Depois de uma infância difícil, em que a meningite
lhe deixou sequelas, Artaud sofreu uma crise depressiva, após a morte de sua irmã
Germaine, em 1905. Em consequência, interrompeu os estudos e, pouco depois, o serviço
militar em Digne-les-Bains, no sul da França. Os médicos lhe diagnosticaram neurastenia
e sífilis hereditária e lhe aplicaram remédios à base de arsênio, mercúrio e láudano,
para ajudá-lo a superar as dores de cabeça.
Rosto ascético de profeta e mártir, olhos fulgurantes,
inflamados de paixão, ele ingressa no sanatório de Neuchatel, onde permanece quase
um ano. Ao deixar o hospital suíço, chega a Paris, em 1920, aos 24 anos, já sob
os cuidados de um alienista. Instala-se numa casa em Villejuif e depois se muda
para uma pensão em Passy.
Iniciou sua combativa carreira teatral no Théâtre
de l’Atelier, na rue Honoré-Chevalier, nº 7, próximo ao jardin du Luxembourg, à
igreja de Saint-Sulpice e ao Théâtre du Vieux-Colombier.
De apenas duas quadras, a rue Honoré-Chevalier, curta
e estreita, no sexto arrondissement, começa perpendicular à rue Bonaparte e termina
na quadra seguinte, na rue Cassette. Na parede de tijolos marrons do edifício, lê-se
a inscrição: “Em 1921, Charles Dullin criou seu Théâtre de l’Atelier, no rez du
chaussée”.
Nesse endereço, Artaud devotou
fervores ao teatro (dez horas por dia) e à atriz Génica Athanasiou, romena, de origem
albanesa, pela qual se apaixonou.
Superdotado para a dramaturgia,
já no ano seguinte Artaud estreia, no Théâtre du Vieux-Colombier, na peça Chantage, comédia em um ato, de Max Jacob.
Em 1922, quando Charles Dullin transfere suas atividades
dramatúrgicas para o Théâtre Montmartre, na praça Dancourt, Artaud é o ator versátil e extravagante do papel de Tirésias, em Antígona, de Cocteau (com cenário de Picasso),
na qual Génica Athanasiou foi Antígona.
Artaud ingressa na equipe da Comédie des Champs-Élysées.
Ele dormia no subsolo desse teatro, até que lhe arranjaram um quarto num imóvel
da avenida Montaigne. Sua atuação em Seis
Personagens à Procura de um Ator, de Pirandello, chamou a atenção por sua gesticulação
exaltada, agarrando a cabeça com as mãos crispadas e trêmulas, a fronte banhada
em suor e exibindo os olhos visionários.
Confome atesta Florence Mèredieu, em seu livro Eis Artaud (compilação de textos), certa
vez, saltaram o papel de Artaud, num domingo à tarde. De volta ao teatro, às 8 horas,
ele perguntava: “Como, é domingo? Havia matinê?” (MÈREDIEU, 2011).
Interlocutor
de magos e alquimistas, desde 1923 ele se aplicava ópio como um analgésico: “não
se pode considerar em mim o ópio, sem a pavorosa dor”.
Ele passa uma parte do ano de 1923 em Marselha, oscilando
entre o marasmo e a lucidez. Descreve-se como um andrajo vivo. Toma injeções para
se livrar das dores. Revoltado com sua condição, escreveu: “cuspo nas ejaculações
do espírito”. Numa viagem de trem, quebrou a vidraça do vagão, provocando um estrondo
tremendo.
O ano da morte de seu pai, 1924, foi profícuo em
sua carreira artística. Foi publicada sua correspondência com Jacques Rivière, editor
da Nouvelle Revue Française (NRF) e Artaud
aderiu ao movimento surrealista. Estreou no cinema com o filme Surcouf, roi des corsaires, no qual interpreta
o vilão Morel, consagrado entre os clássicos da cinematografia francesa. Também
em 1924 Artaud publica dois de seus primorosos livros: L’ombilic des limbes e Le pèse-nerfs.
A chuva, no après-midi de 18 de agosto de 2019, concedeu-me
a licença poética de caminhar pela rue de Vaugirard ao boulevard Raspail e dele
ao boulevard du Montparnasse. Na legendária esquina daquelas avenidas, encontrei
a exótica estátua de Balzac, feita por Auguste Rodin, cercada de plantas, num círculo
gradeado. No lado direito da mesma esquina, acha-se o restaurante La Rotonde, um
dos lugares da boemia dos poetas daqueles tempos áureos da literatura francesa.
O restaurante tem grandes letreiros dourados, no toldo vermelho, e a frente redonda,
de que vem o nome. Dentro, cortinas vermelhas e pequenos candelabros em forma de
flores. Tudo ali recorda a presença de Artaud, sempre inquieto, rabiscando seus
cadernos e murmurando coisas insólitas. Ao lado do restaurante La Rotonde fica o
cinema do mesmo nome.
Le Dôme, outro dos restaurantes prediletos dos poetas,
fica exatamente em frente ao La Rotonde, do outro lado do boulevard du Montparnasse.
Tem seu nome gravado em letras cursivas, incrustadas de pequenas luzes pontilhadas.
Dentro, elegantes paredes de madeira talhada. Tanto o Le Dôme quanto o La Rotonde
têm cadeiras nas calçadas.
Um pouco mais adiante, na mesma quadra do largo e
civilizado boulevard, no número 102, fica o La Coupole, existente desde 1927. Ocupa
o térreo de um prédio de vidro espelhado, brilhante ao reflexo da luz solar. Na
área interna, chama a atenção a grande cúpula em tom violeta, que deu origem ao
nome do local.
São esses os lugares de Montparnasse mais frequentados
pelos legendários poetas do surrealismo, desde o período que antecede à Primeira
Guerra Mundial até depois de 1960, época em que foram assíduos Breton, Prévert e
Aragon, por exemplo, que viveram mais do que a maioria.
Regresso à estação Montparnasse-Bienvenüe, ponto
de referência de minhas visitas à Fnac da rue de Rennes. Avisto, pelo caminho, a
vistosa e alta fachada da igreja de Notre-Dame-des-Champs, construída de 1867 a
1876. Local nada frequentado pelos poetas, exceto por Max Jacob, que ali participou
da cerimônia em que se converteu ao catolicismo.
Peguei um táxi e nele segui, com o propósito de ver
onde funcionou o Bureau Central de Pesquisas Surrealistas, do qual Artaud foi uma
autoridade eminente. Eu ia tão absorto, que só depois de pagar o valor da corrida
foi que reparei que o taxista, um rapaz deveras perspicaz, me cobrou, sem ligar
o taxímetro, o valor de 15 euros, no curto trajeto de Montparnasse até a estreita
e tranquila rue de Grenelle nº 15.
A rue de Grenelle começa no Carrefour de la Croix-Rouge,
a partir do qual caminho pela rue du Vieux- Colombier, onde, no número 22, está
o teatro do mesmo nome. Por sinal, um teatro que tantos serviços prestou à cultura,
ao longo de sua história, tendo acolhido escritores e teatrólogos que nele fizeram
conferências ou representaram suas peças – inclusive Artaud, que ali se apresentou
pela primeira vez como ator.
Na rue de Grenelle, número 15, admiro um prédio de
charme especial: o hôtel de Bérulle, de estilo neoclássico, onde o versátil Artaud
dirigia o Bureau Central de Pesquisas Surrealistas, ao qual ele, intransigentemente,
exigia o comparecimento dos sócios pelo menos por duas horas semanais.
Depois desse período, Artaud tem novo endereço: rue
de Seine, 57. É nesse tempo que ele participa de vários espetáculos no Vieux-Colombier. Breton o descreve: “muito belo, como era
então, ao se deslocar ele arrastava consigo uma paisagem de romance negro, trespassado
de clarões”. Max Jacob o considera “um instrumento da fatalidade, emissário de Deus,
autor de milagres”. Aragon anuncia Artaud em Madri, em 1925, como “um ditador que
se lançou ao mar, arrastando os homens a um abismo desconhecido”.
Respirei os ares serenos do jardin du Luxembourg,
e depois percorri algumas quadras da rua de Condé. Cruzei o boulevard Saint-Germain
e a rue de Buci, para visitar a rue de Seine, 57, a terceira residência de Artaud, desde sua chegada
a Paris. O edifício tem, atualmente, a inscrição “Henri Diéval, Maître Imprimeur”,
afixada sobre a larga porta azul. A rue de Seine me conduziu ao quai de Conti, à
Pont des Arts e ao Louvre. Revisitei o local, na viagem posterior, quando localizei
as galerias cuja importância na vida de Artaud mencionarei nas próximas páginas.
Em 1925, Artaud foi, durante três meses (de janeiro
a abril), o diretor da Central de Pesquisas Surrealistas. Em outubro, ele se instala
na rue La Bruyère, 58. Mantém-se ativo na literatura, escrevendo textos para a revista
La Révolution Surréaliste, cujo terceiro
número foi por ele editado. Viajou a Nápoles, para interpretar o personagem Cecco,
no filme Graziella, dirigido por Marciel Vandal, baseado na obra de Lamartine. Artaud
foi uma das três estrelas principais desse filme, lançado em 1926.
A mãe de Artaud, Euphrasie Nalpas, foi morar com
ele, em 1926, na place de la Porte d’Auteil, 178, após o falecimento do pai do poeta.
O triunfo de Artaud como ator no filme Napoléon
(1927), de Abel Gance, foi reconhecido pela interpretação fiel do rosto atormentado
de Marat, no momento em que Charlotte Corday o assassinou em 1793. Essa trágica
cena do filme foi inspirada na imagem pintada por Jacques-Louis David no ano da
morte do revolucionário Jean-Paul Marat.
Artaud fundou,
com o Dr. Allendy, psicanalista, diretor, na Sorbonne, do Grupo de Estudos Filosóficos
e Científicos, o Teatro Alfred Jarry, que ele dirigiu, com Roger Vitrac. O teatro,
que durou dois anos, funcionou em distintos locais e produziu peças montadas por
Artaud, entre as quais, Le ventre brûlé, dele
próprio, bem como Les mystères de l’amour
e Les enfants au pouvoir, de Roger Vitrac,
além de Partage du midi, de Paul Claudel,
e Le rêve de Torkel, de Strindberg, em
cuja encenação Artaud manteve um bate-boca com Breton. Era o começo de sua ruptura
com os surrealistas.
Reagindo a provocações, Artaud estigmatizou a atitude
dos surrealistas, como de “pessoas sem fé nem lei, guiadas em tudo pelo sexo, por
um odor de leito e de adegas”. Para ele, o ponto de vista da Revolução integral
era de essência espiritual. Que cada homem se preocupasse apenas com sua sensibilidade
profunda, de seu íntimo. Ele se retira do grupo e, em seguida, os surrealistas o
expulsaram, juntamente com Philippe Soupault. A discordância decorria, sobretudo,
da inclinação política de Breton, Aragon e Éluard pelo Partido Comunista.
Não era possível manter juntos, por muito tempo,
artistas tão rebeldes e inquietos como os surrealistas. Era de se esperar que eles
acabassem se desentendendo.
No ano de 1927, Artaud atuou no papel do monge Jean
Massieu, em La passion de Jeanne d’Arc, filme
de Carl Theodor Dreyer. Trabalhava intensamente, mas não deixava de circular pelos
cafés, de Montmartre a Montparnasse, usando um turbante negro, cujas extremidades
se arrastavam pelo chão. O anedotário era pródigo em difundir as excentricidades
da sua vida noturna, sua irreverência e seu sentido de humor. O seu comprometimento
com o cinema continuou, com a escrita de roteiros e a filmagem, em Nice, do filme
de Raymond Bernard, sobre a vida de Tarakanova,
a assim denominada princesa russa.
Caminhando pela rue du Vieux-Colombier, avisto a
cúpula da portentosa igreja de Saint-Sulpice, de fachada imponente com duas altas
torres, coroadas por um alpendre circular. Jorra água das bocas das gárgulas na
fonte, ao redor da qual sobressaem, acima dos gigantescos leões, as estátuas de
Bossuet, Fénelon, Massillon e Fléchier, eminentes predicadores da literatura mística
francesa, no período de Louis XIV.
Vou, em poucos minutos, de Saint-Sulpice a Saint-Germain-des-Prés,
onde há, vizinhos à igreja, dois restaurantes de extrema importância para a história
da literatura francesa: Les Deux-Magots e o café de Flore, assiduamente frequentados
por Antonin Artaud, em suas noites de boemia.
O rompimento com Génica Athanasiou se deu quando
Artaud escrevia o cenário para o filme surrealista La coquille et le clergyman (1928), dirigido por Germaine Dulac. Ela
não aceitava a condição de Artaud, um dependente do ópio.
De 1930 em diante, Artaud se entrega mais ao láudano,
sob o pretexto de que suas dores aumentaram. Não negligencia o trabalho artístico,
apesar do vício no alcance da mão. O ópio lhe dissolvia a dor como a água desmancha
o açúcar. Ele pedia ao seu terapeuta, Dr. Toulouse, tratamentos mais pesados como
“injeções de suco testicular ou fosfato de sódio misturado com sal”, ou, ainda,
que lhe inoculasse “os germes da malária” para subverter seu metabolismo.
Afinal, tudo era culpa dos feiticeiros satânicos,
do excremento do mundo impuro e das seitas do mal que o atacavam. Os feiticeiros
satânicos não lhe davam trégua. Os apaches o haviam esfaqueado em Marselha. O seu
Théâtre et son double reflete sua convicção
de que o mundo está dominado pelas forças do mal. Por isso, é conceituado como Teatro
da Crueldade. Sua teoria da dramaturgia, publicada na Nouvelle Revue Française, em 1931, propõe a interação total do ator
com a plateia, como se o processo da dramatização fosse um exorcismo mágico. Mediante
a predominância da ação sobre a reflexão, as transições bruscas e as flutuações
extremas no ritmo, “como um redemoinho de forças superiores", pode-se resgatar
a magia e o ritual da experiência cerimonial primitiva. Por esse meio, seria libertado
o subconsciente humano para revelar o homem a si mesmo, mostrando ao espectador
a baixeza de seu mundo. O jogo teatral tinha que ser um delírio comunicativo, para
provocar misteriosas alterações no espírito. Dizia Artaud: “Respiro com os haustos
apropriados, tal um guerreiro atônito que grita de medo nas cavernas. Esse grito
é um sopro no peito do espectador.”
O Dr. Allendy, coordenador do grupo de estudos artísticos
da Sorbonne, muito o incentivou. Promoveu palestras do poeta na Universidade e lhe
recomendou livros, que ele devorava com avidez. Sua capacidade de trabalho era fenomenal.
Enquanto escrevia ensaios e poemas, ele atuava em Coup de feu à l’aube, um filme de gânsteres e dava aulas de teatro numa
sala da Comédie des Champs-Élysées, na avenue Montaigne, 15.
Aos 38 anos, com intensa atividade no teatro e no cinema, Artaud escreveu
Héliogabale ou l’anarchiste couronée,
em 1934.
Artaud pesquisou em fontes históricas para descrever
seu personagem como um monstro tarado, um estorvo da pior espécie. Resumo, abaixo,
o texto, para que se tenha uma noção do requinte de crueldade dos temas de que o
poeta se ocupava.
Heliogábalo, imperador adolescente, pederasta nato
e inimigo da ordem, adota o símbolo fálico como divisa. Chega a Roma, procedente
da Antioquia, com uma carruagem, em que carregava um falo de dez toneladas, com
um cortejo de jovens desnudas e touros inoculados de soporífero. Heliogábalo entra
na cidade de costas, com a intenção de ser “enrabado” pelo Império Romano. Era um
insurreto, agindo contra tudo e contra todos, inclusive contra si. Lançava objetos
rituais sobre a fornalha nos degraus do templo de Hércules. Entregava à luxúria
todas as cavidades do corpo. Comprazia-se em apalpar homens prostituídos e perverter
a juventude. Imitava, publicamente, com gestos, o ato da fornicação. Teve morte
ignominiosa. Sua guarda o perseguiu. Ele se jogou nas latrinas. A tropa o agarrou
pelos cabelos, arrastou-o. Despedaçaram-lhe o corpo a golpes de gládio e o jogaram
no Tibre.
Artaud fez, a convite do Dr. Allendy, duas palestras
na Sorbonne, que causaram estupefação. A primeira teve por título La mise en scéne et la métaphisique. Era o elogio à tela de Lucas Van Leyden, Les filles de Loth, do acervo do Louvre,
referente ao capítulo 19 do Gênesis, que testifica a cólera divina que se abate
sobre Sodoma, quando Lot é seduzido pelas próprias filhas.
Em minha quarta, conclusiva viagem de estudos a Paris,
fui ver no Louvre essa obra pictórica de Van Leyden, pintor holandês, que a teria
realizado por volta de 1520. Atravessei os incontáveis corredores dos pavilhões
do grande palácio cultural, até ser informado de que, naquele dia, o setor onde
se encontra o quadro não estava aberto a visitas. Estudei, no entanto, a respeito
daquela obra pictórica. A disposição das figuras na tela mostra Lot reclinado sobre
uma das filhas, enquanto a segunda preenche uma cratera para embriagar seu pai.
Elas agem assim, na ilusão de que ter filhos com o próprio pai era melhor do que
com os ímpios. No canto direito do quadro, a mulher de Lot é transformada em estátua
de sal, por haver desobedecido à ordem de não olhar para trás. Nota-se que a riqueza
das vestimentas contrasta com a desolação da paisagem de fundo.
A segunda palestra que Artaud fez na Sorbonne, no
dia 6 de abril de 1934, teve por título Le
théâtre et la peste. Em ambas, ele falou com a hiperbólica ênfase que lhe era
distintiva. Explicou suas teorias sobre encenação e metafísica, com os olhos dilatados,
o rosto em convulsões, os cabelos suados, berrando, delirando, atormentado. Em sua
tese, o ator é um empestado que, no encalço da sensibilidade, torna-se vitorioso
e vingador. “Levando os homens a serem como são, o teatro faz cair a máscara, põe
à mostra a mentira, a frouxidão, a baixeza e a hipocrisia.”
Esteve, no final do ano, internado no hospital Henri-Rousselle,
mas logo voltou às lides do trabalho, cumprindo expediente na rádio Luxembourg e
dedicando-se às filmagens de Les croix de
bois, de Raymond Bernard, em que interpretou o personagem Soldat Vieublé, sem
senso de qualquer limite, empenhando-se até o esgotamento intelectual. Para incrementar
sua devoção ao trabalho, recorria a médicos, videntes e taumaturgos.
Antonin Artaud fez o inventário dos dons de seu alterego,
Gérard de Nerval, no texto Les chimères de
Nerval. Segundo Artaud, Nerval transformou os mitos em criaturas novas, nos
sonetos em que fez flutuar os desvarios, mostrando-se perito em todos os rudimentos
do insondável incriado. E, em razão de sua vidência, sofreu, pavorosamente, dos
tarôs, da alquimia e da história, sendo forçado, por possessão, a se enforcar.
Les Cenci,
peça escrita à luz de textos de Percy Shelley e de Stendhal, teve representações
no Théâtre des Folies-Wagram, na avenue Wagram, 35, nos vinte primeiros dias de
maio de 1935. Artaud fez o papel do pai que viola a filha e é por ela assassinado.
O teatro Folies-Wagram funcionou de 1928 a 1964. A peça recebeu elogios de Pierre-Jean
Jouve, na Nouvelle Revue Française (NRF).
No cinema, a derradeira atuação de Artaud foi em Lucrèce Borgia, de Abel Gance, no papel de Savonarole, em 1936.
A ambição de Artaud estava voltada para aventuras
desafiadoras. Com o apoio de Jean Paulhan, ele obteve uma bolsa do Ministério da
Educação para viajar, em 1936, ao México, onde tentaria, em Chihuahua, liberar-se
da heroína, mediante a ingestão de peiote, no ritual dos índios tarahumaras. Em
28 dias, ele subiu os seis mil metros da Sierra Madre, a cavalo, enfermo dos nervos
e com o corpo moído, para experimentar o peiote. Aquelas experiências o fizeram
sentir-se semelhante a um chiclete gigante e inflamado. Considerou positivo o princípio
ativo do peiote, porque lhe dava imaginação. Registrou tais sofridas experiências
no livro Voyage au Pays des Tarahumaras.
No regresso a Paris, Artaud foi com a mala direto
ao café-restaurante Le Dôme, para contar as novidades aos amigos. Entre Notre-Dame-des-Champs
e Le Dôme, andando pelo boulevard du Montparnasse, travou terrível batalha com os
demônios. Aliás, um episódio semelhante ao que lhe ocorrera antes, quando os demônios
o assediaram, durante o intervalo de cinco dias, entre o Domingo de Ramos e a Sexta-Feira
Santa, mudando a consciência humana, alterando nela a verdade aprendida com o Mestre.
Nesse regresso a Paris, após as experiências com o peiote, Artaud conseguiu, a duras
penas, retomar seus hábitos nos cafés de Montparnasse, onde reencontrou, entre outros,
os escritores Roger Blin e Robert Desnos, e o pintor André Derain.
No ano de 1937, Artaud fez tratamento de desintoxicação,
mas não desistiu do consumo de seu narcótico preferido: “o ópio só intoxica porque
está desnaturado”, diz ele, convictamente. Prefere morar na rua. Já não se acomodava
ao conforto e ao ritmo cotidiano de um lar.
Viajou a Bruxelas, para uma palestra acadêmica sobre
os intelectuais de Paris, mas acabou falando dos efeitos da masturbação nos jesuítas.
Ficou noivo de uma moça belga, de nome Cécile Schramme, e os pais da noiva se assustaram
com o boêmio de Paris. O projeto de casamento durou pouco.
Em permanente depuração sentimental, Artaud quis
fazer desaparecer o próprio nome. Passou a assinar-se “O Revelado” (Le Révélé).
A imagem da loucura do mundo encarnara num homem torturado. Enumerava fúrias, sob
o peso do pensamento que gira: eis o fósforo secreto, na espiral instantânea.
Com uma bengala de madeira (“l’epée des missionnaires”),
que ele acreditava pertencer a São Patrício, Artaud viajou para a Irlanda, em agosto
de 1937, “para devolver ao país, em Cobh, o cajado de treze nós de São Patrício”.
Queria conhecer de perto a cultura celta. Deambulou por Dublin, neutralizando a
angústia, mediante um estonteante conhecimento imediato de si. Embriagou-se de cosmogonias,
no extremo estado da exaltação mística. Sem recursos para pagar os hotéis, em vão
apelou para o Consulado francês. Numa noite brumosa, tentou hospedar-se no Jesuit
College, mas não foi aceito. Protestou em voz alta e um frade o expulsou do recinto.
Aconteceram murros e pontapés. A polícia o confinou no presídio de Mountjoy, no
centro de Dublin, e o deportou.
Em sua viagem de volta, de navio, Artaud sentiu-se
perseguido por dois membros da tripulação. Ao “defender-se das agressões”, foi preso,
colocado em camisa-de-força e internado no hospital geral do Havre. Macilento, convulsionado
por paixões extremas, numa agitação incontrolável, foi submetido a eletrochoques
e transferido ao asilo para doentes mentais de Quatre-Mares, em Sotteville-lès-Rouen,
na Normandia. Sua mãe o visitou ali e ele não a reconheceu.
Em 1º de abril de 1938, foi admitido ao hospício
de Sainte-Anne, onde permaneceu 11 meses. No dia 22 de fevereiro de 1939, os médicos
o destinaram ao hospital psiquiátrico de Ville-Évrard, a 20 quilômetros de Paris,
onde o poeta sofreu quatro anos de isolamento. Nesse período de reclusão, declarou
que uma feiticeira tentou asfixiá-lo. “O suplício dentro do qual fui preso não serviu
senão para favorecer a ignomínia intrauterina de todas as fêmeas.” Os outros pacientes
se queixavam de seus ritos e exorcismos contra os demônios.
Profetizou que a civilização cristã desapareceria,
quando a Destruição explodisse em relâmpagos e o Torturado se convertesse no Revelado.
Pretendia curar, com ópio e heroína, as abjeções
infectas da magia negra de uma sociedade que, como uma grande cobra, devorava seus
melhores filhos. O penitente, o pária dos manicômios, sempre escrevendo, em convulsão
mental, sofreu na vida todos os suplícios. Alucinado e visionário, proclamou a verdade
veneranda, com a luz da lucidez, no inferno escuro. Era preciso combater as forças
do Anticristo, que colaboravam com a fábula policial da alienação mental.
A partir de 1943, ele permanece interno no hospital
psiquiátrico de Rodez, de onde escreveu, a seu psiquiatra, Dr. Ferdière, diversas
cartas que compõem o conjunto de sua obra literária e revelam o sofrimento de um
mártir da psiquiatria. As ameaças do médico, no sentido de dar-lhe novos eletrochoques,
apenas agravavam o seu misticismo alucinado. Ele assinava Antonin Nalpas, o homem
novo que um dia voltará ao estado original, sem sexo nem órgãos digestivos, com
o alimento eliminado por “evaporação lombar”. Recordou-se de encarnações anteriores:
recebera o nome de Santo Hipólito, bispo de Pireu, no século II d. C.
Sob a tutela do Dr. Ferdière, Artaud traduziu textos
de autores ingleses e escreveu ensaios. “Resolvi ser eu mesmo”, gritava com fervor,
lutando contra Deus e contra a psiquiatria. Falava de um mal anterior a si mesmo
e ansiava pelo delírio febril, como revés das absurdas esperanças.
O desafeto das seitas do mal, dramaturgo que fizera
estropícios no palco e no cinema, era o marginal consumidor de ópio, que enfrentava
as “imperceptíveis ondas de furiosas bruxarias”. Apaixonado pela vida, consolava-se
com a ideia de que um dia seria um corpo sem órgãos, livre das trevas absolutas.
Com a França ocupada pelos nazistas, havia escassez
de víveres no hospício. Artaud se revolta contra a psiquiatria: “um invento da sociedade
degenerada para combater as inteligências lúcidas”. Constata que foram os anjos
que criaram o mal e fizeram o corpo, essa múmia onde se instalam as trevas absolutas.
Estava perdido na miragem de um cais acessível aos tormentos. Os instantes de deslizamento
e o sem sentido das palavras eram raptos furtivos em sua medula.
Em 1942, a mãe de Artaud, com a ajuda de Robert Desnos,
contata o Dr. Gaston Ferdière, médico-responsável pelo manicômio de Rodez, e só
não consegue a transferência imediata do poeta daquele hospital porque não havia
onde alojá-lo em Paris. Ferdière viria a trasladá-lo dali somente em 1946, e Artaud
pouco sobreviveria à nova fase de existência, depois de quase dez anos de isolamento
em vários manicômios.
Artaud passou três anos sob os cuidados do Dr. Ferdière.
O médico reconhece o valor do poeta e o incentiva a retomar a atividade literária.
Não entende, porém, suas obsessões em criar feitiços, mapas astrológicos e desenhar
imagens perturbadoras. Portanto,
o submete a um tratamento de 58 eletrochoques:
L’électrochoc me désespère, il m’enlève la mémoire, il fait de moi un absent
qui se connaît absent et se voit pendant des semaines à la poursuite de son être,
comme un mort à côté d’un vivant qui n’est plus lui.
Os 58 eletrochoques, ao longo de dois anos consecutivos,
causaram-lhe a perda de todos os dentes e o rompimento de uma vértebra cervical.
O livro Nouveaux
écrits de Rodez, editado por Gallimard, na coleção L’Imaginaire, traz a lume
as cartas escritas por Antonin Artaud no asilo de alienados de Rodez, destinadas
ao psiquiatra Gaston Ferdière e à amiga do dramaturgo, Marie Dubuc, diretora de
uma escola em Landes (Montfort-en-Chalosse), no sudoeste da França. As cartas a
Marie Dubuc correspondem ao período de outubro de 1935 a agosto de 1937.
A correspondência com o Dr. Ferdière abrange o período
de fevereiro de 1943, quando Artaud entra no asilo de Rodez, até 23 de maio de 1946,
quando dali se transfere para uma casa de repouso em Ivry-sur-Seine. São cinco os
principais assuntos tratados nessa correspondência: a) Artaud denuncia o dano que
os espíritos do mal causam à humanidade; b) Reclama da desconfiança do Dr. Ferdière
em relação a seu trabalho de exorcista, realizado mediante cantos de magia contra
os maus espíritos, e escreve um verdadeiro tratado de poesia mística, para explicar
que a prática do exorcismo não é um sintoma de enfermidade mental; c) Queixa-se
da violência do tratamento de eletrochoques e dos maus tratos que sofrera em Dublin
e nos hospícios anteriores; d) Manifesta o seu desejo de ficar livre do regime de
cárcere em que é mantido em Rodez; e) Faz o elogio de alguns amigos poetas, reconhecendo-lhes
o mérito.
Artaud lamenta que o Dr. Ferdière não entenda o seu
relevante trabalho, fundado em estudos da Cabala, conforme os livros Zohar e Sepher Ietzirah. Os maus espíritos teriam incutido na cabeça do médico
a ideia de que as percepções espirituais são delírio. Argumenta que a metade dos
cantos da igreja católica se compunha de exorcismo no início da era cristã.
Artaud critica o erotismo vulgar e as imagens libidinosas,
nefastas e deprimentes, como uma operação das trevas. Repudia a conjunção carnal, como “rencontre infectante
des sexes et consécration excreméntielle de l’orgasme inventé par Satan”. Em suas confissões de contrição, censura a vilania
dos sacerdotes e considera o apego à sexualidade como algo contrário ao amor-caridade
pregado por Jesus Cristo. De tal modo, a melhor maneira de se desembaraçar dos demônios
é ser casto.
Pede ao Dr. Ferdière que cessem as sessões de eletrochoque,
um suplício que durou três meses. Manifesta mágoa pelo fato de a medicina ter-se
colocado às ordens da polícia, na ocasião em que o prenderam em Dublin e o internaram
nos hospitais do Havre (17 dias em camisa-de-força) e de Sainte-Anne, depois das
aventuras da viagem à Irlanda, em agosto de 1937. Apenas porque tentara devolver
àquele país a sagrada bengala de São Patrício, fora preso por seis dias em Dublin
e depois deportado e transferido para sucessivos hospícios, sem ter sido examinado
por nenhum médico.
Não se julgava enfermo mental. Se o fosse, os surrealistas
também seriam. Vira Aragon, certa feita, diante de uma lâmpada na avenida des Champs-Élysées,
cultivando um estado voluntário de alucinação (carta de 13 de agosto de 1943). Relata
o incômodo que sente na atmosfera do asilo de alienados. Ser espiado, viver como
um prisioneiro e ser considerado um louco o mantinha numa ansiedade invencível.
Artaud abomina o desumano tratamento de eletrochoque,
depois do qual rompera algumas vértebras, e elogia o efeito do peyotl, que experimentou no México. Reafirma
sua convicção de que a mescalina faz despertar a consciência, com a exata percepção
de onde se vem, do que se é, e de que se necessita. Ele explana sua tese no texto
Le rite du peyotl chez les Tarahumaras.
Em seguida, pede ao Dr. Ferdière liberdade e mescalina. Afirma que os sacerdotes
mexicanos lhe ensinaram a correta dosagem terapêutica, de 3 ou 4 vezes ao dia, para
que a consciência não se desgarre ou se entregue a impressões falsas.
Ao expressar sua estima por alguns amigos, declara
que a poesia de Breton é, no domínio do profano, expressão que se compara à dos
Grandes Místicos, que evocam as elevações a Deus. Breton o fazia lembrar-se do Arcanjo
Gabriel, quando se alumbrava nas manifestações surrealistas de 1924 a 1937.
Considerava Robert Desnos, que se havia esforçado
para libertá-lo do manicômio, uma flor rara neste mundo, no qual só pôde viver sufocado
e asfixiado.
Já na perspectiva de deixar o asilo de Rodez, numa
carta datada de 5 de agosto de 1945, Antonin faz planos de rever Jean Paulhan, que
vinha preparando a logística de sua saída da clínica de Rodez, e Raymond Queneau,
a quem pediria emprestado algum dinheiro. Alegra-se, sobretudo, com a ideia de que
sua mãe ficará feliz com sua liberação. Em menos de um ano estaria na casa de repouso
de Ivry-sur-Seine, em Paris, onde desfrutaria de total liberdade, sob os cuidados
do Dr. Achille Delmas, psiquiatra e escritor.
Em meio às cartas ao Dr. Ferdière, há duas endereçadas
ao Presidente do Conselho de Vichy, Pierre Laval, datadas de 20 de setembro e 15
de outubro de 1943, em que o poeta pede socorro para livrar-se do cativeiro do manicômio.
Ele apela para a memória do autocrata, para fazê-lo recordar-se de que, em 1930,
fora por ele visitado em seu endereço de então, quai d’Auteil, nº 178 (hoje quai
Louis-Blériot, em homenagem ao aviador francês). Também, que Laval retribuíra a
visita, atendendo a convite para jantar na residência de Artaud. Mencionou, ainda,
que Laval viera assistir a uma representação da sua peça Les Cenci, em maio de 1935.
As cartas
à professora Marie Dubuc, em tom de confiança e intimidade, são anteriores a esse
período de internamento em Rodez. A primeira, datada de outubro de 1935, foi escrita
do endereço rue Victor-Considérant, nº 12, Paris XIX. A segunda, de agosto de 1937,
tem como endereço do remetente a rue Daguerre, nº 21. Nesta, ele confessa a necessidade
de consumir ópio para recuperar os dons adquiridos.
O referido livro, que contém as cartas supracitadas,
traz também um precioso anexo: um CD com as gravações do discurso de André Breton,
no Théâtre Sarah Bernhardt, em homenagem a Antonin Artaud, no dia 16 de julho de
1946, e de uma entrevista com o Dr. Gaston Ferdière, a respeito de sua amizade com
o poeta.
Por fim, liberado
por seu médico do hospício de Rodez, o poeta chega a Paris em maio de 1946 e vai
diretamente ao café de Flore, em Saint-Germain-des-Prés. Estava decrépito, balbuciava,
com gemidos agudos e tiques nervosos, enquanto escrevia num caderno. Tinha puída
a roupa, queimada de cigarros.
No dia 7 de julho de 1946, sete meses depois de sua
saída de Rodez, Artaud foi homenageado por Breton, Barrault, Roger Blin, Jean Paulhan,
André Gide, Pablo Picasso e outros intelectuais que haviam requerido a sua liberação
e arrecadado os recursos para a sua subsistência. Eles organizaram uma palestra
de Artaud, no Théâtre Sarah-Bernhardt, hoje Théâtre de la Ville, tendo André Breton
feito a abertura do evento, com um caloroso discurso de admiração e reconhecimento.
Desdentado e enrugado, mergulhado na amargura, Artaud
desabafou sua mágoa pelas agressões sofridas nos internamentos em asilos, que foram
prisões a que a sociedade o condenara. Declarou-se o corpo único, do qual, mesmo
Deus, teve origem. Fez o elogio do ópio e leu sua carta ao Papa: “Fui eu (e não
Jesus Cristo) o crucificado no Gólgota.” Reiterou a história, já contada no café
Les Deux-Magots, de que Breton havia comparecido ao hospital geral do Havre, em
outubro de 1937, sob as balas das metralhadoras, a fim de livrá-lo da
camisa-de-força e das cordas que atavam seus pés à cama. E era possível que Breton
fosse um clone do outro, que morrera na guerra, tentando defendê-lo. Chorou, quando
aquele amigo disse não se recordar desse episódio. Dias depois, recusou-se a escrever
para o catálogo da exposição surrealista que Breton realizou na Galerie Maeght,
“porque lá não iriam operários nem gente que trabalha todo o dia, mas capitalistas
esnobes que tratam a arte como valor mercantil”.
Com o clarão solar refletido na água, que flui com
as gaivotas e os barcos, sento-me para contemplar a Pont des Arts, que é um caminho
reto que liga o Louvre ao Institut de France, de imponente cúpula. O vento do dia
invernal vem pleno de energia reconfortadora. Os galhos ressecados dos álamos se
embalam e ressoam um assovio, quando a aragem os acaricia. Ou são os metais laterais
da ponte, que brincam de ser flautas? Vou pelo vão de madeira e vejo as torres esplêndidas
da Île de la Cité, além do ângulo que separa os dois fragmentos da Pont-Neuf. Como
esqueci de trazer o mapa, pergunto a uma senhora onde fica a rue des Beaux-Arts
e ela me diz que é a primeira à direita, indo pela rue de Seine. À esquerda está
a rue Mazarine. Na altura do número 26 da rue de Seine, na qual vi diversas galerias,
vislumbrei a Galerie Le Minotaure, que, nos tempos de Artaud, era chamada de Galerie
Pierre. Foi o local onde se organizou a exposição filantrópica, cujos recursos custearam
as despesas do poeta pobre, enfermo e cansado de tantas duras provações. A frente
da galeria é moderníssima, com suas vidraças brilhantes e transparentes.
Prossigo pela esgalga rue de Seine, de prédios longilíneos.
Na altura do número 31, aparece uma placa a indicar que George Sand ali viveu em
1831. A rue de Bucci aparece no cruzamento, com seus restaurantes nas calçadas.
De pronto, estou no boulevard Saint-Germain.
Artaud fez nova palestra, desta feita no teatro Vieux-Colombier,
em que abriu a Caixa de Pandora dos delírios e vociferações. Falou de seus sofrimentos
e dos eletrochoques que o forçaram a “bramir, num estado de eructações rancorosas,
cloacas e cãibras, no limiar da síncope”.
Declarou que “Nós ainda não nascemos no mundo. Ainda
não há mundo. A razão de ser não foi encontrada”. Anunciou o Homem que fará o imanifesto
corpo humano mergulhar no chão da natureza onde o sol o recolherá. Mencionou suas
encarnações anteriores, cinco mil anos antes, na China, na Turquia e na Irlanda,
e sua ressurreição sobre o Gólgota. Depois da palestra, foi dormir num banco entre
a Fonte Médicis e a Livraria Corti.
Inchado pelas doses cada vez mais fortes de várias
drogas, ele continua escrevendo nos cafés, golpeando as mesas com os punhos. Desenha
figuras para assassinar a magia dos íncubos e súcubos que o atormentam. Há cerca
de 40 cadernos seus, na Biblioteca Nacional da França, que só foram publicados parcialmente.
Ele gravou, de 22 a 29 de novembro de 1947, com gritos,
grunhidos e onomatopeias, Pour en finir avec
le Jugement de Dieu, cuja encenação foi proibida pelo gerente-geral da Radiodifusão
Francesa, Wladimir Porché, que a considerou escatológica, antiamericana e antireligiosa.
Fernand Pouey, diretor de transmissões dramáticas e literárias da emissora, convidou
50 artistas para uma transmissão privada da gravação. Compareceram Jean Cocteau, Paul Éluard, Raymond Queneau,
Jean-Louis Barrault, René Clair, Jean Paulhan, Maurice Nadeau, Georges Auric, Claude
Mauriac e René Char. Artaud reiterou, então, sua
denúncia das atrocidades dos hospícios de alienados que, sob o manto da ciência
e da justiça, são comparáveis à masmorra.
O Dr. Henri Mondor, ilustre ensaísta, recomenda que
dispensem a Artaud o láudano de que ele precisa. O poeta Jacques-Marie Prével o
abastece com os frascos da substância extasiante. Fora diagnosticado a Artaud um
câncer colorretal.
Vim de táxi até o local da Mairie d’Ivry-sur-Seine,
também chamada de Hôtel de Ville, em frente à qual se encontrava a clínica do Dr.
Delmas, onde Artaud foi bem recebido e viveu seus derradeiros dias. Os gentis funcionários
da Prefeitura (Mairie) confirmaram que o atual Parque Maurice Thorez, também chamado
de Parc des Cormailles, é o exato lugar onde Artaud viveu seus derradeiros dias,
com toda a liberdade de sair e chegar à hora que quisesse, benefício que não lhe
permitia o Dr. Ferdière, em Rodez, por medo de que o poeta sofresse alguma crise
e seus subsequentes constrangimentos. Uma senhora, muito atenciosa, presenteou-me
com um exemplar da edição do lindo catálogo de uma exposição realizada em homenagem
ao grande poeta.
Pena que,
na época em que esteve em Ivry, a doença dos nervos já o afetasse irremediavelmente
e ele viesse a perecer da outra fatal enfermidade.
O local tem hoje árvores altas e frondosas e serve
ao lazer das crianças, que ali brincam alegremente. Em diagonal à Mairie, depois
do cruzamento da avenue Danielle Casanova com a avenue Georges Gosnat (que no tempo
de Artaud se chamava rue de La Mairie), acha-se o edifício moderno, vermelho e envidraçado
que abriga a Bibliothèque Médiatique d’Ivry-sur-Seine e o Auditorium Antonin Artaud.
O homem que andava maltrapilho pelas ruas, sujo de
fezes e sangrando, era o autor do ensaio Van
Gogh, Le suicidé de la société, que o Herald
Tribune de Nova York elogiara. Van Gogh era, para ele, um revolucionário, cujas
insuportáveis verdades tanto perturbaram o conformismo da burguesia, que a sociedade
se recusou a escutá-lo. As estranhas forças da cúpula sombria dos maus espíritos
da maioria das pessoas o oprimiu, portanto, com magia tentacular, para apagar sua
consciência sobrenatural.
Dois meses depois do diagnóstico da grave enfermidade,
sua amiga Paule Thévenin encontrou Artaud morto, no quarto do hospital de Ivry-sur-Seine,
no dia 4 de março de 1948, ao pé de sua cama. Suspeitou-se de que ele morreu de
uma dose letal de hidrato de cloral.
Ele planejava ainda uma viagem mística ao Tibete.
Iria, no entanto, acompanhado de cinquenta bravos, armados com rifles e metralhadoras,
para acertar contas com certas pessoas.
Artaud foi, certamente, dentre os surrealistas, o
mais completo e o mais autêntico, no sentido da transfiguração criativa da linguagem.
Breton elogia-lhe a impulsão inestimável com que transgrediu as próprias defesas
e, sem medo das sanções, que se incorre quando se perdem as coordenadas habituais.
Enaltece Artaud pelo fato de ter-se mantido lúcido em meio à violência do seu deboche
verbal. Considera o seu ensaio sobre Van Gogh um texto escrito com a superlucidez
de um grito que nasce das cavernas do ser.
Com efeito, Antonin Artaud foge a todos os padrões
de conduta e de imaginação. Sua profunda pesquisa esotérica se refletiu no trabalho
de artista polivalente, dramaturgo fecundo, ator incomparável, que atuou em 21 filmes,
e poeta que se exprimiu em palavras de fogo. Seu procedimento foi um ato de denúncia
de tudo quanto é injustiça, perseguição, hipocrisia e violência, situações que ele
próprio sofreu, como uma espécie de Cristo revoltado ou santo em estado de delírio.
Sempre sedento de Absoluto, foi um herói metafísico, corajoso, que pagou com a própria
vida a ousadia com que investigou o conhecimento dos segredos mais sublimes da Natureza.
MÁRCIO CATUNDA | Escritor e diplomata. Nascido em Fortaleza em 1957. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu cinquenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais no idioma castelhano. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021).
NELSON DE PAULA (Brasil, 1950) | Poeta, ensayista, cuentista y artista visual. En su obra integral pretende ser un traficante de sueños, y atravesar las fronteras de las dimensiones, con lo ilegal debajo del brazo. Ha publicado alrededor de 60 libros de poesía y arte visual. Entre otros destacamos: O Plasma, Vozes do Aquém, Projeto para uma Revolução Fundamentalista, A Hóstia de Isis, Sete pulos na encruzilhada. Como artista plástico, participó en Bienales, expos individuales y colectivas en Brasil y el resto del mundo. Fue miembro del Grupo Surrealista de São Paulo. Participó en la Exposición Surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Colaborador de la revista Matérika (Costa Rica). Reside en São Paulo.
Agulha Revista de Cultura
Série SURREALISMO SURREALISTAS # 12
Número 211 | junho de 2022
Artista convidado: Nelson de Paula (Brasil, 1950)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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