quarta-feira, 24 de maio de 2023

JORGE VICENTE | Gladys Mendía, uma flor de barranco

 


Talvez a dedicatória ao seu tio Pacho, que abre o poemário de Gladys Mendía traduzido para português, O desespero silencioso do sonho, seja apenas uma dedicatória ou, talvez, seja mais do que isso: o anúncio de que este conjunto de poemas é uma reflexão profunda sobre a condição humana: o tempo, a memória, o sonho, o corpo, a viagem, a travessia. Um sono / sonho que nos pode salvar do abismo tal como uma flor de barranco, mas que não nos salva do assalto e do incêndio da vida e dos seus múltiplos caminhos.

E se os poemas de Gladys Mendía se iniciam no asfalto, numa espécie de estrada perdida também aí se iniciam no sono / sonho, numa visão onírica e não direta, uma visão navegando na autoestrada, quase um limbo. Um sono / sonho duplo que não é só o nosso sonho, mas o sonho do túnel. Uma dobra que assinala a profundidade do mergulho poético no inconsciente representado por esse túnel, mas que também assinala a realidade para onde podemos – ou somos obrigados a – mergulhar. O Hades, o limbo, os nossos olhos decidindo o que seja essa realidade.

O caminho é longo e infinito, mas como diz Mendía, o infinito é um estado intermédio. Intermédio de quê? Entre a vigília e o sonho? Entre a vida e a morte? Entre Manvantara e Pralaya? Segundo a Teosofia, muitas vezes o infinito equivale a uma extensão muito grande de tempo. E a autoestrada é infinita nesse sentido de um eterno caminho, estrada larga, estrada extensa.

Túnel que deixa cair uma rosa vermelha na autoestrada, em contraste com a rigidez negra do asfalto. O vermelho e o negro. A consciência que o próprio asfalto tem de que as polaridades só existem quando uma das suas dimensões existe: a rosa só é macia porque “sem ele [o asfalto] a rosa não seria macia”; a rosa só é macia porque o asfalto é duro.

Autoestrada que abriga aviões, torres de controlo e observadores. Observadores que não querem ser observadores, que esvaziam “o cérebro de gasolina” e querem “ser autoestrada / mesmo na encruzilhada do amor / para não escolher”. Não havendo aviões, nem torres de controlo, nem observadores ficaríamos como um animal sem combustível: sem defesas, entregues, talvez mortos, talvez diluídos na autoestrada que não escolhe que carros passam por ela, que se entrega ao que vem e vai. Como um poema.

E a pergunta: o que está condenado ao fracasso? A traça? A busca? A voz? O álcool? Será que essa busca salva? Será que essa busca [ou traça ou álcool ou, mesmo, voz] interessam? Porque buscamos? Será possível não buscar?

Talvez o desafio maior seja abdicarmos da chave “que contém o amor perfeito / a cura da doença / o êxtase perpétuo”. O que precisamos é largar essa mesma chave no vazio e deixar que essa chave se dilua no asfalto. O mesmo asfalto que dilui também as lágrimas do observador que perde, assim, toda a sua hegemonia como observador. Talvez o observador seja, afinal de contas, testemunha. Ou seja, acima de tudo, testemunha e não observador: a testemunha não fica nas imagens, a testemunha não tem adornos, a testemunha é observador observando o seu próprio movimento, “juntando-se a outras estradas que não reais”, enredadas, mas conscientes, dos infinitos véus de Maya que a autoestrada nos empresta.

E, talvez, ainda outra pergunta: se a autoestrada está na superfície, o que estará na profundidade? Porque não acordamos para essa profundidade? Que corpos estarão na superfície e que corpos estarão na profundidade? Devemos apagar as linhas brancas pintadas no asfalto sem apagarmos o resto do nosso próprio caminho? Como deixar de olhar para trás? Transformar-nos-emos em pedra se olharmos para trás? Talvez uma possível resposta [se a houver] será termos em consideração que a autoestrada é um foco de atenção e não um lugar específico; é um túnel, é um caminho estreito, é uma estrada larga e extensa que se repercute e estende até ao infinito, lugar entre, um lugar onde os véus de Maya dialogam com transparências talvez reais ou talvez imaginárias.

Mas se as linhas voltam a ser pintadas, é porque iluminam e se iluminam, dão referenciais. Os referenciais são necessários, mas, muitas vezes, podem dar luz em locais onde a profundidade do negro poderia talvez abrir mais os caminhos. Será que precisamos de linhas? Que linhas serão essas? Linhas que transmitem e gravam o contínuo do caminho? Linhas que são referenciais, mas que podem ser diretrizes rígidas? Porque precisam essas linhas de ser pintadas? Para dar vida e realidade às coisas? Para iluminar e dar sentido à escuridão? Uma candeia acesa, numa luz talvez ainda suave? Não terá mais sentido sermos vozes-morcego, vozes-elefante, vozes-traça? Ou talvez vozes-poema?

Mas os caminhos são todos os caminhos, a autoestrada “é todas as autoestradas”, “as linhas brancas são os poemas do asfalto”, as linhas brancas da vida, ora contínuas ora em traços descontínuos.

No poema “Todas as pontes cairão porque nunca existiram”, Mendía continua a evocar a metáfora da autoestrada, mesmo que esta se deixe atravessar por barrancos e “grandes diferenças que as pontes querem dissimular” e mesmo que as negações e as afirmações sejam, afinal de contas, inúteis. As autoestradas não são iguais, os caminhos não são iguais pois barrancos, baixios, pequenos abismos podem sempre surgir na grande extensão aparentemente tão igual e contínua. A grande extensão que as pontes, evocadoras de Maya, dissimulam, fazendo com que o caminho pareça um longo e contínuo percurso.

No entanto, podemos notar aqui uma certa ironia e, talvez, uma certa alegria: os barrancos são belos, existe o apelo do mergulho na profundidade, no caos, no caldo desafiante da vida que, muitas vezes, parece quase uma brincadeira: porque não vamos para o barranco? Porém, talvez os barrancos não sejam os barrancos e a própria autoestrada talvez seja ela mesma um “grande barranco disfarçado”. Tudo mergulha nesse caldo fragmentado, nessas “linhas brancas fragmentadas” que evocam uma temporalidade contínua ou uma temporalidade que pode dar saltos bruscos, inusitados, talvez imperfeitos. É essa temporalidade que assegura a ordem ou a desordem; que assegura as linhas brancas perfeitas ou as linhas que “que dão giros insuspeitados”, essas linhas brancas da memória e da nossa temporalidade humana.


No poema “Antes da queda a leveza do vidro”, a língua, a letra, as minúsculas partes do vidro flutuando. O vidro: ondas de letras suspensas, tal como a Torre de Babel. Torre, lugar, boca onde não há direções, onde as letras / poemas podem ir até onde elas quiserem, onde os sonhos podem ir até onde eles quiserem, onde os caminhos são muitos, são para se perder, são para nos perdermos, num universo sem mapas nem pontos de referência.

E, de novo, a questão da temporalidade. Aqui, o tempo / a temporalidade são as “minúsculas partes a sonhar que flutuam”, as minúsculas partes do vidro que pensam que voam, iludindo talvez a si mesmas na medida em que o tempo é também ele um sonho, não existe, é talvez um sono tal qual a existência. E essa talvez ilusão, esse véu duplamente bordado de Maya é um prelúdio para a queda. Queda no barranco? Queda na ilusão? Queda na realidade?

Queda, tensão entre o flutuar e o cair, entre o entregar-se à flutuação e à queda na materialidade, entre Aion (o tempo eterno, flutuante) e Cronos (o tempo material, limitado). Queda, partes de vidros e de letras e de línguas e de poemas que também vibram, que também são luz, que também são vistas pelo olho que “assiste se estica como uma lasca”.

No poema “A viagem do tempo através do olho direito”, a dimensão da temporalidade e da memória agora materializa-se nas gotas e na sua própria diluição, gotas que “não se contêm / são apenas luz”. As gotas das coisas que se perdem, as gotas da memória e do tempo, as gotas que no coração iluminam e se transformam em luz. Talvez não só a lágrima, mas também pequenas partículas de água que anunciam a dor transfigurada. Num certo sentido, também a gota / luz que sobe, mas que depois poderá cair como chuva para reiniciar o seu regresso à condição de transfiguração. O eterno retorno?

E, para além da gota, a respiração. A respiração entrecortada como se esta anunciasse um corte entre, ou um espaço entre, ou a dimensão básica da inspiração / expiração, sístole / diástole. Será que essa respiração entrecortada anuncia a respiração entre a vida e a morte, a nossa respiração [cerimónia] de silêncio ou de adeus? Será que as mesmas águas que foram gotas e que fogem do mar avisarão? Será o mar um reflexo? Será o mar uma fuga do reflexo [ou do espelho]? Será que as águas disfarçam o humano, a febre, a morte? Ou, talvez, o exílio?

O exílio que é uma das forças características da poesia. A poesia é palavra exilada. Nós somos palavra e corpo exilado. Tão longe da pátria, da fome e da força, longe de nós mesmos, apesar de nesse longe escolhermos “a geometria do ar / a mordedura de um grão de areia”, como se fugíssemos.

Mendía diz: os corpos estão a cicatrizar, “movem-se” e “os seus ouvidos já não escutam”. Morte? Exílio? Diluição? Uma leveza quase etérica? Corpos desconjuntados que fazem o que lhes apetece? Corpos que caem e que regressam? Que corpos são estes, que caem e que cicatrizam? Teremos nós vários corpos?

 

Um corpo-toque, que “arrepia-se com o roçar”, que quer a carícia e cujo peito aberto escancara o coração;

 Um corpo-olfato, que se perde “no fiozinho fumegante do coador para o copo / abraçando o aroma como o único alívio”;

Um corpo-paladar, “sem boca para gritar apenas para comer / mastigar lentamente enquanto vê o relógio”;

Um corpo que está parado e dorme, sempre à espera de fazer alguma coisa;

Um corpo febril, enlouquecido pela dança. O corpo-Dioniso, o corpo-Nataraj;

O corpo que Vê e não deixa cair;

O corpo natural, o corpo que caminha e vivencia;

O corpo autoestrada, o corpo hipnotizado pelas curvas da existência;

O corpo-anjo, o corpo de ar e terra, o corpo-anjo flor de céu e barranco, corpo de cima de baixo


e, talvez, de todos nós.





 


JORGE VICENTE (Lisboa, Portugal 1974) Desde joven se interesó por la poesía. Con Maestría en Ciencias Documentales, tiene poemas publicados en diversas antologías y revistas literarias, participando, igualmente, en las listas de discusión Encontro de Escritas, Amante das Leituras y CantOrfeu. Es parte de la dirección editorial de la revista online Incomunidade. Tiene cinco libros publicados, siendo el último cavalo que passa devagar (voltad´mar: 2019).




WEDGWOOD STEVENTON (Inglaterra, 1955) | Começou a fotografar em 1973 passando para pintura e colagem em 1995, posteriormente descobrindo o cinema. Colabora, sempre de forma independente, no círculo do Surrealismo desde 1995. Como ele próprio declara: O espírito e o mistério da natureza ligado à existência humana é um tema importante em todos os meus trabalhos. Em uma mostra realizada em 2020, Steventon observou, acerca de sua própria obra: Pinceladas repentinas, a mistura de cores a óleo e, às vezes, a adição de colagens se unem para formar o trabalho finalizado. Nenhum primeiro pensamento, mas a pintura da mente inconsciente. Regras do automatismo. A natureza e o mundo humano se unem para contar a história. Um mundo em fluxo. Uma jornada contínua para explicar uma existência na vida em que nos encontramos.





Agulha Revista de Cultura

Número 230 | maio de 2023

Artista convidado: Wedgwood Steventon (Inglaterra, 1955)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2023 

 


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