Eu
sou a viagem de ácido
nos
barcos da noite
Eu
sou o garoto que se masturba
na
montanha
Eu
sou tecno pagão
Eu
sou Reich, Ferenczi & Jung
Eu
sou o Eterno Retorno
Eu
sou o espaço cibernético
Eu
sou a floresta virgem
das
garotas convulsivas
Eu
sou o disco voador tatuado
Eu
sou o garoto e a garota
Casa
Grande & Senzala
Eu
sou a orgia com o
garoto
loiro e sua namorada
de
vagina colorida
(ele
vestia a calcinha dela
&
dançava feito Shiva
no
meu corpo)
Eu
sou o nômade do Orgônio
Eu
sou a Ilha de Veludo
Eu
sou a Invenção de Orfeu
Eu
sou os olhos pescadores
Eu
sou o Tambor do Xamã
(&
o Xamã coberto
de
peles e andrógino)
Eu
sou o beijo de Urânio
de
Al Capone
Eu
sou uma metralhadora em
estado
de graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto (Piva 2008) [1]
Compararei
com trechos de um texto arcaico, um extenso hino gnóstico descoberto entre os códices
de Nag Hammadi, datados do século IV d.C. É “O Trovão – Intelecto Perfeito” (a seguir,
os trechos que transcrevi em minha tese sobre gnosticismo e poesia, Um obscuro encanto, publicada em livro em
2010):
Pois eu sou a primeira: e a última
Sou eu a venerada: e a desprezada.
Sou eu a meretriz: e a santa.
Sou eu a esposa: e a virgem.
Sou eu a mãe: e a filha.
Eu sou os membros de minha mãe.
Sou eu a estéril: e a que tem muitos filhos.
Sou eu aquela cujo casamento é magnífico; e a que não se casou.
Sou eu a parteira: e a que não dá à luz;
Sou consolação: de meu próprio trabalho.
Sou eu a noiva: e o noivo.
E o meu marido é quem me gerou.
Sou eu a mãe do meu pai: e a irmã do meu marido.
É ele que é minha prole. […]
Sou seu silêncio incompreensível:
E pensamento posterior, cuja memória é tão grande.
Sou eu a voz cujos sons são tão numerosos:
E o discurso cujas imagens são tão numerosas.
Sou eu a fala: de meu próprio nome. (Willer 2010; apud Layton)
A repetição do “eu sou”
confere qualidade litúrgica a “O Trovão – Intelecto Perfeito”; a série de antinomias
lhe dá valor poético.
Tal expressão através de
antinomias, oximoros e paradoxos é arcaica. [2] Pode ser encontrada em
hinos órficos do século IV d.C. No Asclépio,
um dos livros do Corpus Hermeticum, “Deus
é uma esfera inteligível, cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma”.
Nessas manifestações órficas, gnósticas, herméticas e de outros cultos, o Ser perfeito
– em “O Trovão – Intelecto Perfeito” quem fala é Barbelô, um princípio feminino
criador do universo – se expressa ou é descrito através de antinomias por estar
além do princípio lógico da identidade e não-contradição. O acesso a esse plano
é através da gnose, do conhecimento absoluto, caracterizado por Layton como “entendimento
não-discursivo” (Layton 2002; Willer 2010) Por isso, oximoros e antinomias reaparecem
tão freqüentemente na produção de poetas-místicos ou místicos-poetas como Rumi ou
San Juan de la Cruz, seguindo o pseudo-Dionísio Areopagita: “A Causa perfeita e
unitária de todas as coisas está acima de toda afirmação, e a excelência dAquele
que está absolutamente separado de tudo e acima de tudo supera toda negação” (Lucchesi, 1994). É a “teologia negativa”,
que define a divindade ou a esfera transcendental por antinomias e negações, tal
como exposta pelo Mestre Eckhardt:
Deus não é um nem o outro, como as diferentes coisas. Deus é
unidade. […] Insisto: Se tomo a Deus como um ser, isso é tão completamente falso
como se pretendesse que o Sol fosse pálido ou negro. Deus com efeito não é isso
nem aquilo.
(Eckhart 2002)
A expressão por antinomias
é forte em doutrinas orientais, como nesta passagem do Tao-te-Ching de Lao-tsé (livro de cabeceira de Piva nos últimos anos):
O
Tao que pode ser pronunciado
não
é o Tao eterno.
O
nome que pode ser proferido
não
é o nome eterno.
Ao
princípio do Céu e da terra chamo “Não-ser”.
À
mãe dos seres individuais chamo “Ser”.
Dirigir-se
para o “Não-ser” leva
à
contemplação da maravilhosa Essência:
dirigir-se
para o Ser leva
à
contemplação das limitações espaciais.
Pela
origem, ambos são uma coisa só,
diferindo
apenas no nome.
Em
sua Unidade, esse Um é mistério.
O
mistério dos mistérios
é
o portal por onde entram as maravilhas. (Cheng, 1996)
Na poesia, oximoros e antinomias
comparecem desde os clássicos, passando por barrocos e maneiristas, até a poesia
da modernidade, do romantismo – associada a tudo que o movimento romântico teve
de crítica ao cartesianismo e ao Esclarecimento, e de rebelião antiburguesa. Em
Baudelaire; há uma mudança fundamental, uma inflexão exemplificada pela proclamação
da identidade de contrários em “O Heautontimoroumenos”:
Eu sou a faca e o talho atroz!
Eu sou o rosto e a bofetada!
Eu sou a roda e a mão crispada,
Eu sou a vítima e o algoz! (Baudelaire 1995)
Se Baudelaire transportou
a antinomia da esfera cósmica para aquela do sujeito e do mundo das coisas, Lautréamont
(autor matricial, notoriamente, para surrealistas e Piva) como que a arrastou pelo
chão em Os Cantos de Maldoror. Por exemplo,
nas séries de belo como, como nesta série
ao afirmar-se, diante de sua imagem monstruosa refletida em um espelho:
[belo como] o vício de conformação congênita dos órgãos sexuais
do homem, que consiste na brevidade relativa do canal da uretra e na divisão ou
ausência da parede inferior, de forma que o canal se abra a uma distância variável
da glande e abaixo do pênis; ou, ainda, como a verruga carnuda, de forma cônica,
sulcada por rugas transversais bem profundas, que se ergue na base do bico superior
do peru; […] e, principalmente, como uma corveta encouraçada com torreões! [3]
Há uma tradição da expressão
através modos não-discursivos que, na civilização ocidental, tem origem em antigos
cultos de mistérios, por sua vez reaparições do xamanismo das sociedades tribais
(como bem exposto por Dodds) – o xamanismo tão cultuado por Piva, constantemente
invocado em Ciclones. Na Antiguidade tardia,
está presente em doutrinas religiosas heréticas e divergentes com relação aos grandes
monoteísmos. Volta a aflorar através de místicos, para reaparecer no romantismo.
Conforme observei, a partir de Baudelaire, são imanentes, propriedades do mundo,
e não mais exclusivamente de uma esfera transcendental ou entidade divina.
A essa tradição se vinculam,
de modo evidente, Piva e o surrealismo. Em Breton, fundamenta uma visão de mundo:
“Tudo indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real
e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo,
cessem de ser percebidos como contraditórios.” (Breton 2001) É uma de suas proclamações
em favor do pensamento analógico, contra a lógica do discurso; porém declarando
a imanência da analogia, como enfatizaria adiante:
A
analogia poética difere fundamentalmente da analogia mística por não pressupor,
de modo algum, através da trama do mundo visível, um universo invisível que tende
a se manifestar. Ela é toda empírica em sua progressão, apenas o empirismo podendo
assegurar-lhe a total liberdade de movimento ao salto que ela deve fornecer. (Breton 1975)
Não obstante a distinção
entre poesia e misticismo, tal como sustentada por Breton, situam-se ambos, o surrealista
e Piva, na tradição caracterizada com precisão por Octavio Paz em Os filhos do barro:
Apesar dessa vertiginosa diversidade
de sistemas poéticos – isto é: no centro mesmo dessa diversidade – é visível uma
crença comum. Essa crença é a verdadeira religião da poesia moderna, do romantismo
ao surrealismo, e aparece em todos os poemas, às vezes de uma maneira implícita
e outras, em número maior, de maneira explícita. Denominei-a analogia. (Paz 1983)
Vanguardas e movimentos
inovadores efetuaram a recuperações de tradições; fazendo-o, também criaram suas
próprias tradições. Atração pelo pensamento mágico, pelos mitos arcaicos, por decorrência
pelo esoterismo que procurou perpetuar magia e mitos: aí está algo partilhado por
Breton e Piva, que subscrevia de modo irrestrito o apelo ao esoterismo em Arcano 17:
Os
grandes poetas do século passado o compreenderam [ao esoterismo] admiravelmente,
desde Hugo cujas relações muito estreitas com a escola de Fabre d’Olivet acabam
de ser reveladas, passando por Nerval, cujos sonetos famosos referem-se a Pitágoras,
a Swedenborg, por Baudelaire que notoriamente vai buscar nos ocultistas sua teoria
das “correspondências”, por Rimbaud cujo caráter de suas leituras nunca seria acentuado
suficientemente, no apogeu de seu poder criador – basta remeter à lista já publicada
das obras que toma emprestado à biblioteca de Charleville –, até Apollinaire, em
quem alternam a influência da Cabala judia e a dos romances do Ciclo de Artur. Mesmo
não sendo do agrado de certos espíritos que só se sentem à vontade na imobilidade
e no óbvio, na arte esse contato não cessou e não cessará de ser mantido. Consciente
ou não, o processo de descoberta artística, embora permanecendo alheiro ao conjunto
das suas ambições metafísicas, não é menos enfeudado à forma e aos meios de progressão
da alta magia. Tudo o mais é indigência, é banalidade insuportável, revoltante:
cartazes publicitários e versinhos.
(Breton 1985)
Os infortúnios da recepção
do surrealismo pela crítica brasileira merecerão exame atento, na ocasião oportuna
(além do que já escrevi a respeito). Como item ou tópico dessa má recepção, observaria
a recusa a identificar Piva ao movimento encabeçado por Breton. Isso, por representantes
de um pólo da relação simpática com Piva e idiossincrática com o surrealismo – por
exemplo, Pécora: “[…] anoto que se fala um bocado sobre o “surrealismo” de Piva
[..] sua poesia evidentemente não quer produzir a recusa de uma significação banal
para entregar-se a uma outra, banalíssima, na qual a ausência de sentido é apenas
uma regra estética [etc]” (em Piva 2005) – e de outro pólo da adesão sectária ao
surrealismo e da relação idiossincrática com relação a Piva, representada por Lima
(por exemplo, em Löwy 2002).
Mesmo sem disfarçar a intenção
de polemizar com as duas facções, adianto que discutir se Piva “é” ou “não é” surrealista
me parece aristotélico – e cartesiano. Interessa discutir relações, para além daquela
mais evidente, que consiste em Piva ter sido, por cinco décadas, um leitor do surrealismo,
conforme evidenciado através do que escreveu. E não apenas por sua adoção de imagens
poéticas, por sua poesia onírica, pela prodigalidade em matéria de epígrafes, citações,
menções e alusões, por vezes de modo frenético
– e de valiosas indicações de leitura aos amigos, conforme posso atestar. Já observei
em outra ocasião (Willer 2010) que destacar o Piva leitor
é importante em um país com índices tão altos de analfabetismo funcional e tão baixos
de leitura de livros. Foi manifestação de inconformismo sua recusa a ser fácil e
discursivo; navegou contra a correnteza ao apresentar-se como erudito, de uma erudição
não-curricular, nada acadêmica. Ter sido um poeta-leitor o torna um permanente
convite ao comparatismo literário, o que de modo algum conflita com seu modo de
escrever, sempre espontâneo, movido pela inspiração, criando através da escrita
automática (tive acesso a seus manuscritos: aqueles que rasurou foram os que desistiu
de publicar). A propósito, menciono a notável contribuição de Riffaterre à melhor
compreensão da escrita automática em surrealistas – especialmente em Peixe Solúvel de Breton –, sempre mostrando
como, nas criações mais delirantes e à primeira vista menos inteligíveis, há um
sub-texto, um “inconsciente do texto”, como diz esse semiótico, que é um intertexto
– um rastro mnemônico de leituras, presumo.
É evidente a amplidão do intertexto de Piva, dos clássicos aos contemporâneos,
passando por românticos, simbolistas e vanguardistas. Mas, como sua relação com
o surrealismo já foi objeto de dúvidas – mesmo expressamente reafirmada, por exemplo
ao intitular um dos poemas de seu último livro, Estranhos sinais
de Saturno, de “Os Grandes
Transparentes”, em alusão ao “novo mito” proposto por Breton em seu derradeiro manifesto
–, volto a observar que a demora, que pode ser medida em décadas, na compreensão
e recepção da sua obra, e de Paranóia em especial,
resultou da surdez para o não-discursivo na crítica brasileira. Há um recalque brasileiro
do surrealismo, que pode ser associada às alternativas aceitas por nossos letrados:
a criação mais cerebral, seja buscando a clareza do sentido, seja pelo caminho da
experimentação formalista.
Em Ciclones,de onde copiei o poema de Piva que abre este ensaio, e a propósito
de leituras de surrealistas, a citação precisa de Aragon, algumas de René Crevel,
autor de sua predileção, e de Malcolm de Chazal, mestre da analogia através dos
epigramas de imagens poéticas, inclusive aquela na qual esclarece de onde veio o
título do livro: “”A volúpia está no centro do ciclone dos sentidos”, retirada de
Sens-plastique.
Avancemos, através de outro
poema de Piva em Ciclones, intitulado
“A oitava energia”, com dedicatória “para Malcolm de Chazal & sua poesia oscilatória;
para Raymond Abellio, Câmara Cascudo, Mircea Eliade, Julius Evola & a tradição
iniciática”:
Que você conheça
a estrela da loucura
Na sua verde boca animal
A paisagem mineral
rói o olho do peregrino
que procura seu Deus com
chifres
Amo os garotos que cospem
o sangue
das amoras
pelos lugares ermos, praias
habitadas
por escamas de peixe, montanhas
& matas onde o anjo
é um pau
duro no poente
Que você conheça o relâmpago
chamado mundo sombrio
Estremecendo na folha do
seu
coração
Que você conheça este relógio
sem nuvens
chamado morte
dependurado no planeta
como volúpia secreta
Que você conheça manguezais
& realidades não-humanas
que são a essência da Poesia
Que você conheça o sussurro do Sol
Na água ferruginosa dos seus olhos (Piva 2008)
Chamo
a atenção para a dedicatória do poema, com esse arrolamento aparentemente arbitrário
ou caótico de autores: um surrealista, um etnógrafo, dois ocultistas, um estudioso
de mitos e história das religiões. Comparo-a com outro trecho de Breton, ao rejeitar
o alinhamento em partidos políticos: “Mas, se a minha própria linha, bastante sinuosa,
admito, mas quando menos minha, passa por Heráclito, Abelardo, Eckhardt, Retz, Rousseau,
Swift, Sade, Lewis, Arnim, Lautréamont, Engels, Jarry e alguns outros?” (Breton
2001 – também citado em Willer 2008) Assim Piva e Breton: produziram antecedentes,
forçosamente distribuídos, pela diversidade, em “linhas sinuosas”, sempre heterodoxas.
Mas
do que trata o poema que mostrei, “A oitava energia” de Piva? De muita coisa, certamente.
Da ogdóada dos gnósticos e místicos, da oitava esfera, superior mas que, em sua
poesia e sua poética, se confunde com o mundo. Da gnose, do conhecimento total,
equivalente à síntese do sujeito com o objeto do conhecimento, como indica o refrão
“Que você conheça”.
Piva,
um gnóstico? Fez questão de não deixar dúvidas sobre sua simpatia por aquele monoteísmo
às avessas, aquele dualismo de adeptos que aspiravam radicalmente à reconquista
da unidade, ao escolher como epígrafe do volume 1 de sua Obra reunida a observação de Alexandrian sobre “gnósticos modernos”:
A
palavra Gnose é imortal e serve para designar, ainda hoje, uma tentativa de vanguarda.
[…] Os gnósticos modernos são também aqueles que procuram os pontos de concordância
de todas as religiões, que reivindicam uma moral anticonformista, uma tomada de
consciência das instituições do pensamento mágico, enfim, todos os que propõem um
método de salvação aos seres que se sentem “estrangeiros” neste mundo. (Alexandrian
s/d)
Mas
que relação teria essa doutrina arcaica, o gnosticismo, com surrealismo? Com a palavra
Breton, que finaliza seu derradeiro manifesto com o elogio à “intuição poética”:
“Somente ela nos fornece o fio que nos conduz ao caminho da Gnose,enquanto conhecimento
da realidade supra-sensível, ‘invisivelmente visível num eterno mistério’” (Breton
2001)
Ou,
de modo mais detalhado em “Flagrant délit”, seu ensaio de 1947 que denunciou uma
fraude de Rimbaud:
[…] os gnósticos estão na origem da tradição
esotérica que consta como tendo sido transmitida até nós, não sem se reduzir e degradar
parcialmente ao correr dos séculos. […] todos os críticos verdadeiramente qualificados
de nosso tempo foram levados a estabelecer que os poetas cuja influência se mostra
hoje a mais vivaz, cuja ação sobre a sensibilidade moderna mais se faz sentir (Hugo,
Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, Jarry), foram mais ou menos
marcados por essa tradição. Não, é certo que se deva tê-los por “iniciados” no sentido
pleno do termo, mas uns e outros pelo menos foram submetidos fortemente à sua atração,
e nunca deixaram de testemunhar-lhe a maior deferência. (Breton 1979) [4]
Torna-se
evidente, através do percurso já feito pela história das antinomias e imagens poéticas
na poesia, que ambos, Breton e Piva, vinculando-se a uma tradição, ao mesmo tempo
a inverteram, ou subverteram sua premissa fundamental, o dualismo, e sua hierarquização
do cosmo. O elo com o gnosticismo – e ao mesmo tempo entre ambos, Breton e Piva
– pode ser percebido com maior clareza através desta citação de Hans Jonas, estudioso
notável do gnosticismo:
Os expoentes gnósticos exibiam um pronunciado individualismo
intelectual, e a imaginação mitológica do movimento como um todo era incessantemente
fértil. Não-conformismo era quase um princípio da mente gnóstica, intimamente ligado
à doutrina do “espírito” soberano como fonte de conhecimento direto e iluminação. (Jonas 1963)
É
evidente – e isso também é atestado por suas epígrafes, alusões e citações – que
o universo de leituras de Piva vai muito além dos autores especificamente surrealistas.
Fazem parte desse “muito além” suas leituras de Dante Alighieri, reiteradamente
lembradas, inclusive no posfácio de 20 poemas
com brócoli, ao rememorar “os três anos de 1959 a 1961, quando participei do
curso sobre a Divina Comédia dado pelo saudoso professor Edoardo Bizzarri […]”,
e que teriam inspirado aquela série de poemas:
Foi
repensando Dante Alighieri & relendo o Inferno & o Paraíso […] que surgiram,
numa síntese caligráfica & na eletricidade de uma manhã paulista de 1979, estes
20 poemas com brócoli […] Foi freqüentando uma sauna de subúrbio que inventei o
molho propiciatório para este casamento do Céu e do Inferno.
As
pequenas estufas de vapor para duas pessoas nessa sauna me deram a imagem paradisíaca
das bòlgia onde os danados de Dante sonham eternamente.
Mas os garotos de subúrbio são anjos… (Piva 2006)
Em
outra ocasião já fiz a comparação entre os vapores das saunas de Piva e as nuvens
em Breton: nos dois casos, proporcionando momentos privilegiados de encontro de
subjetividade e objetividade. Em O Amor Louco,
Breton e sua companheira sobem ao Pico de Teide, nas Ilhas Canárias, e vêem o a
montanha ser encoberta por uma nuvem, levando-o a argumentar que nuvens são um lugar
do encontro entre desejo e realidade: “levantar os olhos daqui de baixo, da terra,
para uma nuvem, é a melhor forma de interrogar nossos mais íntimos desejos” (Breton
1971, p. 114). É perceber que “toda a questão da passagem da subjetividade à objetividade
se encontra aqui implicitamente solucionada”, através da “fusão do natural e do
sobrenatural no seio de um mesmo objeto”. Leonardo da Vinci, lembra Breton, pedia
a seus alunos que olhassem as manchas em uma parede e copiassem as formas que viam
desenhar-se nelas. As nuvens de Teide ou manchas na parede são as telas em que se
projetam imagens do desejo; a projeção do desejo molda a realidade. Ainda Breton:
“Onde poderei eu estar melhor que no seio de uma nuvem, para adorar o desejo, único
impulsionador do mundo, o desejo, único rigor que o homem deve se impor?”
Como
já observei em outras ocasiões, indagando sobre a possibilidade de uma crítica surrealista
(Willer 2008; Willer 2006), o surrealismo é um instrumento de leitura; um meio para
enxergar mais em outros autores, independentemente desses serem expressamente vinculados
ou não àquele movimento. Inclusive para enxergar mais em Dante, como já o sugerira
Breton no Manifesto do Surrealismo, ao
abrir a série de atributos surrealistas em predecessores: (“Mallarmé é surrealista
na confidêmcia. Jarry é surrealista no absinto. Nouveau é surrealista no beijo.”
etc): “Numerosos poetas poderiam passar
por surrealistas, a começar por Dante e, em seus melhores momentos, Shakespeare”
(Breton 2001) É o procedimento de Piva com relação a Dante, invertendo-o, transformando
o Inferno em Paraíso.
Para
completar, apresentarei mais um poema de Piva, de sua derradeira série de poesias,
Estranhos sinais de Saturno, intitulado
“Mostra teu sangue, mãe dos espelhos”:
o mistério lunar da menina
lésbica
linda como um nenúfar
com seu nome de pássaro
levando na mochila
AS CANÇÕES DE BILITIS
uma coruja no ombro
& no sangue os gritos
dos náufragos de outrora (Piva 2008)
Piva
relatou-me a gênese desse poema. Viu no metrô as duas moças abraçadas, uma delas
com a coruja tatuada no ombro e o livro de Pierre Louïs na mochila. Imediatamente,
escreveu o poema. Ficou muito satisfeito por sua inclusão em uma antologia de poesia
brasileira dos primeiros anos deste século (Pinto, 2006).
É
a “iluminação profana” do Piva “flâneur”, que sabia muito bem que “nenhum rosto
é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade”, como havia dito Benjamin
(citado, entre outros lugares, em Breton 2007). Como tal, sincrônico com o Breton
de Les pas perdus: “A rua, que eu acreditava
capaz de entregar a minha vida seus surpreendentes desvios, a rua, com suas inquietações
e seus olhares, era meu verdadeiro elemento: lá eu recebia, como em nenhum outro
lugar, o vento do eventual.” (Breton 1974) E com o Aragon de O Camponês de Paris, epigrafado com precisão
em Ciclones. Tanto Piva quanto Breton,
Aragon e demais surrealistas nisso integraram uma tradição, aquela de Baudelaire,
o primeiro, no dizer de Benjamin, a transformar Paris em tema de poesia lírica –
contudo, como já bem mostrou Flávia Nascimento, a tradição da deambulação urbana
precede Baudelaire (Nascimento 2002 e 2006).
Talvez
a presente argumentação apenas esteja detalhando o que o próprio Piva – que nunca
se animou a escrever ensaios, textos de crítica literária, mas se mostrou pródigo
em matéria de entrevistas – observou, inclusive em suas derradeiras entrevistas:
O surrealismo está presente em
toda a minha obra. A linha mestra da minha poesia passa pelo surrealismo, contudo
não podemos esquecer do futurismo italiano e do futurismo português, sobretudo Fernando
Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros. (Vasques 2009)
Isso
não impede observar limites ou apontar aspectos em que Piva e surrealismo se distanciam
ou divergem, como o faz Eliane Robert Moraes no posfácio do volume 2 da Obra Reunida de Piva:
[…]
ainda que haja uma forte inspiração surrealista na escrita de Piva, sua voz poética
sempre se particulariza quando comparada à matriz francesa, a começar pelo efetivo
abrasileiramento do imaginário surreal que ele deixa transparecer. Não bastasse
isso, seria preciso aludir à vocação “anarco-monarquista” declarada pelo poeta,
em franca oposição às simpatias de Breton e seus companheiros pelo marxismo, sem
esquecer ainda o diferencial do homoerotismo, rejeitado de forma categórica pelos
idealizadores do movimento.
(em Piva 2006)
Sim
– mas nem tanto. Todos os poetas surrealistas importantes tiveram uma voz poética
particularizada. Aqueles não-franceses incorporaram sua formação à “voz poética”
– basta lembrar o quanto Aimé Césaire, outro poeta da predileção de Piva, era surrealista
e negro antilhano. E, embora seja fato a homofobia bretoniana (mas não dos “idealizadores”
do movimento – certamente não de Aragon), fizeram parte do surrealismo René Crevel
e Cesar Moro, entre outros. E Piva, por décadas, declarou-se marxista. Observei,
em outras ocasiões que o Piva a escrever crônicas na imprensa alternativa na década
de 1970 chamando os militares então no poder de “fascistas” e apresentando-se publicamente
como “comunista” e aquele que resolveu lembrar-se que freqüentara monarquistas em
1958 e passou a investir contra a esquerda, denunciando estalinistas (como no poema
“A bengala alienígena de Artaud”, em Piva 2008) é o mesmo rebelde: mudou o restante.
Com acerto, a essa labilidade de Piva já foi aplicada a categoria do “nomadismo”
de Deleuze e Guattari. Reciprocamente, a partir de 1940, Breton abandonaria de modo
evidente o marxismo (mais a respeito em Luis, 1957), como se vê por suas sucessivas
recusas de qualquer “sistema”, nos dois últimos manifestos e em seu artigo final
“L’écart absolu”.
Onde
se pode marcar alguma distância de Piva com relação ao surrealismo seria em nunca
haver integrado um grupo surrealista como tal, a não ser muito tangencialmente;
de não haver-se filiado. Isso, por seu individualismo e nomadismo; e pelas vicissitudes
da constituição de tais grupos ou movimentos no Brasil. Contudo, grupos surrealistas
são manifestação de algo mais essencial, bem assinalado por Floriano Martins: “[..]
o Surrealismo introduziu, no âmbito da poesia moderna, a ideia da criação poética
como um bem comum” (Martins 2008). Grupos foram a manifestação do que Lautréamont
havia proclamado: “A poesia deve ser feita por todos, não por um”. E, em matéria
de coletivização da poesia através de procedimentos surrealistas, Piva nos deixou
suficientes poemas coletivos, “cadáveres delicados” e escritas automáticas (publiquei
algo daquilo de que participei, cf. Willer 2004).
Mas
associar Piva tão fortemente ao surrealismo não seria ao mesmo tempo indigitá-lo
como anacrônico? Afinal, esse movimento é classificado nos manuais como uma das
“vanguardas”, dos movimentos modernistas das primeiras décadas do século XX. E mais,
como “última das vanguardas”. [5] Contudo,
por sua persistência (da qual a poesia de Piva é apenas um de inumeráveis exemplos),
o surrealismo resiste a ser classificado como um dos “ismos” que antecederam ou
sucederam imediatamente a Primeira Guerra Mundial, a exemplo do futurismo e seus
correlatos em tantos países, inclusive aquele que se apresentou no Brasil através
da Semana de Arte Moderna de 1922. Lembro que, através da sua produção e suas manifestações,
o surrealismo desempenhou um papel importante na década de 1930, período de internacionalização
e crescimento da sua atuação, e de participação ativa nos debates que antecederam
a Segunda Guerra Mundial. No pós-guerra, nas décadas de 1940 e 50, foi cultura de
resistência ao questionar e ultrapassar a dicotomia imposta pela Guerra Fria, a
opção entre stalinismo e macarthismo, regime soviético ou sociedade capitalista.
Nesse período, associou-se a um novo ciclo vanguardista, estimulando-o; passou a
representar o que, em outras ocasiões, classifiquei como “segunda vanguarda” (Willer
2006 e 2009); utilizando um termo aplicado, especialmente, ao surrealismo de Portugal,
e que, por extensão, vale para surrealismos nos Estados Unidos, em outros países
dos continentes americanos e outras partes do mundo. Identificar dois ciclos vanguardistas,
um deles entre 1907 e 1924, outro entre 1945 e alguma data na década de 1960, corrige
um vezo disseminado, de rotular movimentos – surrealismos mais recentes, geração
beat – como vanguarda tardia, e assim
descartá-los como anacronismo, continuação de algo datado. Têm o mesmo sentido rótulos
como tardo-surrealismo etc, através dos quais a rebeldia é desqualificada.
É
certo que a formação do surrealismo faz parte do ambiente vanguardista do começo
do século XX: partilha com outros movimentos o espírito antiburguês, a descoberta
de novos modos de expressão e a assimilação do que havia de mais inovador e subversivo
no simbolismo. Reflete um espírito de época marcado pelas mudanças na representação
de mundo trazidas por avanços científicos, ao mesmo tempo em que recebia a influência
de doutrinas esotéricas; e, especialmente, por crises e pela guerra, pela constante
iminência da catástrofe.
Mas,
sob a ótica surrealista, as demais vanguardas teriam discutido questões formais,
ligadas à expressão artística e literária. Já o surrealismo estaria voltado para
a vida, o homem em sua totalidade e a transformação do mundo. Piva chegou a comentar
comigo a passagem do André Breton, par lui
même de Alexandrian na qual esse argumentava que, enquanto o futurismo e demais
vanguardas haviam buscado a libertação das palavras, o surrealismo havia buscado
a libertação da voz interior. Como bem sintetizou Octavio Paz, em seu “André Breton
ou a busca do início”: “o surrealismo é um movimento de liberação total, não uma
escola poética” (Paz, 1972). Algo que, algumas décadas antes, Julio Cortázar já
havia observado:
Higiene
prévia a toda redução classificatória: o surrealismo não é um novo movimento que
sucede a tantos outros. Assimilá-lo a uma atitude e uma filiação literárias (melhor
ainda, poéticas) seria cair na armadilha em que malogra boa parte da crítica contemporânea
do surrealismo. Pela primeira vez na linha dos movimentos espirituais com expressão
verbal, uma atitude resolutamente extraliterária prova que a profecia solitária
do Conde e do vagabundo se cumpre cinqüenta anos após sua formulação.
“Liberdade
cor de homem”, trecho de um poema de Breton, serve como epígrafe geral do surrealismo.
A produção artística e literária foi o modo de expressar o ímpeto transformador.
É um paradoxo estimulante o surrealismo ter sido, no panorama de movimentos, grupos
e manifestações do século XX, o que mais recusou o confinamento nas artes e literatura,
e haver-se mostrado tão produtivo nesses campos, provocando o que Cortázar (no texto
citado) designou como “dilúvio lírico que só as fichas bibliográficas continuam
chamando de poemas ou romances.”
Por
isso, é incorreto referir-se a uma “forma” ou “estética” do surrealismo. Além de
seus propósitos irem além das questões formais e do campo da estética, quando examinado
de perto o surrealismo é o reino da diversidade. O que Piva partilhou com o surrealismo
foi, em primeira instância, o “inconformismo absoluto” proclamado por Breton no
final do primeiro Manifesto do Surrealismo
(Breton 2001), em um parágrafo que termina com a paráfrase de Rimbaud, inspirador
de ambos, Breton e Piva, de que “a verdadeira vida não está aqui”.
NOTAS
O texto foi originariamente apresentado
no I Colóquio Internacional “Poéticas da Modernidade”, UNESP, campus de São José
do Rio Preto, a 11 de maio de 2011. Está na coletânea Reflexões
sobre a modernidade: atas do Colóquio internacional Poéticas da modernidade
(cuja leitura integral recomendo), organizada por Flávia Falleiros e Márcio Scheel,
Jundiaí: Paco editorial, 2014.
1.
Agradeço a Gustavo Benini, sucessor de Piva, pela autorização para reproduzir este
e outros de seus poemas.
2.
Conforme observo em Um obscuro encanto
e tenho pesquisado ultimamente.
3.
Lautréamont, 2005.
4.
Abri meu Um obscuro encanto (Willer 2010)
com essa citação de Breton.
5.
Os paradoxos da atividade editorial: a coletânea O Surrealismo, na qual abro meu ensaio questionando a vinculação do
surrealismo às vanguardas históricas, abre com um breve prefácio dos organizadores,
intitulado “O Surrealismo: a última das vanguardas”
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CLAUDIO WILLER | Poeta, ensaísta e tradutor, ligado ao surrealismo e à geração Beat. Publicações recentes: Dias ácidos, noites lisérgicas, relatos (2019), A verdadeira história do século 20, poesia (20162014), Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico, ensaio (2014), Manifestos, 1964-2010, (2013), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio (2010); Geração Beat, ensaio (2009), Estranhas experiências, poesia (2004). Traduziu Lautréamont, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Antonin Artaud. Doutor em Letras na USP, onde fez pós-doutorado. Mais em http://claudiowiller.wordpress.com/about.
LUIZ SÁ (Brasil, 1907-1979). Nosso artista convidado. Caricaturista brasileiro, criador dos personagens Reco-Reco, Bolão e Azeitona que, durante anos, apareceram na revista infantil O Tico-Tico. Foi também responsável pela criação de uma série de curtas de animação que ficou perdida por anos, As Aventuras de Virgulino. Seu desenho é caracterizado pelo uso quase exclusivo de linhas curvas, tendo quase todos os seus personagens os rostos bastante arredondados. Por volta de 1950 Luiz Sá muito contribuiu ilustrando panfletos educativos e relacionados com a saúde publicados pelo então Ministério de Educação e Saúde no Rio de Janeiro, como uma ilustração abaixo do texto “Quem come a galope, o intestino entope”. É um dos mais originais, significativos e emblemáticos artistas de toda a história do desenho de humor nacional, tendo sido o primeiro cartunista brasileiro com características de artista popular a conquistar visibilidade nacional. Desde os primeiros desenhos publicados ainda na imprensa cearense em 1927, passou pelos cartuns, ilustrações e histórias em quadrinhos produzidos para os mais diversos meios a partir de 1930.
Agulha Revista de Cultura
Número 219 | dezembro de 2022
Artista convidada: Luiz Sá (Brasil, 1907-1979)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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