E
se os poemas de Gladys Mendía se iniciam no asfalto, numa espécie de estrada
perdida também aí se iniciam no sono / sonho, numa visão onírica e não direta,
uma visão navegando na autoestrada, quase um limbo. Um sono / sonho duplo que
não é só o nosso sonho, mas o sonho do túnel. Uma dobra que assinala a
profundidade do mergulho poético no inconsciente representado por esse túnel,
mas que também assinala a realidade para onde podemos – ou somos obrigados a –
mergulhar. O Hades, o limbo, os nossos olhos decidindo o que seja essa
realidade.
O
caminho é longo e infinito, mas como diz Mendía, o infinito é um estado
intermédio. Intermédio de quê? Entre a vigília e o sonho? Entre a vida e a
morte? Entre Manvantara e Pralaya? Segundo a Teosofia, muitas vezes o infinito
equivale a uma extensão muito grande de tempo. E a autoestrada é infinita nesse
sentido de um eterno caminho, estrada larga, estrada extensa.
Túnel
que deixa cair uma rosa vermelha na autoestrada, em contraste com a rigidez
negra do asfalto. O vermelho e o negro. A consciência que o próprio asfalto tem
de que as polaridades só existem quando uma das suas dimensões existe: a rosa
só é macia porque “sem ele [o asfalto] a rosa não seria macia”; a rosa só é
macia porque o asfalto é duro.
Autoestrada
que abriga aviões, torres de controlo e observadores. Observadores que não
querem ser observadores, que esvaziam “o cérebro de gasolina” e querem “ser
autoestrada / mesmo na encruzilhada do amor / para não escolher”. Não havendo
aviões, nem torres de controlo, nem observadores ficaríamos como um animal sem
combustível: sem defesas, entregues, talvez mortos, talvez diluídos na autoestrada
que não escolhe que carros passam por ela, que se entrega ao que vem e vai.
Como um poema.
E
a pergunta: o que está condenado ao fracasso? A traça? A busca? A voz? O
álcool? Será que essa busca salva? Será que essa busca [ou traça ou álcool ou,
mesmo, voz] interessam? Porque buscamos? Será possível não buscar?
E,
talvez, ainda outra pergunta: se a autoestrada está na superfície, o que estará
na profundidade? Porque não acordamos para essa profundidade? Que corpos
estarão na superfície e que corpos estarão na profundidade? Devemos apagar as
linhas brancas pintadas no asfalto sem apagarmos o resto do nosso próprio
caminho? Como deixar de olhar para trás? Transformar-nos-emos em pedra se
olharmos para trás? Talvez uma possível resposta [se a houver] será termos em
consideração que a autoestrada é um foco de atenção e não um lugar específico;
é um túnel, é um caminho estreito, é uma estrada larga e extensa que se
repercute e estende até ao infinito, lugar entre, um lugar onde os véus de Maya
dialogam com transparências talvez reais ou talvez imaginárias.
Mas
se as linhas voltam a ser pintadas, é porque iluminam e se iluminam, dão
referenciais. Os referenciais são necessários, mas, muitas vezes, podem dar luz
em locais onde a profundidade do negro poderia talvez abrir mais os caminhos.
Será que precisamos de linhas? Que linhas serão essas? Linhas que transmitem e
gravam o contínuo do caminho? Linhas que são referenciais, mas que podem ser diretrizes
rígidas? Porque precisam essas linhas de ser pintadas? Para dar vida e
realidade às coisas? Para iluminar e dar sentido à escuridão? Uma candeia
acesa, numa luz talvez ainda suave? Não terá mais sentido sermos vozes-morcego,
vozes-elefante, vozes-traça? Ou talvez vozes-poema?
Mas
os caminhos são todos os caminhos, a autoestrada “é todas as autoestradas”, “as
linhas brancas são os poemas do asfalto”, as linhas brancas da vida, ora
contínuas ora em traços descontínuos.
No
poema “Todas as pontes cairão porque nunca existiram”, Mendía continua a evocar
a metáfora da autoestrada, mesmo que esta se deixe atravessar por barrancos e
“grandes diferenças que as pontes querem dissimular” e mesmo que as negações e
as afirmações sejam, afinal de contas, inúteis. As autoestradas não são iguais,
os caminhos não são iguais pois barrancos, baixios, pequenos abismos podem
sempre surgir na grande extensão aparentemente tão igual e contínua. A grande
extensão que as pontes, evocadoras de Maya, dissimulam, fazendo com que o
caminho pareça um longo e contínuo percurso.
No
entanto, podemos notar aqui uma certa ironia e, talvez, uma certa alegria: os
barrancos são belos, existe o apelo do mergulho na profundidade, no caos, no
caldo desafiante da vida que, muitas vezes, parece quase uma brincadeira:
porque não vamos para o barranco? Porém, talvez os barrancos não sejam os
barrancos e a própria autoestrada talvez seja ela mesma um “grande barranco
disfarçado”. Tudo mergulha nesse caldo fragmentado, nessas “linhas brancas
fragmentadas” que evocam uma temporalidade contínua ou uma temporalidade que pode
dar saltos bruscos, inusitados, talvez imperfeitos. É essa temporalidade que
assegura a ordem ou a desordem; que assegura as linhas brancas perfeitas ou as
linhas que “que dão giros insuspeitados”, essas linhas brancas da memória e da
nossa temporalidade humana.
E,
de novo, a questão da temporalidade. Aqui, o tempo / a temporalidade são as
“minúsculas partes a sonhar que flutuam”, as minúsculas partes do vidro que
pensam que voam, iludindo talvez a si mesmas na medida em que o tempo é também
ele um sonho, não existe, é talvez um sono tal qual a existência. E essa talvez
ilusão, esse véu duplamente bordado de Maya é um prelúdio para a queda. Queda
no barranco? Queda na ilusão? Queda na realidade?
Queda,
tensão entre o flutuar e o cair, entre o entregar-se à flutuação e à queda na
materialidade, entre Aion (o tempo eterno, flutuante) e Cronos (o tempo
material, limitado). Queda, partes de vidros e de letras e de línguas e de
poemas que também vibram, que também são luz, que também são vistas pelo olho
que “assiste se estica como uma lasca”.
No
poema “A viagem do tempo através do olho direito”, a dimensão da temporalidade
e da memória agora materializa-se nas gotas e na sua própria diluição, gotas
que “não se contêm / são apenas luz”. As gotas das coisas que se perdem, as
gotas da memória e do tempo, as gotas que no coração iluminam e se transformam
em luz. Talvez não só a lágrima, mas também pequenas partículas de água que
anunciam a dor transfigurada. Num certo sentido, também a gota / luz que sobe, mas
que depois poderá cair como chuva para reiniciar o seu regresso à condição de
transfiguração. O eterno retorno?
E,
para além da gota, a respiração. A respiração entrecortada como se esta anunciasse
um corte entre, ou um espaço entre, ou a dimensão básica da inspiração /
expiração, sístole / diástole. Será que essa respiração entrecortada anuncia a
respiração entre a vida e a morte, a nossa respiração [cerimónia] de silêncio
ou de adeus? Será que as mesmas águas que foram gotas e que fogem do mar
avisarão? Será o mar um reflexo? Será o mar uma fuga do reflexo [ou do
espelho]? Será que as águas disfarçam o humano, a febre, a morte? Ou, talvez, o
exílio?
Mendía
diz: os corpos estão a cicatrizar, “movem-se” e “os seus ouvidos já não
escutam”. Morte? Exílio? Diluição? Uma leveza quase etérica? Corpos
desconjuntados que fazem o que lhes apetece? Corpos que caem e que regressam?
Que corpos são estes, que caem e que cicatrizam? Teremos nós vários corpos?
Um
corpo-toque, que “arrepia-se com o roçar”, que quer a carícia e cujo peito
aberto escancara o coração;
Um
corpo-olfato, que se perde “no fiozinho fumegante do coador para o copo /
abraçando o aroma como o único alívio”;
Um
corpo-paladar, “sem boca para gritar apenas para comer / mastigar lentamente
enquanto vê o relógio”;
Um
corpo que está parado e dorme, sempre à espera de fazer alguma coisa;
Um
corpo febril, enlouquecido pela dança. O corpo-Dioniso, o corpo-Nataraj;
O
corpo que Vê e não deixa cair;
O
corpo natural, o corpo que caminha e vivencia;
O
corpo autoestrada, o corpo hipnotizado pelas curvas da existência;
O
corpo-anjo, o corpo de ar e terra, o corpo-anjo flor de céu e barranco, corpo
de cima de baixo
e, talvez, de todos nós.
WEDGWOOD STEVENTON (Inglaterra, 1955) | Começou a fotografar em 1973 passando para pintura e colagem em 1995, posteriormente descobrindo o cinema. Colabora, sempre de forma independente, no círculo do Surrealismo desde 1995. Como ele próprio declara: O espírito e o mistério da natureza ligado à existência humana é um tema importante em todos os meus trabalhos. Em uma mostra realizada em 2020, Steventon observou, acerca de sua própria obra: Pinceladas repentinas, a mistura de cores a óleo e, às vezes, a adição de colagens se unem para formar o trabalho finalizado. Nenhum primeiro pensamento, mas a pintura da mente inconsciente. Regras do automatismo. A natureza e o mundo humano se unem para contar a história. Um mundo em fluxo. Uma jornada contínua para explicar uma existência na vida em que nos encontramos.
Agulha Revista de Cultura
Número 230 | maio de 2023
Artista convidado: Wedgwood Steventon (Inglaterra, 1955)
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2023
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ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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