A cisão da linguagem,
a cisão de cada palavra nela mesma – o nada que a faz ser ao mesmo tempo a presença
ausente do que ela designa (significação) e a ausência de sentido que se torna sua
plena presença como objeto material sonoro – não leva à tomada de consciência. Esta
é um processo de separação, no e pelo pensamento, das contradições do real que,
por tal método, o método dialético, acede à possibilidade de ação, sempre relançada,
de superação e síntese”.
A cisão da linguagem
é o próprio real, o paradoxo, que não se pode resolver – dissolver ou diluir – da
contrariedade entre inconciliáveis. Diferente da retórica política, do diálogo em
vista de acordos provisórios visando à transformação interessada e particular de
um determinado estado de coisas, a linguagem essencial põe o ser humano diante de
sua singularidade e solidão. Esta é a sua universalidade sem interesse. Naquele
intervalo, naquela fratura entre palavras e no interior de cada palavra, surge então
uma voz ante ou extra-mundana, em seu apelo por um outro tempo, um outro lugar,
uma outra humanidade, um outro povo, como quer Deleuze.
Em artigo sobre o surrealismo,
Blanchot retoma o que diz Toynbee: o movimento teria sido essencialmente francês…
[1] Talvez o historiador quisesse dizer
que, na Inglaterra, o surrealismo não era necessário: a tradição inglesa de humour
e non sense inscreve-se no espírito da
língua, de Shakespeare a Joyce. A demanda por uma libertação dos nexos lógicos que
a clareza da língua e do pensamento impunham à expressão tornava-se imperativa na
terra de Descartes. Para Blanchot, como para muitos críticos, porém, o surrealismo
mantém a dívida geral que a França tem com o autor das Méditations: a referência ao cogito, o enfrentamento das relações possíveis
entre a existência do eu e o pensamento.
Para Toynbee, parecia
ser proveitoso um estágio na escola surrealista… Murilo Mendes o comprova? No seu
caso, mais do que um estágio, trata-se de uma diretiva de pensamento e de ação,
como se verá, que atravessa toda a obra, embora esta não se prenda – e não poderia
de ser de outro modo, tratando-se de surrealismo e, também, de Murilo Mendes – a
preceitos de escola ou a receitas de bem fazer.
Estaria o surrealismo
ultrapassado, sendo apenas um momento datado da história da arte no Ocidente? Subsiste
para Blanchot um estado de espírito: há, periodicamente, retorno ao surrealismo.
Ainda hoje as grandes questões que levantou sobre arte e vida, pensamento e existência,
linguagem e história, e o modo como as encaminhou continuam vigentes. O próprio
Murilo Mendes consignou:
O conselho veio de Rimbaud: desarticular os elementos. (…)
Em última análise, essa desarticulação dos elementos resulta em articulação. O movimento
surrealista organizou e sistematizou certas tendências esparsas no ar desde o começo
do mundo (…). [2]
E mais adiante:
O dadaísmo, que foi um movimento de protesto, agora poderá
reassumir seu lugar, reassumindo outras formas. Não será aquele do Cabaret Voltaire,
aquele protesto de Tzara, Arp, Janka, de 1919. Será uma nova forma de dadaísmo,
como há uma forma nova de surrealismo, que não é mais o dos anos 20, o de Breton,
Aragon, Soupault. Podem surgir, estão surgindo novas formas desses movimentos, tanto
na literatura quanto nas artes plásticas.
Por sua vez, Blanchot
procura responder: “O surrealismo desapareceu? É que ele não está aqui ou ali: ele
está em toda parte. É um fantasma, uma brilhante obsessão. Por sua vez, metamorfose
merecida, tornou-se surreal”.
A descoberta central
e o maior fracasso do surrealismo é a mensagem automática. Breton chega a declarar
que a história da escrita automática no surrealismo seria a de um contínuo infortúnio.
Uma parte da crítica
brasileira viu na escrita automática uma tentativa irracional de liberação das amarras
da linguagem comum, com resultados inexpressivos, absurdos e anti-estéticos. Para
o próprio Murilo, ali residia o perigo de, ao tomar o surrealismo como uma de suas
referências maiores, ser acusado de preocupação com ideias em detrimento da forma
e de não se consagrar ao necessário esforço de construção poética. A redução da
escrita automática a suas características mais superficiais parece indicar uma imperfeita
compreensão do próprio surrealismo entre nós. É preciso lembrar que, ao fazer emergir
a linguagem de seu elemento informe no inconsciente, os surrealistas não poderiam
deixar de evocar Freud e é difícil supor que ignorassem que, para o mestre de Viena,
o inconsciente não conhece a negação, logo a mediação pelo símbolo, nem a temporalidade.
Os três maiores processos de suas formações, como operam no sonho, no trabalho do
sonho – quase um programa para a produção de uma nova escritura – são a condensação
em um composto ilógico de dois ou mais elementos, o deslocamento, de maneira instável,
de características de um elemento para um outro, que pode ser seu oposto à luz da
mente em vigília, e a visibilidade, imaginária e não perceptiva, das imagens cuja
sucessão dá corpo sensível à pretensa narratividade do sonho, esta fruto de elaboração
secundária. São esses modos de funcionamento que os surrealistas procuram captar
e trazer à luz de uma escrita rebelde às convenções.
Para Blanchot
A escrita automática é uma máquina de guerra contra a reflexão
e a linguagem. Ela é destinada a humilhar o orgulho humano, especialmente na forma
que lhe foi dado pela cultura tradicional. Mas na realidade ela própria é uma aspiração
orgulhosa a um modo de conhecimento e abre às palavras um novo crédito ilimitado.
Creio que a poesia de
Murilo Mendes aproxima-se de muito perto desse ideário. Não se trata da prática
da escrita automática em sua “pureza”, mas de inspiração para um permanente e alerta
trabalho de vanguarda contra a cultura tradicional e sobre as palavras em seus arranjos
sequenciais produtores de imagens insólitas, a partir de uma crença ilimitada na
palavra poética, caucionada pelo sentido da história humana e divina.
A dimensão utópica ou
mágica do surrealismo é criticada por Blanchot, na medida em que linguagem e realidade
se identificariam: “a linguagem não é o discurso, mas a própria realidade, sem,
no entanto, cessar de ser a realidade própria da linguagem, enfim, em que o homem
alcança o absoluto”.
Hoje, ainda segundo
o autor, não é o aspecto destruidor herdado do dadaísmo que impressiona no surrealismo,
isto é, aquilo que ele nega, mas aquilo que afirma: ele procura seu cogito, réplica
da experiência cartesiana. Breton descobre a relação não mediatizada do ser humano
consigo mesmo. Não se trata mais de buscá-la na experiência mística, porque ela
está à mão: penso e sofro e tenho o sentimento de pensar e sofrer. Esse sentimento
é um absoluto. Para Blanchot, Breton se deixa levar por uma ilusão cientificista:
o sentimento como linguagem sem mediação, sem necessidade de palavras “intermediárias”,
que representem ou exprimam o sentimento. Escritas fora de controle, as palavras
são diretamente minha consciência de sofrer. Eis porque a importância da escrita automática
tem papel mais amplo do que simplesmente dispor, por impulso, palavras ao acaso
na página, pois reside no fato “de revelar a prodigiosa continuidade entre meu sofrimento,
meu sentimento de sofrer e a escrita do sentimento desse sofrimento. Com ela se
desfaz a opacidade das palavras, dissipa-se sua presença como coisa”.
Importante para compreender
o pensamento de Blanchot sobre linguagem, tal afirmação, atribuída aos surrealistas:
a palavra autônoma, coisa ela própria, é uma descoberta do modernismo em poesia,
mas não o termo último de seu movimento. A palavra-coisa também se dissipa, se não
se quiser – como fizeram depois os estruturalistas, também eles cientificistas e
materialistas – consagrar a linguagem como discurso, terminando por reabsorver o
poético no retórico.
Em ruptura com a reflexão,
isto é, com o privilégio insistente na tomada
de consciência, os surrealistas não justificam seus métodos. A experiência não
mediada, a experiência primeira, será reivindicada também por fenomenólogos como
Merleau-Ponty, contra uma consciência que opere sempre por mediações lingüísticas,
racional e dialeticamente mostráveis e demonstráveis.
…a consciência de meu pensamento reflete “infalivelmente”
meu pensamento; a escrita de meu pensamento reflete, também infalivelmente, esse
pensamento; apenas as sugestões de fora se interpõem e restabelecem um intervalo
entre mim e o eu falante. Complicação externa que não põe em causa nem o fato nem
a natureza da linguagem.
Para Blanchot, o eu
do sentimento, imediatamente pensado e experimentado, não está nunca no eu falante
– esse eu que é o anônimo. Não existe, portanto, imediatidade dos reflexos que,
posteriormente, uma exterioridade viria separar em duas entidades: eu mesmo e eu falante. Cremos que o propósito
de Blanchot: seja o de aceitar a questão, para superar de outra maneira as mediações…
É o fora da linguagem que obriga o pensamento a começar a pensar, como em Deleuze.
Para os surrealistas,
segundo Blanchot, o discurso não significa, não designa, não fundamenta o vínculo
social,
… a linguagem desaparece como instrumento, mas por se ter
tornado sujeito. Graças à escrita automática, ela se beneficia da mais alta promoção.
Confunde-se agora com o “pensamento” do homem, está ligada à única espontaneidade
verdadeira: é a liberdade humana agindo, manifestando-se.
A escrita automática
subjetiva a linguagem: indivíduo e sociedade, por essa escrita, se articulam “de
imediato”. O sujeito é liberdade: libera-se do constrangimento social por uma escrita
que arruína hábitos e paralisias do discurso dominante. A linguagem, para os surrealistas,
não é designação, significação ou expressão: “Que as construções racionais sejam
rejeitadas, que as significações universais desapareçam, isso quer dizer que a linguagem
não deve ser utilizada, que não deve servir
para expressar, que é livre, a própria liberdade”.
O uso livre das palavras
é, nos surrealistas, uma revolucionária reivindicação social: a palavra não é instrumento
de comunicação, mas liberdade.
Seria absurdo ver nessa
tendência elementos compatíveis com a crença cristã, tal como funciona na obra de
Murilo Mendes? O verbo é o próprio deus criador: a queda, tão presente para o poeta,
é um ato de vontade. A queda é queda livre,
e não, como queria Sócrates, o testemunho de uma ignorância própria à condição humana
ontologicamente decaída na materialidade dos corpos sensíveis, a ser revertida por
um saber superior, por meio de uma técnica de rememoração. Para o cristão, a queda
é ainda sinônimo de liberdade – felix culpa
–, culpa que atrai o divino a, livremente, se empenhar no projeto de salvação
dos homens. Estes, seres livres, salvam-se não na medida em que reconhecem intelectualmente
a transgressão da lei divina no paraíso (transgressão que é acesso ao propriamente
ético: a ciência do bem e do mal) e seu efeito, a queda, mas na desmedida de um
envolvimento no gesto livre do deus e de sua palavra (loucura para a razão, como
diz S. Paulo).
Na perspectiva do movimento
de emancipação das palavras – não das frases articuladas pelo discurso e produtoras
de significados – a escrita automática toma dois sentidos:
– a palavra e minha
liberdade tornam-se uma só coisa;
– as palavras se liberam
das coisas.
Ao resumir os sentidos
mais importantes da escrita automática, Blanchot acrescenta: “Os surrealistas perceberam
muito bem (…) o caráter estranho das palavras: viram que tinham uma espontaneidade
própria”.
A palavra não é transparência
vazia, no sentido de remeter à coisa designada, de se pôr a serviço, por sua referência
ao terceiro termo, à ação comunicativa. Ela tem consistência, cor e vida: “o surrealismo
se afeiçoou bastante as aspecto mágico das coisas; mas esse poder mágico ela já
tinha observado na linguagem, que o encarna e o ilustra maravilhosamente bem”.
Esse duplo sentido da
escrita automática – a palavra, liberada das coisas, que é minha liberdade – levava
à feliz contradição entre o eu imediato e as palavras livres, entre a linguagem
e o que lhe é anterior, entre o imediatismo do sentimento de existir como ser pensante
e a consistência opaca e misteriosa da palavra-coisa.
Por aí, podemos levantar
a hipótese de que, em Murilo Mendes os aspectos mágicos e visionários da palavra
poética não decorrem da crença religiosa. Esta funciona, antes, como avalista, para
sua concepção do trabalho poético: subjetivismo sem sujeito da poesia, que é desde
sempre social, coletiva e universal, contra o discurso encadeado, sem fissuras,
da linguagem mundana, do poder e da injustiça, partidário e particularizado.
Do lado do eu lírico,
a poesia é vida imediata – minha liberdade.
Em Paul Éluard, isso irá traduzir-se como poesia da transparência obscura, próxima
do absoluto hermetismo. Para Blanchot, o poeta quer expressar o momento anterior
à linguagem, o “puro sentimento do que eu sinto”. É uma verdadeira poesia de um
cogito do sentimento: sinto e penso, num movimento solidário. Do lado da linguagem,
esta se resolve nas palavras em liberdade.
O resultado é que essas palavras livres se tornam centros
de atividade mágica; mais do que isso, coisas tão impenetráveis e opacas como qualquer
objeto humano retirado de sua significação utilitária. Estamos distantes agora da
categoria do imediato. A linguagem nada mais tem a ver com o sujeito: é um objeto
que nos conduz e que pode nos perder, tem um valor além de nossos valores. Podemos
nos perder numa tempestade ou num pântano de palavras. É a retórica tornada matéria.
Eis uma relação disjuntiva,
e potente, entre sujeito e objeto, que a linguagem expõe: a linguagem é silêncio
de meu pensamento imediato. Com isso, é possível viver a renúncia à arte, à obra,
ao talento, à própria literatura. A linguagem é também objeto material e com ele
torna-se possível praticar uma estética das palavras-coisas.
Haverá nisso incompatibilidade
e incoerência? – pergunta-se Blanchot. Não: os surrealistas estavam apenas sendo
fiéis à sua concepção de linguagem: palavras livres, mostradas por uma escrita do
pensamento. Breton é um bom exemplo: ele mantém ligadas tendências inconciliáveis,
contra a literatura, mas a favor da pesquisa literária.
A revista dos surrealistas
chama-se Littérature (1919-1924). Ela
realizou célebre pesquisa junto a poetas e escritores, a partir da pergunta: por
que escrevemos? As duas únicas razões aceitáveis pelos surrealistas estão nas respostas
de Paul Valéry: – Escrevo por fraqueza, e na de Knut Hamsun: – Escrevo para abreviar
o tempo. Escrever para os surrealistas é um modo de experiência autêntico. Para
Breton, a ordem ou apelo para escrever corresponde a algo grande ou obscuro – que
podíamos denominar o inconsciente ou o de
fora. Não se trata de brincar, no sentido de ser irresponsável, nem de enganar
apenas por histrionismo.
A poesia trata da condição
do homem em seu conjunto, este um princípio permanente do surrealismo: Acrescente-se
a ele um outro: “…a realidade do homem não é a da natureza das coisas que são; ela
não é dada, deve ser conquistada, está sempre fora dela própria”.
A esta necessidade de
fazer poesia e de agir, por meio da arte, no espaço entre liberdade e engajamento,
a fé católica, em Murilo Mendes, respondia. Pode parecer paradoxal, e com certeza
o é, se se considera a história das opções políticas dos cabeças do movimento. Mas
não à luz do sentido mais global das propostas de um engajamento profundo: não é
gratuita a irreverência de Murilo Mendes em relação à instituição eclesial e ao
dogma, bem como sua opção socialista. Tendências não apenas inconciliáveis, mas
incompreensíveis quando se procura minimizar a relação do poeta, não com uma escola, mas com a tendência surrealista e
seus pressupostos relativos às características de uma nova linguagem poética e de
sua inserção na história humana.
No Ideário Crítico, reunido por Laís Corrêa
de Araújo, Murilo declara, ao referir-se à teoria da poesia de Ismael Nery:
A Igreja de Jesus Cristo, pela sua doutrina, pelos seus
dogmas, pelos seus ritos, é a única entidade capaz de conferir ao homem esse estado
de “super-naturalidade” a que André Breton alude no manifesto do suprarrealismo,
e que em vão os poetas desse grupo procuram encontrar na deformação de certas lendas,
nas especulações espíritas e na representação automática das idéias e das imagens.
A Igreja cristã, sim, é completa: na sua concepção do mundo figuram os dois planos,
o realista e o suprarrealista.
Esta ortodoxia não o
impede de tomar posição heterodoxa, e ainda atual. Comentando a recusa do monge
beneditino D.Marcos Barbosa em apresentar seu livro sobre o poeta, escreve a autora:
Evidente incompreensão do catolicismo de Murilo Mendes –
de linha “progressista”, atualizada, crítica. Se bem me lembro, Murilo Mendes protestara
contra a “ordem” papal de repúdio, pelos cristãos, dos anticoncepcionais (a pílula),
ironizando-o (o Papa) por não entender do assunto que, aliás, não era “matéria de
fé.
Contrariedade, e não
contradição dialética, entre afirmações simultâneas – silêncio e linguagem, espírito
e matéria, redenção e pecado, transcendência e história. É no intervalo dessas disjunções
insuperáveis que se produz a escrita de Murilo Mendes: em tais condições de impossibilidade, surgem imagens contrárias
– as únicas verdadeiras a traduzir o envolvimento total na tarefa de proferição
poética e que, por isso mesmo, não se confunde nem com a teologia, nem com a mística,
nem com a profecia. Em Murilo, o clamor do novo, dos tempos novos – e da condenação
do presente de guerras – é intrínseco à sua maneira de conceber o papel da poesia,
aberta ao futuro como a um eterno em constante devir.
Segundo Blanchot, a
poesia para os surrealistas é tomada de consciência dessa operação, o meio de atingi-la
e, finalmente, a própria superação. Mas a poesia não é nada:
nada tem a ver com o mundo em que vivemos, que é, pelo menos
em aparência, um mundo de coisas já feitas. Daí a prioridade do imaginário, o apelo
ao maravilhoso, a invocação ao surreal. A poesia e a vida estão “alhures”. Monnerot
indica muito bem, segundo Blanchot, que, pelo seu gosto do insólito, o surrealismo
tem perpetuamente em vista um tateamento para outra coisa, um sentimento de presença-outra.
Mas “alhures” não designa uma região espiritual ou temporal: alhures é lugar nenhum;
não é o além; significa que a existência nunca está ali onde está.
É possível sentir por
aí o quanto profundamente a poesia de Murilo Mendes está impregnada por tais diretivas
de ação e pensamento. A fé, a crença cristã, é que será acomodada ao sentido da
ação do poeta, não porque ocupe papel secundário nesta atividade, mas porque fornece
estrategicamente a esta o móvel em direção à outra presença, a esse alhures e a
esse de fora que a atrai com vigor. Mais
do que certezas tranqüilas, ela vive, impulsionada para frente até quando for possível,
entre o júbilo e a desesperança. Descrença e dúvida, algum ceticismo intelectual
e distanciado – que, em princípio, casariam bem com a elegância e o refinamento
do poeta –, não faziam definitivamente parte do elenco de posturas escolhidas por
Murilo para dirigir a máquina de guerra de sua escritura. A imagem surreal, nesse
contexto de ação, é arma que provoca rupturas no mundo das coisas instituídas, cristalizadas
e reificadas.
O surrealismo é uma dessas tentativas pelas quais o homem
pretende se descobrir como totalidade: totalidade inacabada e, no entanto, capaz,
em um momento privilegiado (ou pelo simples fato de ser inacabada), de se tomar
como totalidade. Como é ao mesmo tempo movimento inspirado e movimento crítico,
ele mexe com todos os pontos de vista, todos os postulados, todas as pesquisas conscientes
e confusas, mas a principal intenção é clara: o surrealismo está à procura de um
tipo de existência que não seja a do “dado”, do já feito (…). E ao mesmo tempo está
à procura de um fato absoluto, em que o homem se manifeste em todas as suas possibilidades,
isto é, como o conjunto que as supera. Fato absoluto, a revelação do funcionamento
real do pensamento pela escrita automática. Fato absoluto, em que tudo é realizado,
a descoberta “de certo ponto do espírito onde a vida e a morte, o real e o imaginário,
o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessam de
ser considerados contraditórios.
De fato, voltamos a
insistir, não são contraditórias, mas contrárias: em sua não relação, em sua mútua
exclusão, elas fazem surgir o pensamento novo em sua capacidade de transformação,
de metamorfose, palavra cara ao poeta e título de uma de suas coletâneas.
Ao voltar-se sobre si
mesmo, o homem se vê com um olhar que não é mais o seu. O humanismo surrealista,
se existe, não é do apaziguamento e das certezas éticas adquiridas e proclamadas:
o que não é humano no homem, sua condição mundana e também sua condição de ser falante,
testemunha por um futuro de mudanças ativas. Por isso, na atividade da escrita poética
está engajado o destino do ser do homem. O surrealista celebra e efetua o paradoxo
da máxima gratuidade ancorada, porém, numa ação externa objetiva.
O homem total está por
ser feito. Os surrealistas se aferram à crítica de Marx a uma filosofia que pretende
apenas interpretar o mundo: agora, é preciso transformá-lo. Na sociedade capitalista,
os problemas práticos, ligados à condição humana, ao destino dos seres humanos,
estão distorcidos. É preciso instaurar as condições sociais para que a liberdade
sempre supere o que é dado e promova o que nunca se realiza, o que nunca se faz.
Quando tudo está feito, o ser humano descobre o sentido e o valor desse nada, objeto
da poesia e da liberdade. E conclui Blanchot: “…Ponge observa que seus poemas são
como se escritos no dia seguinte à revolução”.
Alguns pontos de interesse
para o estudo de Murilo Mendes devem ser assinalados:
1. Se a literatura como
instituição é banida, a linguagem livre é consciência – as palavras são ideias.
Não se pode assim estranhar que Murilo integre diretamente afirmações de cunho religioso
e teológico em seus poemas – esse material de ideias, inspirado e crítico, faz parte
de seu projeto e de sua concepção de atividade poética, e é o surrealismo, e não
a crença católica que, em arte, sustenta esse uso.
2. O surrealismo, ao
estabelecer uma oposição entre vida e arte – a vida verdadeira contra a arte como
instituição da cultura organizada – não abandona as pesquisas técnicas, a busca
de efeitos, o jogo com a história da arte. Ao indicar a preponderância do surrealismo
na primeira fase de Murilo, dá-se ênfase ao subjetivismo irreverente, ao desleixo
pontual de linguagem, a que se oporia o esforço maduro e construtivo da segunda
fase. O próprio Murilo Mendes anseia por distanciar-se, pela constante preocupação
com a forma – para ele, desde seus passos iniciais – do surrealismo e, em especial,
da escrita automática. Ora, a objetividade – da linguagem e da história – e o interesse
pelos processos de formação das formas é inerente ao surrealismo. É por aí também,
embora não somente, como se viu, que Murilo refrata a referência ao surrealismo
em e por sua obra.
3. A liberdade que os
surrealistas praticam, na arte como na vida, em relação seja à tradição literária,
aos ditames da moral e da religião, e mesmo da escrita e da leitura, não os faz
menos submissos à revolução, à missão de um combate pelo novo e pela instauração
de um destino coletivo digno para todos os seres humanos. A literatura mais livre
é também a mais engajada.
Em resumo, os paradoxos
vividos não podem ser imputados aos surrealistas como o defeito maior de um ideário
inconsistente, da incapacidade de manter a coerência de uma linha nítida de ação
e de pensamento. Isto porque esses paradoxos – essas contrariedades, que mantém
o explosivo poder de não se conciliarem – são inerentes à prática e ao projeto do
surrealismo, são o próprio motor desse pensamento outro, desse alhures que se abre
no intervalo entre pólos extremos de afirmações desassombradas, distantes dos remansos
da lógica aceita, que não passa, no fundo, da lógica do poder, na forma do discurso
retórico.
E remata Blanchot:
Em suma, a literatura deve ter uma eficácia e um sentido
extra-literários, isto é, não renunciar a seus meios literários e ser livre, isto
é, engajada. Talvez, considerando o valor desses paradoxos, compreendamos porque
o surrealismo é sempre atual.
NOTAS
1.
Blanchot, Maurice. Reflexões sobre o
surrealismo. A Parte do Fogo. Rio
de Janeiro: Rocco, 1997.
2. Apud Araújo, Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia, correspondência.
São Paulo: Perspectiva, 2000.
ROGERIO LUZ | Professor aposentado da ECO-UFRJ, publicou artigos e livros nas áreas de arte e psicanálise. Analyse Structurale du Récit Filmique. Mons: Editions Ciné-Jeunes, 1969. Expressão Corporal: uma Política do Corpo. Rio: Centro de Documentação e Pesquisa, Funarte, 1979. Espace Potentiel et Expérience Filmique. Louvain-la-Neuve: Ciaco, 1987. Filme e Subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002. Em coautoria, com Roberto Machado, Angela Loureiro e Kátia Muricy: Danação da Norma (Medicina social e constituição da Psiquiatria no Brasil). Rio: Graal, 1978; com Ivone Lins: D. W. Winnicott: Experiência Clínica e Experiência Estética. Rio de Janeiro: Revinter, 1998; com Flávia Martins, Santeiros da Bahia – arte popular e devoção. Recife: Caleidoscópio, 2010; com Flávia Martins e Pedro Belchior. Escultores Populares de Pernambuco. Recife: Caleidoscópio, 2013. E mais oito coletâneas de poemas, dentre elas: Escritas (Prêmio de Poesia do Concurso Literário da Universidade Federal do Goiás). Goiânia: Ed. UFG, 2011, e Os Nomes (Prêmio de Poesia do Governo do Estado de Minas Gerais). Rio de Janeiro: Ed. Circuito, 2014. Publicou ainda um livro de contos: Aeroplano (Prêmio Uirapuru). Belém: Editora Folheando, 2020.
NELSON DE PAULA (Brasil, 1950) | Poeta, ensayista, cuentista y artista visual. En su obra integral pretende ser un traficante de sueños, y atravesar las fronteras de las dimensiones, con lo ilegal debajo del brazo. Ha publicado alrededor de 60 libros de poesía y arte visual. Entre otros destacamos: O Plasma, Vozes do Aquém, Projeto para uma Revolução Fundamentalista, A Hóstia de Isis, Sete pulos na encruzilhada. Como artista plástico, participó en Bienales, expos individuales y colectivas en Brasil y el resto del mundo. Fue miembro del Grupo Surrealista de São Paulo. Participó en la Exposición Surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Colaborador de la revista Matérika (Costa Rica). Reside en São Paulo.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 12
Número 211 | junho de 2022
Artista convidado: Nelson de Paula (Brasil, 1950)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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