Pelos idos de 1917, Breton era já o líder que visitava,
no quai de Bourbon, nº 41, o amigo Soupault, que Apollinaire lhe havia apresentado.
Breton saía da residência de Philippe Soupault para passear com o amigo pela ribeira
do Sena. A vitalidade do rio de Paris exercia uma fascinação extrema sobre ambos.
Naquele tempo, eles escreviam poemas para a revista Nord-Sud, de Pierre Reverdy.
Após repousar alguns preciosos momentos nos
bancos terapêuticos do jardin du Luxembourg, saio pela porta que ladeia o boulevard
Saint-Michel. Descubro, em pleno boulevard Saint-Michel, no número 64, o prédio
onde viveu, de 1872 até sua morte, em 1894, Leconte de Lisle, nascido em Réunion,
em 1818.
Cruzo a rue Auguste Comte, a rua Herschel e
a rue Michelet. Chego à rue du Val-de-Grâce, que me revela a altaneira cúpula da
antiga Église du Val-de-Grâce, esplêndida, com seus pináculos e sua abóbada azul-lavanda.
De um assento na place Alphonse Laveran (primeiro
prêmio Nobel de medicina francês), ao lado de uma fonte que murmura, vejo o grandioso
monumento, que é a École du Val-de-Grâce. Nesse local, Aragon e Breton se encontraram
pela primeira vez, na condição de estudantes de medicina, recrutados para servir
ao exército francês, durante a Primeira Guerra Mundial.
Ana
de Áustria instalou os beneditinos nas antigas dependências de um rústico mosteiro
que ali existia, em 1616, que Louis XIV transformou em igreja em 1645. Posteriormente,
em 1795, a igreja se tornou hospital militar, que, desde 1850, acolhe a École d’Application
du Service de Santé.
A horripilante experiência da
guerra marcou Breton profundamente. No dia 6 de agosto de 1918, ele esteve três
vezes coberto de terra em Couvrelles, durante um bombardeio. Passou por morto pela
administração militar. Ele, como todos os sensíveis artistas de sua geração, abominou
aquele absurdo de assassinatos, promovido por estadistas energúmenos e psicopatas.
Em 1919, Breton toma conhecimento
da existência do dadaísmo anárquico, criado no Cabaré Voltaire, em Zurique, pelo
romeno Tristan Tzara, e lhe propõe intercâmbio. Em seguida, reúne-se com Philippe
Soupault, Louis Aragon e Paul Éluard, ao pé da estátua de Jean-Jacques Rousseau,
ao lado de seu antigo domicílio, na place du Panthéon, 17. Na livraria de Adrienne
Monnier, na rue de l’Odéon, Éluard os apresentou a Jean Paulhan, diretor das edições
Gallimard. Foi, também, na citada livraria que Breton tomou conhecimento da obra
de Lautréamont, que com Rimbaud e Apollinaire constituiu a tríade de refletores
que clarearam o ideário surrealista.
Tristan Tzara chega a Paris em 1920, com o propósito
de subverter a ordem estabelecida, e recebeu o apoio de André Breton, Louis Aragon,
Philippe Soupault e Paul Éluard, que já haviam publicado os textos “dadas” de Tzara
na revista Littérature, iniciada em 1919.
Aquela escrita, como produto imediato da espontaneidade e aspiração à pureza irracional
da criação literária, tinha tudo a ver com o surrealismo.
No café La Source, no boulevard Saint-Michel, nº
35, (que hoje é um supermercado), Breton leu Les champs magnétiques para
Éluard e Aragon e estes admiraram a voz nova de Breton e Soupault, aqueles colegas
de ofício, de extraordinária imaginação, com os quais instauraram o cânone moderno
da poesia.
Depois de Les
champs magnétiques, que são de 1920, Breton criou o Clair de terre, em 1923, dedicado a Éluard, com a marca indelével que
distinguirá sua obra: o redemoinho das imagens e o canto da esperança e da liberdade.
Veio, em seguida, Les pas perdus (1924),
volume que contém recordações do tempo em que estava a serviço do centro de neurologia
em Nantes, em 1916. Nesse prematuro livro, Breton consolida sua estética inovadora.
Por essa época, Breton conheceu o doidíssimo Jacques Vaché, aquele que, durante
a apresentação da peça Les mamelles de Tirésias,
de Apollinaire, fez uma tremenda confusão no Conservatoire Maubel, empunhando uma
arma e interrompendo o espetáculo.
Indignado com a guerra de 1914-1918, que considerava
uma cloaca de sangue, de lama e de estupidez, Breton decidiu lutar, com as armas
da literatura, para tentar mudar a ordem social e política, assinalando sua oposição
a todo tipo de arbitrariedade e opressão. Com esse espírito de liberdade, resolveu
liderar o grupo dos surrealistas, na ânsia de subverter aqueles valores que para
ele “não resistiam ao exame”.
O termo surrealista vinha de 1917, dos tempos em
que ele e Soupault conheceram Apollinaire, cuja peça Les mamelles de Tirésias, era apresentada no Conservatoire Maubel, também
chamado de Thêatre Renée-Maubel, em Montmartre. Naquela ocasião, em que seu autor
a subtitulava de drama “sur-réaliste”, Max Jacob dirigiu o coro e Phillippe Soupault
ficou nos bastidores, soprando as palavras que os atores, nada profissionais, esqueciam.
André Breton tentou convencer seu amigo Jacques Vaché a não interromper o espetáculo,
sacando um revólver. Mas Vaché não o atendeu. Ameaçou todo mundo, por julgar a peça
escandalosa e discordar de sua concepção cênica.
Num encontro auspicioso, ocorrido na primavera de
1922, os pioneiros do surrealismo admitiram Robert Desnos, de 22 anos, entre seus
pares. Breton tinha 26 anos nesse tempo: “il était très brun – avec le regard étrangement
lointain – l’oeil d’un bleu clair très volié, de dormeur éveillé”, diz ele de seu
amigo Desnos, no livro Perspective cavalière,
em artigo escrito mais de três décadas depois daquele entusiástico momento da revolução
surrealista.
Dois grandes feitos na edificação da literatura de
Breton surgirão, seguidamente: o Manifesto
Surrealista e a revista La Révolution
Surréaliste, lançados, em 1924, quase que simultaneamente. Nesse primeiro Manifesto Surrealista, viriam a lume sua
exortação ao não conformismo, sua negação do racionalismo como método de investigação
da realidade para além dos fatos que dependem estritamente de nossa experiência
e a proposta da escrita automática, em que, pelo automatismo psíquico, se pudesse
expressar o pleno funcionamento do pensamento. O estudo dos sonhos, por parte de
Freud, o influenciará, sobremodo, no sentido da abertura das portas da percepção.
Breton, quando jovem, não escatimava certa exaltação
dos impulsos. Um artigo ofensivo de Jean Paulhan, publicado a seu respeito na Nouvelle Revue Française (NRF), estragou-lhes
a amizade. Breton respondeu com termos de descompostura e baixo calão. Por pouco
não ocorre um duelo entre ambos. Paulhan já escolhera as testemunhas, quando Breton
desistiu do desafio mortal.
A rua de Condé cruza a rua de l’Odéon no Carrefour
de l’Odéon, na praça Henri Mondor, onde se vê a estátua de Danton e o cinema que
leva o nome do temeroso revolucionário. Por ali passa o boulevard Saint-Germain,
que conflui triangularmente com a rue de l’École de Médicine.
A rua Danton fica num ângulo mais aberto da
área triangular, formada pela rue de l’École de Médicine, o boulevard Saint-Germain
e a rue de l’Éperon. Entre vias públicas sinuosas e assimétricas, no número 8 da
rue Danton, existiu a Salle des Sociétés Savantes, onde aconteceu um dos episódios cômicos da parceria dos surrealistas
com os dadaístas: o julgamento de Maurice Barrès, em forma teatral, em 1921, por
“atentado contra a segurança do espírito”. Constatei que hoje funciona ali uma livraria
que vende obras editadas pela Sorbonne.
Breton presidiu o tribunal em que seria julgado um
“cultor da personalidade e um traidor”. Aragon e Soupault foram os defensores. Tzara
foi o acusador. Barrès foi, na ocasião, representado por um manequim. O episódio
repercutiu negativamente para Tzara. Certos meios de comunicação o responsabilizaram
como o principal mentor daquela afronta a Maurice Barrès, fato que despertou, em
muita gente, a rejeição do dadaísmo. O jornal Le Matin do dia 15 de maio de 1921 publica: “Dada exagère. Le passeport de ce bruyant étranger est-il bien en règle?”
Pela infelicidade desse comentário,
Tristan Tzara sentiu-se discriminado pela sociedade francesa.
A partir de 1922, Breton morou “au pied de la Butte”,
na rue Fontaine, 42, perto da place Blanche, endereço onde residiu por mais tempo.
Ele fez funcionar ali o centro do movimento surrealista e o local do acervo de obras
de arte que colecionou, atualmente expostas no museu do Centro Georges Pompidou.
Fez na residência da rue Fontaine seus exercícios de criatividade com Benjamin Péret,
Robert Desnos, Yves Tanguy, René Crevel e Marcel Duhamel. René Crevel e Robert Desnos
rivalizavam no discurso divinatório das experiências com a escrita automática e
a mediunidade hipnótica do sono. Poesia, para eles, significava transcender as balizas
do racional.
O surrealismo evoluiu em experimentos versáteis que
incluíam desde protestos anarquistas até experiências espiritualistas, quando Breton
dirigia as sessões em que Robert Desnos conversava com os espíritos e escrevia mediunicamente.
Segundo o crítico Gilles Plazzy, no livro Le Paris surréaliste, os surrealistas se
inspiravam, muitas vezes, mediante o consumo de cocaína, desde o começo daquela
década do século XX.
Um dia do ano de 1923, André Breton foi, com Aragon
e Soupault, ao cimo da “Butte”, pela rue Cortot, visitar Pierre Reverdy, que se
tornara o editor dos três, na revue Nord-Sud.
Eles saudaram, pelo caminho, num gesto simbólico, a estátua de Le Chevalier de la
Barre, que foi torturado, decapitado e queimado, em 1766, por haver recusado descobrir-se
(retirar o chapéu) diante da passagem do Santo Sacramento. Jean de la Barre, figura
histórica dos tempos do reinado de Louis XV, representava para eles o mártir da
liberdade.
A rivalidade entre dadaístas e surrealistas era inevitável.
Tzara não admitia nenhuma tentativa de estabelecer linhas diretivas no que entendia
como o niilismo espontâneo que caracteriza essencialmente toda obra de arte, Nesse
sentido, tentou boicotar o Congresso Surrealista Internacional de Paris, que Breton
organizou em 1922.
Quando Tzara realizou, em 1923, a “soirée” da peça
Le coeur à gaz, com músicos, aconteceu
uma “bagarre”: Pierre de Massot disse que Picasso e Gide eram mortos no campo da
honra. Breton tomou as dores e o agrediu com uma vara como fizera Rimbaud com o
fotógrafo Carjat, cerca de 40 anos antes. Éluard, Desnos e Péret tomaram o partido
de Breton. O ator Jacques Baron foi espancado e a polícia afugentou os agressores,
que correram em debandada. Éluard acusou Tzara de indicador de polícia. Tzara processou
Éluard. A ruptura estava consumada.
Com Poisson
soluble, de 1924, Breton prosseguiu fazendo seus representativos exercícios
de reflexão sobre a poesia, mediante a escrita automática, como tentativa de libertação
do ser pela liberação da linguagem. Conhecedor de psiquiatria, admirador de Freud,
Breton não hesitou em utilizar os sonhos como matéria de poesia. A experiência literária
daquele mergulho na imaginação do inconsciente proporcionou-lhes fabulosa fonte
de inspiração e criatividade.
Breton visitava com frequência Prévert, no pequeno
hôtel Montmartre, próximo ao boulevard de Clichy. Deambulava por ali com Robert
Desnos, até o café de Le Cyrano, no boulevard de Clichy, 82, junto ao Moulin Rouge,
na Place Blanche. Em 1925, publicou, com Desnos, o prefácio ao catálogo da primeira
exposição surrealista, na galeria Pierre.
Sua simpatia pelo Partido Comunista Francês resultará
em adesão em 1927, juntamente com Aragon, Éluard e Péret. A militância político-literária
dos quatro começou quando eles se impressionaram com a missão revolucionária de
Trotsky e Lenine, acreditando na compatibilidade entre o comunismo soviético e a
revolução surrealista. Oscilando entre o comunismo e a anarquia, Breton não tinha
nenhum interesse por empresas de guerra e, sendo um libertário na alma, terminaría
por se decepcionar com a imprensa do Partido, ao notar seu desprezo pelo surrealismo.
Parecia-lhe que os militantes viam os surrealistas como suspeitos.
Breton estava de acordo com os termos da Declaração
escrita por Antonin Artaud, em 27 de janeiro de 1925, segundo a qual a ideia da
liberação total do espírito que o movimento surrealista pregava não se subordinava
à necessidade política ou outra. Um ano depois, as controvérsias aumentariam entre
os membros do movimento e sua relação com o Partido Comunista. Enquanto exercitava
a militância política, não cessava a produção poética de Breton, tendo ele escrito,
no ano em tela, o romance experimental Nadja,
cujos originais leu, fragmentariamente, no apartamento da rue Fontaine, para Paul
Éluard e Jacques Prévert.
Diz ele, em Nadja,
que conheceu a personagem de sua ficção autobiográfica quando caminhava pela
rue Lafayette, em direção a l’Opéra, em 1926. Eles conversam num café próximo à
Gare du Nord. Passearam pela rue du faubourg Poissonière. Combinaram um novo encontro
na esquina dessa mesma rua com a rue Lafayette. Ele tornou a ver Nadja, quando caminhava
pela calçada da rue de la Chaussée-d’Antin. Foram à place Dauphine, local retirado,
“um dos piores terrenos vagos de Paris”.
Ao longo de 44 anos, Breton manteve seu endereço
na rue Fontaine, com exceção dos anos em que esteve exilado nos Estados Unidos,
durante a Segunda Guerra Mundial.
No que concerne à vida amorosa, viveu na companhia
sucessiva de três mulheres: Simone Kahn, escritora, filha de um importador de Strasbourg,
com quem se casou, em 1921 (Paul Valéry foi testemunha do casamento); Jacqueline
Lamba, pintora e dançarina, que Breton conheceu no café des Oiseaux, Square d’Anvers,
e com quem se casou em 1934 (com ela viveu até 1942), e Elisa Bindhoff, escritora
chilena, que ele trouxe dos Estados Unidos e com quem se casou em 1945.
O Moulin Rouge é a primeira e mais preciosa visão
que se tem na saída do metrô, na estação Blanche. Aquela sala de diversões dos adeptos
dos “concert clubs” ou “cabarets” semelha um farol aceso no reduzido espaço da praça,
cortada pelas calçadas (promenades), que, no centro do boulevard de Clichy, o dividem
ao meio. Mais adiante, está a place Pigalle, cingida pela fachada rubra dos “cabarets”.
Um grande chafariz na forma de cálice marca a confluência das ruas Pigalle (Jean-Baptiste
Pigalle, escultor, 1714-1785) e Frochot (Nicolas Frochot, préfet de la Seine, 1761-1826).
A rue Fontaine é pitoresca, porque dá exatamente
em frente ao Moulin Rouge, em plena place Blanche. Em seu número 42, funciona atualmente
o teatro Comédie de Paris. A fachada do edifício foi descaracterizada para adaptá-lo
à entrada do teatro. Taparam as janelas e demoliram dois andares da parte superior.
Breton morava no quarto andar do antigo prédio. O atual só tem dois andares. Nota-se
essa transformação, ao observar-se que o edifício vizinho, mais alto, tem a parede
lateral sem reboco, com um cimento tosco que deixa ver os tijolos e aparenta ser
a parte de um todo cuja outra metade foi extirpada.
Em maio de 1926, os surrealistas perturbaram uma
representação dos balés russos, com cenário de Max Ernst e Joan Miró. Segundo Breton,
ambos os pintores haviam pactuado com as potências do dinheiro. Éluard defende Max
Ernst, e tenta reconciliá-los, mas Ernst se sente indignado pela retirada de seus
quadros da galeria Pierre, fato que atribui às tramas de Breton e o chama de traidor
e vendido. Breton alega não ter mandado retirar os quadros de Max Ernst. Apesar
desse balanço, a amizade entre Breton e Éluard resiste e permanece.
O dramaturgo Roger Vitrac se opõe à “ideologização”
do surrealismo e Breton ameaça defenestrá-lo. Artaud defende seu parceiro teatrólogo
e se recusa a continuar colaborando, se Vitrac for afastado do grupo. A ordem do
dia no café Le Prophète foi a exclusão
de Artaud e Soupault, em novembro de 1926. No mesmo ano, o Partido Comunista retiraria
o seu apoio à revista La Guerre Civil,
ante as declarações de independência de pensamento de Breton.
Breton acabou se desentendendo, também, com o seu
parceiro Soupault, coautor de Les champs magnétiques,
de quem já dissera, em caloroso elogio, que era “comme sa poésie, extremement
fin, un rien distant, aimable et aéré”. Ambos escreveram ironias recíprocas e adversas,
em distintos hebdomadários. Em carta, datada de 30 de dezembro de 1928, publicada
no livro André Breton-Paul Éluard, Correspondance, 1919-1938, que reúne as missivas
trocadas entre ambos os poetas, Breton confessa que brigou com Soupault: “cette fois je suis allé trouver Soupault
et je l’ai giflé et je me suis donné le luxe devant Pierre-Qunit de le convaincre
de mensonge” (BRETON; ÉLUARD, Op.cit.).
Raymond Queneau, outro prócer da poesia experimental,
frequentou a Central Surrealista, na rue du Château, convidado por Marcel Duhamel,
o proprietário do imóvel que acolheu grandes artistas, como Tanguy e Jacques Prévert.
Queneau, o fabuloso autor de Zazie e de
Exercices de style, prestou relevantes
serviços à causa surrealista, colaborando na revista La Révolution Surréaliste e, em março de 1929, secretariando um encontro
dos surrealistas, onde se discutiu Trotsky. Contudo, rompeu a amizade com Breton,
ao participar da redação daquele veemente panfleto anti-Breton, intitulado Un Cadavre, em janeiro de 1930, junto com
Georges Bataille, Michel Leiris, Jacques Prévert, Alejo Carpentier, Jacques Baron,
Robert Desnos, J.A. Beiffard, Max Morise, Roger Vitrac e outros.
O Segundo Manifesto
Surrealista data de 1929, ano em que o poeta se separa de Simone Kahn. Editado
na revista Révolution Surréaliste, o Second Manifeste apresenta um balanço do
que foi conseguido até então com a proposta surrealista de contestar o sistema de
envilecimento preponderante na sociedade humana. Nessa formulação amadurecida de
sua estética, Breton reitera que não aceita a arte se restringir às correntes que
determinam a evolução econômica e social da humanidade. E conjectura sobre o que
seria uma sociedade em que a maioria não tivesse de ter tanto constragimento ao
preocupar-se com o pão cotidiano. Uma coletividade em que lavanderias comunais lavassem
bem a boa roupa de todo o mundo, onde as crianças, bem alimentadas, com boa saúde
e alegres, absorvessem os elementos da ciência e da arte como o ar e a luz do sol,
e onde, por fim, o egoísmo liberado do homem não tendesse senão ao conhecimento,
à transformação e ao melhoramento do universo.
Se a amizade com Soupault esfriou, quando este se
recusou a aderir ao Partido Comunista, em 1927, o intercâmbio de Breton com Aragon
foi prejudicado pelo motivo contrário, isto é, a manutenção do partidarismo incondicional
por parte de Aragon, quando Breton passou a rejeitar a autoridade do Partido Comunista
sobre a atividade surrealista.
Breton formava
com Aragon e Soupault o trio denominado ironicamente “Les Trois Mosquetaires”. Entretanto,
o principal interlocutor de Breton, no intercâmbio de ideias foi, ao longo de quase
duas décadas, Paul Éluard. Com ele escreveu Immaculée
conception, publicado em 1930.
O café Batifol, no início da rue du faubourg Saint-Martin, foi, a partir de 1931, um dos lugares prediletos
de Breton. Ali, ele dizia escutar “une sorte
de bruit marin montant et descendant, bruit de rafale, l’espoir et le désespoir
qui se quêtent au fond de tous les beuglants du monde” (Les vases communicants). Certa feita, naquele café Batifol, ele escreveu o poema Vigilance, em que comparou a torre Saint-Jacques
a um girassol. Escreveu: “À Paris la tour Saint-Jacques
chancelante pareille à un tournesol du front vient quelques fois heurter la Seine
et son ombre glisse imperceptiblement parmi les remorqueurs” (Le revolver à cheveux blancs).
O ensaio Les
vases communicants, de 1932, tenta mostrar o vínculo entre o sonho e a vigília.
Para Breton, o poeta do futuro será o que conectará o mundo exterior com o mundo
interior.
Em 4 de julho de 1933, Breton é excluído da Associação
de Escritores e Artistas (AEAR) por sua atitude contrarrevolucionária. Dessa data
em diante, sua incompatibilidade com o autoritarismo partidário se acentuará. No
Congresso Internacional pela Defesa da Cultura, em 1935, ele reitera que o regime
soviético se convertera na negação do que deveria ser e do que fora.
Fui, pela linha 2 do metrô, a linha azul, até a place
de Clichy, na qual divisei, no nº 14, o Restaurante Le Wepler, que Philippe Soupault
chamava de “um aquário triste”. Almocei ali um peixe “bar” (lubina) com legumes.
Atualmente, o Wepler, com lustres em forma de globo e janelas vermelhas de vidro,
onde as lâmpadas se refletem, parece, de fato, um hábitat de peixes, mas nem tão
melancólico, mesmo num dia chuvoso como aquele.
De dentro do restaurante vejo a place de Clichy.
É uma pequena rotunda que tem, ao centro, a bela estátua, alçada sobre um pedestal,
do Marechal Moncey, guerreiro espadachim, no gesto belicoso em que se lança ousadamente
para proteger a cidade no sítio de 1814, em tempos de Napoleão.
Saio do “aquário” de Soupault, em direção à place
Blanche. Um chuvisco irritante encharca as ruas e os transeuntes. Quando a chuva
cessa, o frio aumenta. No alto-falante do metrô anunciam estações fechadas, em razão
de manifestações públicas. De manhã, falava-se, numa emissora de rádio, sobre a
necessidade de passar da verticalidade à horizontalidade democrática. Na prática,
é fácil perceber o descontentamento dos franceses. Constato que o custo de vida
em Paris está muito mais alto do que em Madri e em Lisboa, onde estivera há pouco.
Éluard ajudou Breton a vender, no leilão do hôtel
Drouot, obras de arte de valor insólito, compradas no mercado das pulgas de Saint-Ouen,
na rue de la Banque, perto da Bourse, para angariar fundos a fim de publicar a revista
Le Surréalisme au service de la révolution,
publicação que sucedeu, em 1930, à revista La Révolution Surréaliste.
Breton foi, com René Char, em 1934, testemunha do
casamento de Éluard com Nusch.
O temperamento de Breton não contribuía muito para
a conciliação e o diálogo. Foi em Montparnasse que ele esbofeteou o escritor russo
Ilya Ehrenbourg, membro da delegação soviética no Congresso dos Escritores pela
Defesa da Cultura. O motivo da agressão foi que, num artigo, Ilya chamara os surrealistas
de “parasitas ociosos e criminosos”. Breton considerava aquele colega russo um “adulador
do Partido Comunista”, que, como todo puxa-saco, merecia ser corrigido à mão.
Tristan Tzara acusa Breton de adotar atitude “pró-hitlerista”,
se Salvador Dalí não for expulso do movimento surrealista. Breton decide não expulsar
o pintor, quando este declara que seu elogio a Hitler fora uma forma de protesto
contra o clima de deslealdade e intriga entre os surrealistas. Breton concordou
com Dalí no entendimento de que era necessário remediar o déficit ideológico dos
partidos de esquerda e evitar o fanatismo a todo custo.
A convite do “Front Gauche”, Breton fez conferência
sobre o tema “Position politique de l’art d’aujourd’hui”, em Praga, no dia 1 de
abril de 1935.
A agremiação Contre-Attaque (que durou de setembro
de 1935 a maio de 1936), também chamada de Union de Lutte des Intelectuels Révolutionnaires,
gerou tensões entre os dois líderes, André Breton e Georges Bataille, que acabaram
se desentendendo definitivamente. Paul Éluard não aceitou, desde o início, aquele
pacto estratégico entre os surrealistas e os adeptos de Bataille.
Breton se opõe ao processo de Moscou, de agosto de
1936. Em setembro daquele ano, declara “abominables et inexpiables” as execuções
dos bolchevistas históricos, acusados de pertencerem a um grupo terrorista trotskista.
Considerou Stalin o inimigo número um da revolução proletária. No ano seguinte,
ele reitera sua denúncia, ao acusar o Kremlin de perseguir os camaradas do Partido
Operário de Unificação Marxista (POUM), da Confederação Nacional do Trabalho (CNT)
e da Federação Anarquista Ibérica (FAI), que lutavam contra o governo fascista na
Espanha.
Seu interesse por Trotsky, que ele visitou em 1938
no México, foi proporcional à sua decepção com Stalin. Breton enfrentou, na universidade
mexicana, onde pronunciou palestra sobre a arte contemporânea, a oposição dos comunistas
radicais, que, excitados por gente da A.E.A.R, de Paris, o acusaram de “reacionário,
contrário ao ‘Front Populaire’ e à República espanhola, e opositor das ações da
‘Association Internationale des Écrivains”. Em consequência desse patrulhamento
ideológico, Breton mostrou-se desgostoso com Éluard, que publicara um poema na revista
Commune, órgão daqueles “chiens”. Breton
considerava aquela revista uma empresa de falsificação flagrante da verdade. Será,
portanto, em 1938 que ele criará, por sugestão de Trotsky, a Fédération Internationale
de l’Art Révolutionaire Indépendant (FIARI), seguida da publicação do Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente,
redatado com Diego Rivera e Trotsky, convocando os artistas a uma rigorosa oposição
ao dogma stalinista do realismo socialista.
Uma grande ocasião do movimento surrealista foi a
“Exposition Internationale du Surréalisme”, de 1938 (de 17 de janeiro a 24 de fevereiro),
na Galerie des Beaux-Arts, na rue du faubourg Saint-Honoré, 140. Breton e Éluard
foram os principais organizadores, contando com a colaboração de Marcel Duchamp,
Salvador Dalí, Max Ernest, Man Ray, Yves Tanguy, André Masson, Joan Miró e outros.
As intrigas, decorrentes do fanatismo nos engajamentos
políticos, abriam fissuras de ressentimento entre amigos. Breton fizera agressiva
crítica à poesia de Éluard, considerando-a uma expressão de sentimentos de colegial
para agradar às moças de lojas. Éluard se queixa de que Breton reclama de sua não
atividade política. Sente-se humilhado porque as reclamações foram feitas diante
de pessoas desconhecidas. Breton argumenta que fora Éluard quem iniciara a discussão,
quando este o criticara em público, durante a reunião dos surrealistas com os membros
do Contre-Attaque, grupo formado por Georges Bataille, e membros do Cercle des Communistes
Démocrates, fundado por Boris Souvarine. Breton reiterou que Éluard havia cessado
de conciliar as atividades da política e do surrealismo. Apesar desses diferendos,
a amizade continuou, mantendo-se o intercâmbio sobre os projetos de edições e as
viagens de divulgação do surrealismo.
Em outubro
de 1938, Éluard escreve a Breton, devolvendo-lhe uns livros que lhe foram emprestados
e pedindo que retirassem seu nome do comitê de redação da revista Minotaure, pois se sentia vítima de “désaffection”
por parte de quase todos os surrealistas. Em resposta, Breton cobrou a devolução
de outros livros e assinalou a certeza de que as divergências se aprofundaram entre
ambos. Dizia achar-se na contingência de afastar-se do amigo ou renunciar a exprimir-se
sobre o que constitui, com o fascismo, a principal vergonha desse tempo.
Em 1939, Breton é recrutado como médico auxiliar
da Escola de Aviação de Poitiers. Durante o regime nazista de Vichy, Breton sofreu
interrogatórios e prisão preventiva em Marseille. Nas circunstâncias opressoras
da guerra, ele se refugia nos Estados Unidos em 1941 e só regressa a Paris em 1946.
Trabalhou em Nova Iorque como locutor de A
Voz da América e organizou a Exposição Internacional do Surrealismo, com a participação
de Marcel Duchamps e Max Ernst.
Quando o jornal Le Libertaire reuniu, em 1948, testemunhos a favor de Céline, exilado
na Dinamarca, Breton foi implacável na expressão de sua hostilidade ao escritor
de Voyage au bout de la nuit, declarando
seu horror pela literatura de Céline e seu antissemitismo.
A incessante militância de André Breton prosseguiu,
com a escrita de artigos em jornais e a participação em manifestações pela liberdade
de expressão. Em discurso pronunciado em abril de 1949, por ocasião do meeting organizado pelo RDR (Rassemblement
Démocratique Révolutionnaire), liderado por Sartre, intitulado “Journée internationale
de résistance à la dictature”, Breton denuncia, não apenas o terror que reina na
zona russa na literatura e na arte, como também a hipocrisia sexual, a hostilidade
com os negros e os indianos, o complexo de superioridade e, sobretudo, o imperialismo
que os norte-americanos impõem à América do Sul, à América Central e ao Velho Continente.
A injustiça do conhecido processo de Praga, que condenou
à morte intelectuais tchecos em 1950, foi o motivo pelo qual ele rompeu definitivamente
com o marxismo.
Em diversos artigos, ele reitera suas críticas ao
stalinismo e propaga ideias utópicas emanadas de seu humanismo. O jornal Libertaire, de 21 de outubro de 1949, publicou
seu discurso num meeting pela liberdade
de consciência, realizado naquele mês. Breton augura, nesse texto, o estabelecimento
de uma Tribuna de consciência mundial, o registro de cidadãos do mundo em cada país
e a eleição de uma assembleia constituinte. Essa assembleia seria formada por representantes
de todos povos à base de um delegado para cada milhão de habitantes. Desse encontro
global, deveria surgir um documento para toda a Terra.
Em artigo intitulado Mettre au ban les partis politiques, publicado no Combat, em abril de 1950, ele defende a verdadeira
resistência, nascida da recusa individual da opressão, e não da obediência a uma
palavra de ordem dada a um grupo. Inspira-se em Albert Camus e Simone Weil, para
conclamar a não adesão a nenhum partido, em nome da prevalência da independência
do espírito, a fim de remediar o mal da sociedade atual.
André Breton continuou, infatigavelmente, editando
revistas e promovendo exposições, até o fim da vida. Publicou os ensaios de sua
maturidade intelectual, um tanto diferenciados de suas criações anteriores, como
exemplificam Arcane 17, de 1944, com a
exploração de temas espiritualistas, mediante a evocação de grandes místicos, como
Swedenborg e Éliphas Lévi, e a Ode a Charles
Fourier, de 1947, em que sobressaem ressonâncias da poética de Walt Whitman.
Em sua saudação a Antonin Artaud na homenagem que
lhe foi prestada por amigos, após a saída de Artaud do hospicio de Rodez, Breton
menciona os serviços prestados pelo autor de L’omblic des limbes à causa surrealista, com ênfase no capricho com
que aquele herói desesperado se empenhou para o êxito do número três da revista
La Révolution Surréaliste.
André Breton faleceu em Paris, aos 70 anos, no dia
28 de setembro de 1966, deixando um legado poético de imensa contribuição para a
ampliação das fronteiras do pensamento. Embora seja uma espécie de síntese do que
Rimbaud, Lautréamont e Apollinaire criaram, o surrealismo é fruto de uma geração
de talentosíssimos poetas, liderados por André Breton, que os conclamou a adotar
uma filosofia de vida coerente com a arte revolucionária que fundaram.
MÁRCIO CATUNDA | Escritor e diplomata. Nascido em Fortaleza em 1957. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu cinquenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais no idioma castelhano. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021).
FERNANDO FREITAS FUÃO | Arquiteto, artista e ensaísta brasileiro, nascido em 1956. Começou a fazer colagens em 1975, no mesmo ano em que ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pelotas (1975-81). Em 1987 vai a Barcelona cursar o doutorado na Escuela Técnica Superior de Arquitetura, desenvolve a tese Arquitetura como collage. Em 2011, publica o livro A collage como trajetória amorosa (Editora UFRGS). Possui uma série de artigos e ensaios que giram em torno a Collage, assim como textos publicados sobre alguns collagistas. Articula interlocuções da collage com a filosofia, a arquitetura, a psicologia e a educação. Desenvolveu a pesquisa A collage no Brasil, arquitetura e artes plásticas, sob o viés do surrealismo (1992-1995. CNPq). Pertenceu ao Grupo Surrealista de São Paulo, liderado por Sergio Lima e Floriano Martins durante os anos 1990. Ministrou desde então uma série de cursos e oficinas sobre collage. Mantém o blog http://mundocollage.blogspot.com/ e https://fernandofuao.blogspot.com/
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 11
Número 210 | junho de 2022
Artista convidado: Fernando Freitas Fuão (Brasil, 1956)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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