio de Melhor Diretor no Sitges Film Festival de 1981. Os fãs de Borowczyk o consideram um de seus melhores trabalhos. Mas na época Dr. Jekyll e as mulheres nem foi lançado nos EUA, permanecendo apenas uma semana em cartaz na Inglaterra. Somente em 2015 o filme foi redescoberto na versão restaurada pela Arrow Films. Visto hoje, seu imaginário demencial chega a ser engraçado.

Em A arte de amar (Ars Amandi, 1982), realizado na Itália, com trilha musical de Luis Bakalova, Borowczyk seguiu Pasolini em sua escolha de atores, colocando, ao lado de sua musa Marina Pierro, o velho galã do cinema fascista Massimo Girotti e pasoliniana Laura Betti, que o italiano havia reunido quatorze anos antes em Teorema (Teorema, 1968). O filme é baseado em A arte de amar, de Ovídio. Claudia (Marina Pierro) é a esposa do comandante romano Macarius (Michele Placido) na Roma de Augusto. Enquanto o marido está na campanha em Gaul, Claudia toma por amante o jovem estudante Cornelius (Philippe Taccini). Nos dias atuais, a jovem arqueóloga Claudine Cartier (Marina Pierro) viaja de Roma a Paris. Nas duas histórias, Macarius simbolizaria a ordem moral e Claudia/Claudine o amor livre. Borowczyk entrou em conflito com seus produtores que adicionaram cenas de sexo explícito na pós-produção, o que fez com que o filme sofresse censura na Itália. A arte de amar representou a França no Festival International de San Sebastián em 1983, mas foi um fracasso comercial. Para Pierro, seria um dos melhores filmes do diretor.

Borowczyk retornou à animação com Scherzo infernal (Scherzo Infernal, 1984, 5’). No inferno, o Demônio e sua esposa Kanalha têm sete filhos que se destacam por suas profissões malignas. Mas o filho caçula Fastro deseja ser piloto para matar insetos, num plano complicado para exterminar a humanidade. O Demônio não aprova o projeto do seu rebento, assim como, no céu, Deus se decepciona com o anjo feminino Puréa, que lhe confessa com a cara lavada seu sonho de ser prostituta. O encontro de Fastro com Puréa, através de um coito monstruoso, dá nascimento a um ser perfeito: o ser humano.

Em todos os filmes de Borowczyk, mesmo nos piores, como o erótico comercial Emmanuelle V (Emmanuelle 5, 1987), percebemos, na textura e plasticidade das imagens, a mão do artista gráfico, pintor e animador formado na Academia de Artes de Cracóvia. Resvalando para a pornografia soft, o diretor atraiu o desprezo dos críticos, mas sua obra fortemente ancorada na tradição do Surrealismo ainda não foi devidamente avaliada.

Cerimônia de amor (Cérémonie d’amour, 1988, 87’), baseado na novela Tudo desaparecerá (Tout disparaîtra, 1987), de Mandiargues, é um pesadelo erótico envolvendo Hugo Arnold (Mathieu Carrière), um homem refinado que compra e vende roupas da moda e vive num belo apartamento antigo no centro de Paris e a misteriosa atriz-prostituta de origem judia Miriam Gwen (Marina Pierro), que ele encontra se maquiando num vagão do metrô de Paris. Os dois vivem uma folia a dois na escadaria do metrô, num banco de jardim e depois no apartamento da atriz, cheio de borboletas do Brasil, experimentando variados ritos do sexo, até que a jovem submissa se revela uma dominatrix cruel, invertendo os papéis com seu mestre e o torturando até quase matá-lo. Andando descalço em camisola nas margens do Sena, Hugo tenta comprar um livro num buquinista, mas não tem dinheiro. Uma senhora dá uma esmola ao jovem desgrenhado. Ele segue em frente e encontra outra prostituta que emerge nua de dentro do rio. Hugo a veste e joga as chaves do seu apartamento no Sena, pois não sabe mais quem é. Depois de vestida, a jovem se mata com um punhal de prata. Hugo é acusado do crime. Ele não reage, sendo levado à prisão por policiais, acompanhado por curiosos, que pedem sua morte. Toda a ação do filme transcorre durante cinco horas numa bela tarde de verão em Paris. A femme fatale destrói o machista entrando em seu jogo para, sem que ele se aperceba, virar a mesa e reduzi-lo a um homem-objeto. O filme foi exibido no Festival International do Filme Fantástico de Avoriaz em 1988 e obteve sucesso comercial na Itália, onde foi lançado como Regina della Notte (Rainha da noite). Como não foi bem na França, Borowczyk acusou o produtor Alain Sarde de não ter se empenhado em promover seu filme depois de recusar seu pedido de incluir cenas de sexo explícito na edição final. Em 2005, a Cult Epic Films lançou o filme em DVD com as duas versões do filme: a do produtor, com 97 minutos, lançada no cinema com as cenas de sexo explícito que ele enxertou no filme; e a versão do diretor, de 87 minutos. As duas versões também foram incluídas no Blu-ray do filme lançado pela Kino Lorber em 2020.


O último filme de Borowczyk com a musa Pierro foi Um tratamento justificado (Un traitement justifié, 1990, 27’), episódio da série erótica de TV Série Rosa: As obras-primas da literatura erótica (Série Rose: Les Chefs d’œuvre de La Litterature Erotique, 1986-1991), em coprodução França-Alemanha, adaptado do quinto conto da sétima noite do Decameron de Boccaccio. O ciumento marido de meia-idade (Witold Heretynski) da adúltera Bianca (Marina Pierro) se disfarça de padre para ouvir suas confissões e descobre que ela ama um padre que a visita à noite. O marido a prende no quarto e se põe de guarda para surpreendê-lo. Mas Bianca traz para sua cama o amante - que não é padre, mas um jovem vizinho - por meio de uma fresta na parede do quarto.

O segundo episódio dirigido por Borowczyk para a Série Rosa foi Almanaque dos endereços das senhoritas de Paris (Almanach des adresses des demoiselles de Paris, 1990, 28’), baseado no Almanaque das senhoritas de Paris, de todos os gêneros e de todas as classes, ou O calendário do prazer (Almanach des demoiselles de Paris, de tout genre et de toutes les classes, ou Le calendrier du plaisir, 1791), publicado na França após a descriminalização da prostituição e que catalogou as senhoritas de Paris com seus nomes, endereços, personalidades, tarifas e especialidades.

Em 1991, Borowczyk dirigiu mais dois episódios para a Série Rosa: O lótus dourado (Le lotus d’or, 1991, 29’), com roteiro de Patrick Pesnot adaptado do romance homônimo do escritor chinês Jin Ping Mei; e A esperta Halima (L’experte Halima, 1991, 26’), escrito por Yves Belaubre a partir da narrativa História de Kamar e da Esperta Halima, de As mil e uma noites, onde o vigoroso Kamar, recém-chegado em Bassa, hospedado por Obeid, apaixona-se por Halima, a jovem esposa do anfitrião, e tenta dormir com ela à noite.

Estes foram os últimos filmes de Borowczyk, que viveu mais quinze anos, sem nada filmar, contudo, esquecido da crítica e do público. Borowczyk morreu em 2006 por complicações cardíacas, deixando um legado de 60 curtas-metragens, 14 longas-metragens e quatro episódios de série de TV.

A musa de Borowczyk, Marina Pierro, tornou-se diretora e realizou três curtas-metragens: Em versos (In Versi, 2008), rodado na biblioteca do Mosteiro de São Bento em Subiaco, cujo vasto catálogo de raros manuscritos religiosos e clássicos latinos atraiu eruditos alemães no período renascentista; Himorogi (Himorogi, 2012, 17’), uma homenagem a Walerian Borowczyk, com música de seu compositor favorito, Bernard Parmegiani; e Floaters (2016), um retrato do artista Alessio Pierro, que aprendeu cinema com Borowczyk e explorou com ele diversas técnicas de pintura.

Daniel Bird, autor de Boro, Walerian Borowczyk (2017), realizou três documentários sobre o artista: (1) Profligate Door: Borowczyk’s Sound Sculptures (2014, 13’), sobre as esculturas sonoras de madeira e metal que Borowczyk criava – engenhocas barulhentas e surrealistas que, ativadas diante da câmera pelo curador Maurice Corbet, podiam assustar os desavisados; (2) Film is not a Sausage: Borowczyk and the Short Film (2014, 28’), que destaca o Borowczyk designer e animador, com entrevistas do diretor e de seus colaboradores, como o produtor Dominique Duvergé-Ségrétin (Pantelion Films), compondo o retrato de um gênio solitário para quem a animação era um descanso e uma necessidade psicológica – Borowczyk criava móveis com órgãos sexuais, caixas misteriosas e objetos inúteis que o encantavam; (3) Obscure Pleasures: A Portrait of Walerian Borowczyk (2014, 63’), que celebra o artista-provocador, sempre às voltas com as acusações de ser um pornógrafo (BITTENCOURT, 2015).

O documentário Love Express: O desaparecimento de Walerian Borowczyk (Love Express: The Disappearance of Walerian Borowczyk, 2018), de Kuba Mikurda, produzido pela HBO Europa, reviu a obra de Borowczyk e as polêmicas que ela desencadeou. Os filmes do cineasta nunca foram inteiramente apreciados, sendo ainda geralmente mal lançados e pouco vistos. Eles estavam à frente de seu tempo, mas já ultrapassados por ele, com os cineastas mais ousados da Europa ocidental redefinindo o futuro do erotismo, por sua vez abalado com a irrupção da AIDS, que ceifaria milhões de vidas.

Quando o maior sucesso de Borowczyk, Contos imorais, estreou no Festival de Locarno numa exibição ao ar livre para 2.000 espectadores, uma tempestade irrompeu no meio da sessão. Todos permaneceram sentados sob a chuva até o fim da projeção. Borowczyk foi então até o bar mais próximo, onde avistou um grupo de artistas alemães sentados com o diretor Rainer Werner Fassbinder. Quando Fassbinder viu Borowczyk, gritou: “Borowczyk, por que não havia nenhuma ereção masculina em seu filme?”. Borowczyk respondeu: “Havia na multidão, apesar da tempestade e dos relâmpagos.” (MIKURDA, 2015).

A piada de Borowczyk tergiversava a questão colocada por Fassbinder: de fato, em toda a obra efusivamente erótica de Borowczyk, o homoerotismo masculino praticamente inexiste, sendo seu erotismo centrado e limitado às relações homem-mulher. Grupos feministas criticavam a parcialidade das lentes de Borowczyk, focadas na exploração da nudez feminina. Contra-argumentando, o crítico Scott Murray, fã do cineasta, destacou a presença marcante da nudez masculina no episódio Margherita, de As heroínas do mal; ele percebeu no cabaré-bordel de O armário dois homens se beijando e lésbicas nuas no vestiário, “cenas homoeróticas raras no cinema de Borowczyk”, ou seja, exceções (como a onanista lésbica de Lulu) que confirmavam a regra.

Murray observou ainda que, numa sequência emblemática de Margherita, de As heroínas do mal, Borowczyk fez uma reflexão sobre seu cinema, que eu prefiro entender como uma reflexão sobre os dois erotismos após o questionamento de Fassbinder:

Quando o Papa (Jean Martinell) visita Michelangelo (Roger Lefrere) com uma miniatura das Três Graças de Raffaello, que ele carrega consigo o tempo todo, Michelangelo menospreza aquela pintura (como Fassbinder menosprezara Contos imorais): Elas se assemelham a três bolas de manteiga rançosa. Mas e o enquadramento, o ritmo? Se um pintor não reconhece a estrutura muscular interna do corpo humano, então tudo o que ele vai fazer é camuflá-lo, como se estivesse em bolas de gordura. Irritado, o Papa dispara: É importante que um pintor também acolha a graça em suas telas. Michelangelo (como Fassbinder) estava mais interessado em músculos, era um artista do corpo masculino. As mulheres em suas telas e esculturas possuem corpos masculinos sobre os quais o artista acoplou um par de seios. Já Raffaello (como Borowczyk) estava mais interessado na forma feminina, excitando-se com todas as suas curvas e dobras (MURRAY, 2015).

Borowczyk projetava suas fantasias sexuais em heróis falidos. As mulheres de seus filmes existiam para satisfazer essas fantasias, fossem elas vítimas dos homens, como Glossia (Goto, a ilha do amor) e Blanche (Blanche) ou “heroínas do mal”, como Thérèse, Elizabeth, Lucrezia (Contes Immoraux), Marceline, Margherita, Marie (Les Héroïnes du Mal), Mériem (Cérémonie d’Amour) e Fanny (Dr. Jekyll et les Femmes). Borowczyk pensava as mulheres como corpos a serem explorados por sua câmera/falo, ainda que depois dessa exploração elas se destacassem da condição objetal e se vingassem sadicamente de seus amantes/violentadores.

Por um lado, Borowczyk empoderava suas heroínas, sempre transgressoras da norma: elas gostavam do sexo solitário (A filósofa Thérèse), da bestialidade (A mulher e a besta, Marceline), matavam por dinheiro (Margherita), abortavam seus filhos (Rosalie, Lucrécia Borgia), massacravam outras belas jovens para manter sua própria juventude e beleza (A condessa Bathory), triunfavam sobre o sequestro e o estupro (Marie), torturavam seus torturadores (Cérémonie d’Amour), tornavam-se monstruosas como seus companheiros (A mulher e a besta, Dr. Jekyll e as mulheres) (MURRAY, 2015). Declarou o cineasta:

 

Sigmund Freud escreveu: o sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (reprimido, retido). Com certeza, o filme é uma válvula de segurança para instintos condenados. Ele filtra. O indivíduo se vê refletido, se liberta e não machuca ninguém. Identifica-se com o que vê, mata por um intermediário e vive uma experiência no cinema. Pessoas comuns reagem bem. Não precisam carregar uma máscara. (BOROWCZYK apud MURRAY, 2015).

 

Por outro lado, as transgressões de suas heroínas eram assimiladas pelo universo normal, pelas “pessoas comuns”, que tinham essas fantasias heterossexuais, sem a coragem de realizá-las. O erotismo transgressivo de Borowczyk permanecia no campo da heterossexualidade, sem transbordar para o campo da homossexualidade: transgressões homossexuais não seriam aceitas pelas “pessoas comuns”, seu público normal não reagiria bem ao sexo entre dois homens como reagiam bem ao sexo entre mulher e homem, mulher e coelho, mulher e cão, mulher e besta. Podemos, assim, associar Borowczyk a outros cineastas da “revolução sexual” parcial do período, como Jean Rollin e Roger Vadim. Este último observou em sua autobiografia:

 

Ainda me surpreendo com a obsessão de jornalistas e parte do público pelo erotismo e a nudez em meus filmes. Nos cento e dez minutos de O perigoso jogo do amor, contei apenas três minutos e meio em que Jane (Fonda) é vista parcialmente nua, e nunca aparece completamente despida. Falaram dessas cenas como se Jane andasse nua o filme inteiro. De onde vem essa fixação? O símbolo bíblico de Eva e a serpente está mais incrustado em nosso inconsciente do que imaginamos. Uma mulher nua deve permanecer inocente. Quando ela descobre o prazer sexual, desencadeia sobre o mundo todos os males que atormentam a humanidade. (VADIM, 1986, p. 284).

 

Vadim, que se casou com as mais belas estrelas da época – Brigitte Bardot, Catherine Deneuve e Jane Fonda , também voltava sua câmera para a Eva nua, em filmes como E Deus criou a mulher (Et Dieu… créa la femme, 1956), Barbarella (Barbarella, 1968) e Se Don Juan fosse mulher (Don Juan ou si Don Juan était une femme, 1973), relegando o Adão nu a um segundo plano. Nesse sentido as pinturas clássicas de Adão e Eva cediam mais espaço à nudez masculina que os filmes eróticos do período.

Uma exceção quase surrealista em sua visão desavergonhada do mito adâmico foi o filme mexicano O pecado de Adão e Eva (El pecado de Adán y Eva, 1969), de Miguel Zacarías. Fora dos padrões do gênero bíblico de Hollywood e aprofundando a linha exploratória aflorada em Adán y Eva (1956), de Alberto Gout, timidamente visitada no episódio da Queda em A Bíblia (The Bible… In the Beginning, 1966), de John Huston, o filme lembra mais as heresias de Luis Buñuel, com seu solitário Adão vagando pela Terra inóspita, recordando-se dos dias felizes e inocentes que viveu no Éden (ornamentado com enormes flores coloridas de papel crepom), sem vergonha de sua nudez, até que Eva, tentada pelo Diabo sob a forma de serpente, come o fruto proibido e o incita a fazer o mesmo, desencadeando a cólera divina. Zacarías explorou ao máximo a nudez de Jorge Rivero, o mais suculento beefcake do cinema mexicano, destacando mais seu corpo que o da desconhecida atriz americana Candy, também conhecida como Candy Cave ou Candy Wilson.

Contudo, nesse período, o homoerotismo permanecia bem trancado no armário do cinema underground. Sobre o diretor polonês, Alberto Moravia escreveu: “Borowczyk é um daqueles diretores que nos ajudam a entender que a revolução sexual dos últimos anos é algo positivo, benéfico, e esperemos permanente.” Sem o perceber, Moravia dava razão a seu amigo Pasolini na polêmica sobre o aborto, em que este o atacou, justamente, ao denunciar a revolução sexual como uma nova fase da repressão sexual, ao conceder liberdade somente ao casal heterossexual. Pasolini atribuía à revolução sexual a miséria erótica em que os homossexuais foram relegados com o fim de suas aventuras com os jovens heterossexuais. Antes da revolução sexual, os jovens aprendiam a fazer sexo e satisfaziam seus desejos com prostitutas e homossexuais pelas dificuldades de seduzir suas namoradas virgens. Sem as facilidades introduzidas pela pílula anticoncepcional e pelo aborto legal, as jovens que cediam aos avanços dos namorados antes do casamento corriam o risco de engravidarem e abortarem perigosamente, caindo na boca do povo como “mulheres fáceis”, restando-lhes então a prostituição - como nos filmes de Borowczyk ambientados na Idade Média e nos séculos XVIII e XIX. Maravilhosa para os casais heterossexuais, a revolução sexual lançou os homossexuais num gueto intransponível.

Em 1975, Pasolini desmascarou a falsa tolerância do poder abjurando sua Trilogia da vida e realizando o “canto fúnebre do erotismo” em Salò, proibido em todo o mundo – ele seria, no mesmo ano, brutalmente assassinado (NAZARIO, 2007). Se pensarmos no encontro tempestuoso entre Fassbinder e Borowczyk na estreia de Contos imorais, podemos rever Querelle (Querelle, 1982) como uma acachapante resposta cinematográfica do diretor alemão à revolução sexual e à piada tergiversionista que o colega polonês lançou para justificar sua visão exclusivamente heterossexual do erotismo.

O erotismo de Borowczyk foi festejado pelos surrealistas: Contos imorais ganhou o Prix L’Âge d’Or, criado na França para comemorar o espírito do surrealismo (BIRD, 2014); e reprimido na Inglaterra: a Censura Britânica cortou sete minutos do filme – incluindo uma cena em que uma pérola é introduzida numa vagina. Na Polônia, sempre que um filme de Borowczyk era apresentado, uma igreja de Katowice celebrava uma missa para rezar pelas almas de seus distribuidores (STASZCZYSZYN, 2019).

Contudo, a repressão moralista e religiosa encobria a repressão mais profunda de toda a sociedade - a censura generalizada ao homoerotismo, praticamente banido do cinema. Mesmo censurado em alguns países, Contos imorais arrecadou na França a segunda maior bilheteria do ano, sendo a primeira conquistada por Emmanuelle, outro filme erótico produzido para o grande público heterossexual. (COUZENS, 2014).

O sucesso popularesco de Borowczyk desagradou os críticos, para os quais ele havia ultrapassado os limites da provocação legítima ao favorecer mais a exploração que a arte, obtendo as graças de uma audiência vulgar ao preço da sua até então boa reputação de cineasta-artista, premiado que fora nos festivais de Manheim, Bérgamo, Veneza, Oberhausen, Bruxelas, Annecy, Bilbao, Berlim, Melbourne, Locarno, Tours, Knokke-le-Zoute e Cracóvia.

Embora Borowczyk detestasse ser chamado de surrealista, Michael Richardson o elencou entre os cineastas que “participaram diretamente do surrealismo por um tempo, mas não de forma totalmente comprometida.” (RICHARDSON, 2006). O diretor também rejeitava a qualificação de eróticos para seus filmes, por mais eróticos que fossem. Declaradamente endereçada aos “corajosos, peculiares e ecléticos”, a obra de Borowczyk permanece atraente e repulsiva em sua estranha mescla de infantilismo com violência, de animação com ação ao vivo, de arte com pornografia, incapaz de arrebatar a crítica e de cativar o público, sempre a meio caminho da poesia e da vulgaridade.

 

Referências

AA.VV. Walerian Borowczyk. Montreuil: Édition de l’Oeil / Annecy: Communauté de L’Agglomération d’Annecy, 2009.

ADLER, Sue. Enticements to Voyeurism. Cinema Papers, n˚ 50, fev.-mar. 1985.

AESTHETICA, 19 mai. 2014. Disponível em: https://aestheticamagazine.com/interview-ica-curator-juliette-desorgues-walerian-borowczyk.

ATKINSON, Michael. Borowczyk, cinéaste onirique: Le cas étrange du Dr Jekyll et Miss Osbourne. Prefácio de André Pieyre de Mandiargues. Paris: La Vue / Éditions Walter / B. Diffusion, 1981.

BENDAZZI, Giannalberto, BENDAZZI, Giannalberto. Cartoons. One Hundred Years of Cinema Animation. Bloomingnton/Indianapolis: Indiana University Press, 1995.

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LUIZ NAZARIO | Professor Titular na área de Cinema e História na Escola de Belas Artes da UFMG. Doutor em História Social pela USP. Bolsista de Produtividade do CNPq entre 2003 e 2018, com pesquisas sobre Animação Expressionista e Cinema e Holocausto. Autor de diversos livros, dentre os quais: Autos-de-fé como espetáculos de massa (Humanitas, 2005); Todos os corpos de Pasolini (Perspectiva, 2007); e O cinema errante (Perspectiva, 2013).

 

 


FERNANDO FREITAS FUÃO | Arquiteto, artista e ensaísta brasileiro, nascido em 1956. Começou a fazer colagens em 1975, no mesmo ano em que ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas (1975-81). Em 1987 vai a Barcelona cursar o doutorado na Escuela Técnica Superior de Arquitetura, desenvolve a tese Arquitetura como collage. Em 2011, publica o livro A collage como trajetória amorosa (Editora UFRGS). Possui uma série de artigos e ensaios que giram em torno a Collage, assim como textos publicados sobre alguns collagistas. Articula interlocuções da collage com a filosofia, a arquitetura, a psicologia e a educação. Desenvolveu a pesquisa A collage no Brasil, arquitetura e artes plásticas, sob o viés do surrealismo (1992-1995. CNPq). Pertenceu ao Grupo Surrealista de São Paulo, liderado por Sergio Lima e Floriano Martins durante os anos 1990. Ministrou desde então uma série de cursos e oficinas sobre collage. Mantém o blog http://mundocollage.blogspot.com/ e https://fernandofuao.blogspot.com/

 

  



Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 11

Número 210 | junho de 2022

Artista convidado: Fernando Freitas Fuão (Brasil, 1956)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

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