ALFRED HITCHCOCK, POETA
Em 1997,
coordenei uma oficina de criação literária na qual, entre outros assuntos, fomos
discutindo, capítulo a capítulo, O Arco e
a Lira de Octavio Paz – leitura indispensável para quem quiser entender algo
de poesia. A oficina coincidiu com o relançamento de Vertigo (Um corpo que cai)
de Hitchcock em cópia restaurada. Pedi que fossem ver ou rever Vertigo, para discutirmos como se projetaria
o que havíamos visto em Octavio Paz. Tratei o filme como alta poesia.
Meus
oficineiros não tiveram dificuldade em fazer a conexão entre cenas e imagens de
Vertigo e trechos de O Arco de a Lira, como este: “o poema tende
a repetir e recriar um instante, um fato ou conjunto de fatos que, de alguma maneira,
se tornaram arquetípicos. O tempo do poema é distinto do tempo cronométrico. […]
Para o poeta, o que passou voltará a ser, voltará a se encarnar”. Por isso, diz
Paz, “O poema é tempo arquetípico.” Scottie (James Stewart), o detetive que sofre
de acrofobia e se apaixona por Carlotta, a morta revivida por Madeleine (Kim Novak)
e que, depois da queda fatal do alto da torre de uma igreja, vai buscá-la, é um
Orfeu, patrono dos poetas.
De
modo evidente, em Vertigo confrontam-se
dois tempos. Um deles, o tempo da prosa e do prosaico, linear, irreversível; outro,
o tempo da poesia, circular. Uma das cenas que mostram a separação de dois mundos
e dois tempos, logo no início, é quando Scottie segue Madeleine em um beco cinzento.
Ela cruza uma porta, entrada dos fundos de uma deslumbrante loja de flores. É outro
mundo, luminoso, colorido, belo – nele, Madeleine passa a ser Carlotta, a antepassada,
a morta. Nessa e nas demais cenas em que Madeleine encarna Carlotta, a iluminação
muda. O mundo se transfigura.
Outra
cena decisiva é aquela do parque das sequóias. Scottie e Madeleine conversam sobre
o tempo: é uma sucessão de círculos concêntricos gravados no tronco da árvore secular
caída, e não uma série linear. Saem do parque para dirigir-se à antiga igreja, a
Missão San Juan Bautista. Partem ao encontro da queda, do instante fatal.
Nos
desenhos de abertura, por Saul Bass, também há círculos concêntricos: no meio deles,
com expressão de horror, a cara de James Stewart. A música de Bernard Herrmann,
reparem, também é circular: no final, quando Scottie beija Judy, que é Carlotta
reencontrada, o tema se repete, de um modo agônico que lembra o final de Tristão
e Isolda de Wagner.
Comparei
com a narrativa de Boileau e Narcejac, Sueurs
froides – D’entre les morts, da qual Vertigo
é adaptação. Entre outras diferenças relevantes, a queda de Madeleine é do alto
da igreja, e não, como em Boileau e Narcejac, de um castelo. Hitchcok adicionou
uma teofania: o sagrado como vertigem.
Se
aquela oficina fosse hoje, acrescentaria algo de Baudelaire. De O Abismo, “Ai tudo é abismo! – sonho, ação,
desejo intenso,/ Palavra!” Poetizaria a acrofobia de Scottie, que via o mundo como
abismo. E ainda citaria este trecho do mesmo poema de Baudelaire: “Do infinito,
à janela, eu gozo os cruéis prazeres” – e o projetaria em outro dos meus Hitchcock
prediletos, Janela Indiscreta (Rear Window). Daria um peso metafísico ao
voyeurismo do protagonista.
Hitchcok
tinha consciência de toda essa riqueza simbólica? Sabe-se que leu Freud; que fez
questão de conhecer Buñuel e conversar com ele, para expressar admiração. Mas as
tintas psicanalíticas e o sonho por Salvador Dali em Spellbound (Quando fala o coração)
foram por conta de David O. Selznick, o produtor. E o resultado não fez justiça
nem a Dali, nem a Hitchcock. Mais tarde, em Marnie,
a revelação do trauma da protagonista é, penso, psicanálise de almanaque.
Inspiração?
O que houve com Hitchcock em seu período de esplendor criativo, de Janela Indiscreta até Os Pássaros? Mistérios do maior dos cineastas
de narrativas de mistério.
A PROPÓSITO DE SURREALISMO
E CINEMA
Lembram-se
daquele padre voador que, em meados de abril de 2008, em um ridículo aparato feito
de balões de hélio, foi levado pelo vento na direção oposta ao trajeto que pretendia
fazer, para acabar morrendo no litoral do Paraná? Que cena para um filme surrealista.
Buñuel teria se entusiasmado.
Sabem
qual foi o filme predileto de André Breton? L’Âge
d’Or de Buñuel? Alguma das comédias dos irmãos Marx? Talvez. Mas um filme de
que Breton gostava especialmente é Peter Ibbetson
(Amor sem Fim) de 1935, dirigido por Henry
Hathaway, estrelado por Gary Cooper e Ann Harding. A história de um homem e uma
mulher que se amam desde a infância. Ele é pobre. Ela foi destinada a outro pela
família de alta burguesia. O apaixonado, por acidente, mata esse outro. Vai preso.
Na prisão, é espancado, quebram-lhe a coluna. Imobilizado, espera a morte. Mas sonha.
Em seus sonhos, encontra a amada. Esta também sonha – e também o encontra. Ambos
sonham o mesmo sonho, de modo sincrônico. Vivem por anos a fio, vão envelhecendo,
sustentados pelos sonhos, realização de tudo o que a sociedade burguesa, patriarcal
e autoritária, lhes negou.
Dramalhão.
Mas, para Breton, a celebração do amor romântico, absoluto, sem limites: O Amor Louco é o título de uma de suas narrativas.
Nela, comenta Peter Ibbetson: “Filme extraordinário.
Triunfo do pensamento surrealista”. Ganhou seu entusiasmo pela fusão de realidade
e sonho. Acreditava na resolução futura destes
dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie
de realidade absoluta, de surrealidade (do primeiro Manifesto do Surrealismo); e que o mundo do sonho e o mundo da realidade
não fazem senão um (em Les Vases Communicants).
Em
Nadja, narrativa de Breton que é uma das
portas de entrada no surrealismo, relançada em uma edição bem cuidada (pela Cosac
Naify), também há cinema. Um trecho sobre seu sistema que consiste em jamais consultar o programa antes de entrar num
cinema. Nele, a lembrança do oitavo e último episódio de um filme no qual um chinês, que havia encontrado não sei
que meio de se multiplicar, invadia Nova York sozinho, com alguns milhões de exemplares
de si mesmo. É L’étreinte de la pieuvre
(O abraço do polvo). Seria classificado
hoje como “terrir”. Nunca mais alguém lembraria L’étreinte de la pieuvre, se Breton não o houvesse comentado.
Foi
publicado na revista Reserva Cultural um artigo de Carlos Reichembach sobre crítica
e cinema, “Minha aventura na seara movediça das sensações”. É sobre como enxergar
o surpreendente em obras que vão desde as aventuras de Masciste no Inferno de Ricardo Freda até o primeiro Mojica Marins, de
À Meia Noite Levarei sua Alma, hoje um
clássico. Após assistirmos a esse filme de Marins, fomos, Sergio Lima, Roberto Piva
e eu, visitá-lo no estúdio, um templo esotérico ou loja maçônica abandonada (no
teto, o olho cósmico em um triângulo, símbolo do Grande Arquiteto) onde rodava seu
próximo filme.
Surrealismo
não é ‘escola’ de literatura e artes. É, em primeiro lugar, saber enxergar; ver
através do olhar da imaginação. Baudelaire já havia dito: A vida parisiense é
fecunda em temas poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e nos sacia
como a atmosfera; mas não o vemos (em Salão de 1846). A observação do
poeta de As Flores do Mal vale para a
relação com a metrópole, em geral, e pode ser projetada no modo de assistir a filmes.
Imaginem o que o autor das reflexões sobre modernidade, da adesão ao novo a qualquer
preço, do elogio à moda e à maquiagem, teria dito se conhecesse cinema. Ou não:
em suas críticas de arte, assim como profetizou a arte abstrata, também antecipou
o cinema. Foi capaz de ver a vida como se fosse um filme passando.
SURREALISMO E CINEMA, 2: DAVID
LYNCH?
Havia comentado
que o surrealismo não está apenas no filme: está na relação com o espectador, no
modo como é capaz de enxergá-lo. Dei como exemplos L’etreinte de la pieuvre (O abraço
do polvo), o filme de terrir comentado
por André Breton em Nadja; e a paixão
do surrealista por Peter Ibbetson, Amor sem Fim (1935) de Henry Hathaway.
É
claro que há cineastas 100% surrealistas. Buñuel, em primeiro lugar. Mas essas observações
servem como preliminar ao exame do surrealismo no cinema, hoje. No cinema norte-americano,
em algo dos irmãos Cohen, nas sátiras e paródias, no humor negro. E, com certeza,
em David Lynch.
A
recente visita de David Lynch ao Brasil, em agosto de 2008: o festival do repórter
desentendido. De como é tomar cafezinho com o cineasta. Meditação transcendental,
nada contra. Bastante meditação contribuir para a paz universal: amen. Mas é isso
o que justifica o interesse por sua vinda? Adeptos do Maharishi, há muitos; David
Lynch, só este.
Sua
declaração de como criou Blue Velvet,
Veludo Azul, de 1986: associou a música-título,
interpretada no filme por Isabella Rosselini, a uma orelha cortada; o filme preenche
o que está entre essas duas coisas, a música e a orelha. Breton, sobre a imagem
poética, citando Pierre Reverdy, no primeiro Manifesto do Surrealismo: Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de
duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais as relações das duas realidades
aproximadas forem distantes e justas, tanto mais a imagem será forte, mais força
emotiva e realidade poética ela terá. A orelha
cortada, a canção Blue Velvet: duas realidades
bem distantes. Twin Peaks, que revolucionou
o modo de fazer séries para TV, torrente de paradoxos, eventos logicamente incompatíveis:
imagens.
Mulholland Drive, Cidade dos Sonhos, de 2001: o filme que Lynch criou com maior liberdade,
menos injunções de produtores? O mais surreal, com certeza. Já foi observado: a
caixinha que Rita (Laura Helena Harring) leva na bolsa, citação da caixinha perversa
do chinês de Belle du Jour, Bela da Tarde, de Buñuel. Betty (Naomi Watts
– que interpretação! com Lynch, passou de ótima atriz a musa) abre a caixa de Pandora.
Uma interpretação possível: depois que Betty e Rita se amam e adormecem,
o restante é um sonho de Betty. Por isso, tudo desanda; do enredo ainda plausível,
sustentado pela perseguição a Rita e aos maços de dólares em sua bolsa, à ida ao
teatro do Silêncio, com a proclamação de que No hai nada, e o cortejo de assombrações. Mas algumas cenas, nessa segunda
parte do filme, não podem ser um sonho de Betty. No jantar com o diretor Adam Keshner (Justin Theroux), ao
fundo passa o caubói que lhe dera um susto, o convencera a obedecer aos financiadores
mafiosos e prometera voltar – mas Betty não estava
lá quando isso aconteceu. O assassino que procura Rita
também reaparece nesta segunda parte: novamente, Betty
não sabia dele.
Mulholland Drive não é apenas sobre realidade
e sonho: é sobre como ambos se confundem.
O sonho é real, a realidade é um sonho. Repito a citação de Breton em Les
vases communicants (Os vasos comunicantes): o mundo do sonho e o mundo da realidade não fazem
senão um. Mulholland
Drive é sobre os vasos comunicantes.
David
Lynch leitor de Breton? Talvez. O título de uma de suas produções recentes é Nadja, história de vampiros: alusão ou coincidência?
Mas não é o que mais importa, detectar influências. Porém mostrar como, a partir
do surrealismo, pode-se enxergar mais em filmes do porte de Mulholland Drive. Universalidade do surrealismo.
SURREALISMO E CINEMA, ESPECTROS
VERSUS FANTASMAS
Dos autores
importantes que passaram pelo surrealismo, além de Buñuel, e mais recentemente de
Alejandro Jodorowski, foram três os que mais se envolveram com cinema: Antonin Artaud,
Jacques Prévert e Salvador Dali.
André
Breton o incluiu na Anthologie de l’humour
noir de 1939, com esta ressalva: “É evidente que a presente nota só se aplica
ao primeiro Dali, desaparecido por volta de 1935 para dar lugar à personalidade
mais conhecida sob o nome de Avida Dollars”. Denunciou sua conversão ao catolicismo,
a visita ao Papa e a transformação em “retratista mundano”. Mas reconheceu a “afirmação
grandiosa do princípio do prazer” em seu “método paranóico-crítico, baseado na associação
interpretativo-crítica dos fenômenos delirantes”.
Para
ilustrar, incluiu As novas cores do sex-appeal
espectral de Dali. Nele, a distinção entre “espectros” e “fantasmas”, afirmando
que “O ‘sex-appeal’ será espectral” e que previu, em 1928, “a iminência de dos músculos
redondos e salivares, terrivelmente carregados de subentendidos biológicos, de Mae
West.” Ao anunciar que “a nova atração das mulheres virá da possível utilização
de suas capacidades e recursos espectrais, ou seja, de sua possível dissociação
e decomposição carnais, luminosas,” provocou: “O espectro irisado se opõe ao fantasma
(ainda representado por esse farmacêutico nostálgico de cidade de província ao qual
tanto se assemelha, desesperadamente, esse outro fantasma prosaico e diabético que
se chama Greta Garbo).”
Dali
irreverente: contrapôs Mae West, a gostosona caricata, a Greta Garbo, atriz carismática,
mas protagonista de filmes anacrônicos. Dali profeta: ao classificá-la como “fantasma”,
anteviu sua compulsão pelo isolamento, a saída de cena e as ocasionais aparições
pelas ruas de Nova York. E antecipou, ao falar no “corpo desmontável” da “mulher
espectral”, este mundo de corpos inflados, sarados, das academias, dos anabolizantes,
do silicone, das Pamela Anderson. Mencionou anatomias artificiais “montadas sobre
garras”; sobre griffes em francês, um
duplo sentido que ele nem percebeu: griffe
é garra e hoje, também, marca de luxo: o próprio Dali acabaria como grife, marca
de perfumes, chocolates, roupas, objetos de decoração, jóias e bijuterias (que lhe
deram dinheiro mas nada acrescentaram a sua contribuição artística).
Mais
profecias nesse texto de Dali: “Os grandes automóveis se tornarão sereias”. A estética
norte-americana do despropósito que esplenderia na década de 1950 com os cadilaques
rabo de peixe; e com figuras como Jayne Mansfield, decalque de Mae West, caricatura
da caricatura; ou com o mais extravagante dos artistas de Hollywood, o róseo e rechonchudo
pianista Valentino Liberace. Estética pop (Andy Warhol o homenageou) ou apologia
do mau gosto? Um pouco de cada, certamente.
BUÑUEL, CINEASTA RELIGIOSO?
O gnosticismo,
doutrina dualista, heterodoxa e sincrética, segundo a qual o mundo é resultado de
um erro, obra de um deus obtuso e cego, o demiurgo, inverteu o sentido do Velho
Testamento: demonizou Jeová e cultuou Caim (os gnósticos cainitas) e a serpente
da Gênese (os ofitas). A salvação é individual, obtida através da gnose, conhecimento
absoluto, encontro com o “eu” verdadeiro. Gnósticos estão na origem do esoterismo,
alquimia e misticismo na tradição ocidental. Por interpretarem a Lei ao contrário,
comunidades gnósticas, ao que consta, praticaram a licenciosidade. Acreditavam que
o mundo, irremediavelmente corrompido e dominado pelo mal, fatalmente terá que ser
destruído. Dissidência judaica na origem, competiu com o cristianismo nos primeiros
séculos da nossa era, até ser banido como heresia. Uma de suas variantes reapareceria
com força nos séculos XII e XIII: os cátaros da Provença e norte da Itália, massacrados
por uma cruzada.
Gnosticismo
tornou-se, hoje, um tema da moda. Gerou enorme bibliografia (inclusive meu Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia
moderna, Civilização Brasileira, 2010) e uma filmografia que inclui Stygmata (1999, de Rupert Wainwright, com
Patrícia Arquette e Gabriel Byrne) e Maria
(Mary de 2005, de Abel Ferrara, com Forrest
Whitaker e Juliette Binoche); ambos precedendo O Código da Vinci (de 2006, direção de Ron Howard, com Tom Hanks).
Em
La Voie Lactée (A Via Láctea, de 1969), Buñuel abriu o jogo em matéria de discussões
religiosas (recorrentes no restante de sua obra). A peregrinação de dois beatniks devotos e amorais de Paris a Santiago
de Compostela é deslocamento no tempo, em cenas que vão do presente até a época
dos Evangelhos. Passa por controvérsias religiosas desses dois milênios: jansenistas
duelam com jesuítas, discute-se a natureza divina ou humana de Cristo em concílios
e restaurantes burgueses, um padre que oculta uma espada predica sobre a natureza
sagrada da Virgem, há inventários de heresias a condenar. São citadas passagens
enigmáticas do Evangelho de Mateus. Aparece Prisciliano, bispo que liderou uma variante
do gnosticismo – após discorrer sobre a degradação do mundo, seus discípulos (e
discípulas) começam uma orgia. Prisciliano foi executado em 385 d.C, mas sua doutrina
prosseguiria por vias subterrâneas, influenciando heresias medievais, modalidades
do anarquismo místico.
O
filme termina assim: descobre-se que a ossada sepultada na catedral de Santiago
de Compostela não é do santo, mas de Prisciliano (isso consta em relatos galegos
e é endossado por estudiosos). Não há mais peregrinação, devotos se dispersam, vem
uma sublevação, fim de mundo. São precisas as citações teológicas em A Via Láctea. Além de conhecer o assunto,
Buñuel teve a colaboração de Jean-Claude Carrière, autor de uma biografia de Simão
o Mago, o iniciador do gnosticismo.
Interessa
contrastar O Código da Vinci, baseado
no best-seller de Dan Brown e A Via Láctea
de Buñuel. De um lado, o oportunismo, a verossimilhança através do falseamento
de lendas e fatos históricos, as cenas forçadas de ação escritas e os chavões do
enredo de perseguição pensando na adaptação do romance para o cinema. De outro,
a poesia do relato onírico, surreal, o rigor, a seriedade no trato de temas marginais,
porém historicamente relevantes, por um artista da estatura de Buñuel.
A COMÉDIA MALUCA
Helzapoppin’ de 1941, dirigido por H. C. Potter, traduzido aqui como Pandemônio, chegou a ser exibido na televisão. Mas é raridade. Não há
cópias em DVD. Menções, no Brasil, no blogue Comodoro de Carlos Reichembach. A inclusão
no registro do surrealismo no cinema foi pelo filósofo e criador literário Raul
Fiker, que o descobriu e programou em eventos sobre o assunto. Acertadamente: Helzapoppin’ é surreal de ponta a ponta.
Em comparação, Chaplin e Irmãos Marx, admirados por surrealistas, chegam a ser didáticos.
Versão
filmada de um show na Broadway protagonizado pelos comediantes Ole Olsen e Chic Johnson, a eles e ao roteirista e autor
da peça Nat Perrin deve ser creditado o desvario, mais que ao diretor H. C. Potter,
especialista em comédias musicais. O enredo é chavão: a produção do show que deve
fracassar, no qual tudo tem que dar errado, mas que, pela originalidade, acaba dando
certo. O mesmo de Primavera para Hitler,
de Mel Brooks; mas em Helzappopin’ o desastre
seria para detonar um casamento em uma mansão no campo, e não para ficar com o dinheiro
de investidores. É marcado pelo excesso, o uso abusivo dos recursos da screwball comedy. Meta-comédia: não apenas
o show em preparação é absurdo, porém o enredo todo. Gagues se sucedem por associação
livre. Começa no inferno (“pela primeira vez um táxi me leva aonde eu queria chegar”,
comenta o protagonista). Prossegue no purgatório dos estúdios de cinema. Há desencontros
e perseguições (Martha Raye, a cantora da boca grande e outros atributos também,
querendo casar com o suposto nobre eslavo de Mischa Auer, especialista nesse papel);
invasões de animais a toda hora; um detetive particular perdido (matriz de um personagem
de Essa pequena é uma parada, What’s up dock de Peter Bogdanovich com Barbra Streisand). Olsen e Johnson
são esquartejados, as partes arbitrariamente remontadas continuam a conversar como
se não tivesse acontecido nada. Etc.
Helzapoppin’ também contou com Shemp de “Os Três Patetas”,
e, no papel do roteirista, um coadjuvante notável, Elisha Cook, Jr (o sicário desastrado
que tenta perseguir Humphrey Bogart / Sam Spade em O Falcão Maltês de John Huston; o assaltante covarde de O Segredo das Jóias, Asphalt Jungle, também de Huston; o infeliz
desafiante do bandido interpretado por Jack Palance em Shane de George Stevens). O final de Helzapoppin’ é seu personagem crivado
de balas, impassível, bebendo água; essa jorra pelos buracos em seu corpo.
O
filme foi um fracasso, mesmo influenciado outros realizadores. Olsen e Johnson logo
seriam esquecidos. Pertenciam a uma categoria específica de comediantes: ao contrário
dos que criaram tipos, eram propositadamente neutros e fisicamente assemelhados.
Sobreviveu
de Helzapoppin’ e passou para o yutube: a cena de dança, iniciada por dois
serviçais que se põem a tocar os instrumentos para a festa que se prepara, atraindo
o restante da criadagem – todos negros – a uma dança acrobática. Os músicos são
Slim Gaillard e Slam Stewart, no piano e baixo.
Slim
Gaillard foi um blueseiro da mesma estirpe de Cab Calloway, porém mais eclético
e menos famoso. Reapareceria em 1951, em On
the Road de Jack Kerouac, com páginas de prosa poética dedicadas ao encontro
de Kerouac e Cassady (ou Sal Paradise e Dean Moriarty) com ele em uma boate da madrugada:
Galliard é retratado como vidente, xamã que se expressa através de um vocabulário
próprio (orumi… orumi… owami….). Provoca
uma experiência de êxtase ou revelação em Cassady / Moriarty.
Estranhas
ligações. Motivo a mais para o resgate de Helzapoppin’.
O RISO DESENFREADO
Quanto
já se refletiu sobre o riso, o cômico, a gargalhada! Para Baudelaire, o “monstruoso
fenômeno”, “um dos mais claros signos satânicos do homem”, negação da Queda. Para
Octavio Paz, em Conjunções e disjunções:
“A gargalhada é uma síntese (provisória) entre a alma e o corpo, o eu e o outro.
[…] Volta à unidade do princípio, antes do tu
e eu, em um nós que abarca todos os seres, bestas e elementos”.
Eu
publicaria séries sobre experiências de superação da dualidade, fusão no todo através
de acessos de riso em salas de cinema. Incluiria um obscuro e distante média metragem
de Laurel e Hardy, o Gordo e o Magro, no qual invadem uma serraria, jogam um daqueles
carrões quadrados sobre uma serra de fita, caindo – os dois cômicos e as duas metades
do carro – um para cada lado. As convulsões que devo a Harpo Marx, a Harold Lloyd
dependurado em um prédio, a… Na cinematografia mais moderna, a What’s up, Dock? (Essa pequena é uma parada) de 1972, de Peter Bodganovich, com Barbra
Streisand e Ryan O’Neal –perseguições, corre-corre, a dupla de carregadores distraídos
levando a enorme vidraça que escapa por um triz de quebrar-se, mas, destino inexorável
das vidraças em comédias, acaba em estilhaços. Mais recentemente ainda: Sábado de Ugo Giorgetti, de 1995, a publicitária
(Maria Padilha) esquecida no elevador do prédio arruinado em companhia do cadáver
(Gianni Ratto) e dois coveiros (Otávio Augusto e Tom Zé). Baudelaire tinha razão
ao afirmar que o riso é a manifestação do prazer diante da desgraça alheia.
Um
filme em que passei mal de tanto rir: Escola
de Sereias (Bathing Beauty) de 1944,
com Esther Williams e Red Skelton, dirigido por George Sidney. Skelton de sapatilhas
e saiote, grotesco, forçado a cursar balé porque se havia matriculado em um colégio
de moças ao ir atrás de Esther Williams, a nadadora-dançarina, sua noiva. Um papel
de bala gruda nele, livra-se ao fazê-lo pegar em uma colega, vai passando e grudando
de bailarina em bailarina… O enredo infantiloide com todos os chavões a que o cinema
de entretenimento daquela época tinha direito. A aterradora professora de balé,
o vilão bobo (Basil Rathbone), a dança aquática final com Esther Williams – todos
os filmes dela eram assim, bobagens como pretexto para exibi-la em coreografias
de balé aquático – a piscina transformada em espaço multidimensional por Busby Berkeley,
o coreógrafo que desconhecia limites. Red Skelton era rotineiro, além de reaça,
politicamente em um pólo oposto a um Chaplin, e sequer foi um criador cômico notável.
Mas o timing de Escola de Sereias é perfeito. Ritmo, a condição para uma comédia ser
engraçada.
Querem
mais? Sortilégio do Amor (Bell, Book
and Candle ) de 1958, dirigido por Richard Quine, com James Stewart, Kim Novak
e Jack Lemmon, merecidamente resgatado (nas locadoras e TV a cabo). Hermione Gingold
faz Stewart tomar a beberagem horrenda, um chá de morcego, sapo e ingredientes afins,
para quebrar o feitiço que o fizera apaixonar-se por Kim Novak – “Drink it..! Drrink itt..!”, a megera de olho arregalado
e sotaque carregado para um Stewart a exibir todas as expressões do nojo. Este “Drink
it…! Drrink itt..!” virou refrão nosso
em sessões de bebedeira com misturas pesadas e coquetéis estranhos. Se Escola de Sereias é a bobagem engraçada,
Sortilégio do Amor está em outro nível
na escala do valor – charmoso, rico em metáforas, paródia (involuntária ou proposital?)
de Vertigo – Um corpo que cai, ambos do
mesmo ano e com Kim Novak em seus momentos de maior beleza; nos dois, Stewart é
enfeitiçado por ela. Ainda escreverei sobre a complementaridade desses filmes, Sortilégio do Amor e Vertigo. Comédia e drama, opostos complementares,
em relação especular.
CLAUDIO WILLER | Poeta, ensaísta e tradutor, ligado ao surrealismo e à geração Beat. Publicações recentes: Dias ácidos, noites lisérgicas, relatos (2019), A verdadeira história do século 20, poesia (20162014), Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico, ensaio (2014), Manifestos, 1964-2010, (2013), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio (2010); Geração Beat, ensaio (2009), Estranhas experiências, poesia (2004). Traduziu Lautréamont, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Antonin Artaud. Doutor em Letras na USP, onde fez pós-doutorado. Mais em http://claudiowiller.wordpress.com/about.
LUIZ SÁ (Brasil, 1907-1979). Nosso artista convidado. Caricaturista brasileiro, criador dos personagens Reco-Reco, Bolão e Azeitona que, durante anos, apareceram na revista infantil O Tico-Tico. Foi também responsável pela criação de uma série de curtas de animação que ficou perdida por anos, As Aventuras de Virgulino. Seu desenho é caracterizado pelo uso quase exclusivo de linhas curvas, tendo quase todos os seus personagens os rostos bastante arredondados. Por volta de 1950 Luiz Sá muito contribuiu ilustrando panfletos educativos e relacionados com a saúde publicados pelo então Ministério de Educação e Saúde no Rio de Janeiro, como uma ilustração abaixo do texto “Quem come a galope, o intestino entope”. É um dos mais originais, significativos e emblemáticos artistas de toda a história do desenho de humor nacional, tendo sido o primeiro cartunista brasileiro com características de artista popular a conquistar visibilidade nacional. Desde os primeiros desenhos publicados ainda na imprensa cearense em 1927, passou pelos cartuns, ilustrações e histórias em quadrinhos produzidos para os mais diversos meios a partir de 1930.
Agulha Revista de Cultura
Número 219 | dezembro de 2022
Artista convidada: Luiz Sá (Brasil, 1907-1979)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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