quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

FLORIANO MARTINS | Aos cuidados da memória, uma conversa com Jacob Klintowitz

 


Quando criança eu lembro de ouvir minha avó materna dizer que para se conhecer alguém era preciso compartilhar com esse alguém um alqueire de sal. Desde cedo então considerei tal impossibilidade. Aos poucos vamos percebendo que a vida compartilhada, não importa com quem, está repleta de labirintos e muitas de suas passagens nem sempre nos levam a um apuro de conhecimento. Durante o trajeto mudamos todos, nós, o outro, o labirinto. A riqueza do conhecimento mútuo vem também do fato de que a todo instante somos outros. O remanescente da própria vida, o que dela nos fortalece, é o mais alto grau de esmero existencial. A amizade é o alqueire de sal. E ela nos revela também a singularidade de suas contradições. Aprendi isto com Jacob Klintowitz (Porto Alegre, 1941), desde o primeiro momento em que nos encontramos. Lembro a manhã em sua casa, dali sairíamos para um almoço, e certamente naquele dia compartilhamos nosso primeiro alqueire. Até hoje os nossos encontros estão marcados por uma insólita forma de intensidade, como se fôssemos – perdoem-me a infame modéstia – dois magos desfiando milagres. Os leitores desta entrevista terão mais uma oportunidade de dar conta do que atrevidamente afirmo.

 

FM | Alfa e Ômega se irmanam em um conceito único: memória. A memória determina o princípio e o fim da humanidade. Tudo o que acontece em seu centro radiante é um jogo de causa e efeito da mecânica da memória. Dirias que o ser criativo, do ponto de vista da criação artística, possui um traço distintivo em sua relação com a memória?

 

JK | A memória é o presente da humanidade. Estamos sempre no hoje, mas esse tempo comporta tudo. A identidade é o presente, mas o presente é a história pessoal, a história do seu núcleo familiar, étnico, histórico. E a gravação do seu percurso, do começo ao fim. E, certamente, uma memória gravada na nossa história genética. Deste ponto de observação, somos únicos e somos coletivo.

O artista é o que cria o símbolo. Ou o recria, já que tudo já foi feito. O artista é o que dá forma. O artista é o que acrescenta um ser ao mundo. Ainda que este ser único tenha na sua constituição a memória. Agora, o dado fantástico: este novo ser deve ter unicidade absoluta. Ele só é arte se, de maneira especial, for único. É um fantasma que se separa de tudo e nesta solidão ele é todos nós, mesmo que não saibamos nos identificar com ele. É um fantasma que nos reinventa. A memória é o presente, mesmo que ele aparente ser novo. O ser despido das convenções, da banalidade, da racionalidade, é a arte. O que percorre este caminho da solidão capaz de lhe permitir criar o novo é o artista.

 

FM | És um crítico de artes e também um criador de metáforas – a tua narrativa curta é possuída pela magia das sugestões quase axiomáticas –, de modo que indago como se comportam em tua percepção os quadrantes em geral dados como isolados da imagem plástica e da imagem poética.

 

JK | A imagem dotada de originalidade, ainda que essa originalidade seja constituída de memórias, é imagem poética. A nossa emoção se deve ao fato de que este ser novo, a imagem plástica, a imagem poética, formaliza a nossa consciência. Como se trata sempre da herança memorialística, temos em nós os mesmos elementos do novo ser. Mas de forma fragmentária. Com a contemplação da imagem plástica, o que era fragmento se organiza em forma. Ou seja, mistério e linguagem. É poética porque a intuição do existente, do que existe, a intuição do que é o mundo, é um canto poético. Perceber a forma é poético. A forma, feita de intuição, do sentimento único, da empatia com o existente, é o canto que organiza a nossa consciência. É claro que falo no artista que consegue ser único, que se diferencia da banalidade.

 


FM | Entramos em 2024, centenário do surgimento oficial do Surrealismo. A rigor, o movimento já existia desde 1919, sendo 1924 o ano de publicação do primeiro manifesto. Nesta centúria o Surrealismo tem sido amigo e inimigo das artes. Ao lado de seu caudal de maravilhas tem trazido consigo as queixas – às quais, em algumas, ele de fato corresponde – de muitas intrigas. Quando especificamente tratamos do mundo plástico, poderias sintetizar um balanço de seus erros e acertos?

 

JK | A percepção do universo como mágico e o fluxo do inconsciente e o contato com arquétipos, de muitas maneiras, sempre fizeram parte do universo humano. O Surrealismo foi um movimento bem-vindo, ligado ao magnifico mundo que a psicologia nos deu no século XX. É uma contribuição, uma articulação de linguagem, que muito acrescentou ao nosso cotidiano. Isso é um acerto. Uma contribuição formidável. E permitiu e ajudou na libertação do artista de nossa época.

O erro não pertence ao surrealismo, mas ao facilitário que os medíocres utilizam para se fingirem de modernistas. Pura mistificação. Não me concentro nisto, pois a nossa é uma época de fraudadores, de falsos profetas.

Quanto às intrigas, às tiranias vestidas de autenticidade, às mesquinharias, infelizmente faz parte do cenário. O ser humano, em regra, é muito pouco desenvolvido. Evito me envolver nisto. Perde-se muito tempo em combater a fraude. Prefiro viver o sublime de ter o sonho como uma revelação do real.

 

FM | Em nome de uma buscada brasilidade o Modernismo no Brasil aventurou-se, em alguns casos, por uma mitologia indígena. Há tantos casos de um diálogo leve, quase uma crônica (penso em Tarsila do Amaral) e, por outro, lado uma recriação permanente do mito (penso em Maria Martins). No primeiro caso faltou justamente aquela decisão de explorar o que há por trás da linguagem. De que modo as vanguardas influíram na criação artística, sempre o mundo plástico, que surge posteriormente?

 

JK | A arte da nossa época bebeu fortemente nas criações de outras civilizações. É o caso evidente de Pablo Picasso, Matisse, Henri Moore, Constantin Brancusi, Jean Arp, Pollock. Outros, pela grandeza de sua concepção, mesmo não tendo partido de uma relação direta, se aproximaram da arte de outras civilizações ou da arte de núcleos que ainda resistem na nossa civilização, com é o caso de Armando Reverón, Juan Gris, Claude Monet, Chain Soutine, Alexander Calder, Giacometti, Van Gogh, Gauguin.

Os brasileiros também participam desta aventura. Vicente do Rego Monteiro tem uma relação direta com tribos contemporâneas. Outros artistas tem uma obra de tal maneira profunda que se aproximam, em alguns momentos, da Arte Totêmica. É o caso de Candido Portinari, Alfredo Volpi, Victor Brecheret, Rubens Matuck, Israel Pedrosa, Roberto Magalhães, Aldemir Martins, Henrique Léo Fuhro.


Tarsila do Amaral é uma pintora importante e recupera, ou incorpora, uma existência rural edílica e cromática. A sua ligação com o mundo indígena é mais a de escolher um nome indígena para o seu trabalho: “Abapuru”. A sua filiação evidente é com Léger e com alguns artistas ingênuos. É uma artista de superfícies. Ela tem um papel importante na nossa arte e a sua linguagem simples é enganadora.

Maria Martins é uma artista notável ainda não devidamente reconhecida. A sua participação na Bienal de São Paulo contou com a intransigente defesa de seu nome por Maria Bonomi e por mim. O seu universo mítico é profundo e seminal.

A atual unanimidade de observar e utilizar desenhos e grafismos indígenas não é senão uma aproximação superficial. O que importa na Arte Totêmica é justamente o sagrado e não narrativas gráficas.

 

FM | Uma das características negativas do Brasil – e não apenas no plano artístico – é a sua ausência de relacionamento com outros cenários culturais no resto do mundo, ou seja, nosso isolamento tem nos proporcionado uma noção destorcida da realidade. Uma vez que os danos essenciais já foram causados, talvez de nada adiante creditar à tecnologia virtual uma função de recuperação desse quadro. Nossa presunção é, portanto, atávica e irresoluta?

 

JK | A gestão política do Brasil sempre teve esse caráter de não universalismo. Somos envolvidos nesse parcial isolamento. Existe um eros na população, nas regiões isoladas, nos guetos. Seguidamente esse isolamento se transforma em movimento retrógado, estimulado por religiões sectárias e politicas moralistas. O que será o futuro? Pode ser uma eclosão vital de criatividade, pode se manifestar como um movimento totalitário.

 

FM | Há algum tempo tive a oportunidade de ouvir o Chico Anysio (1931-2012), que além de escritor, ator, magnífico criador de personagens, foi também um regular aquarelista, pois bem, ele dizia que deixaria de pintar, pois não estava vendendo. Isto me pareceu um paradoxo terrível do mercado, que é norteado pelo prestígio do artista e não pela natureza estética da arte. O Brasil coleciona nomes de uma força artística renovadora, no aquário dos esquecidos e/ou desconhecidos, ao passo que outros tantos, de menor ou mesmo nenhum vigor criativo, adaptam-se ao jogo do mercado e se destacam. Como retirar um país dessa metáfora da areia movediça?

 

JK | Não há como escapar das regras de mercado. É uma realidade social. O que se espera é que artistas importantes e poetas e intelectuais sigam oferecendo o exemplo de uma arte reveladora. Faz parte do mercado favorecer produtos. É de sua lógica. No caso brasileiro, os falsos profetas existem em todas as atividades. No exemplo dado, abandonar a criação em razão da não aceitação mercadológica, me parece uma atitude equivocada. Chico Anysio foi um extraordinário homem na área teatral e de comunicação. O prazer não lhe bastava? O fazer artístico, o ato poético, está profundamente ligado ao prazer. Resta esperar da humanidade, não só no Brasil, o caminho da sabedoria e da percepção poética. Uma imagem, uma frase, são um vislumbre do universo.

 

FM | Dizia o mexicano Octavio Paz (1914-1998) que a moral do poeta é verbal: é lealdade à palavra. De que modo transporíamos esta observação para o artista plástico? De que modo o artista plástico converte em arte a própria vida?

 

JK | A moral do artista plástico é a lealdade à imagem. A lealdade do artista é ao ser.

 


FM | Há muito, em entrevista que fiz ao crítico literário espanhol Jorge Rodríguez Padrón, ele me disse que uma das funções da crítica seria justamente a de iluminar certos ângulos escurecidos da criação. Como concebes o teu diálogo crítico com uma obra de arte? O que buscas revelar?

 

JK | Também é iluminar aspectos obscuros. Mas a obra de arte não precisa de tradutores. Na verdade, não comporta tradutores. Ela tem uma vida plena, absoluta. As suas mensagens, se usarmos este termo tão obsoleto, está completa. No meu caso, pretendo um diálogo com a obra de arte. Ela me revela, me acrescenta, me transforma, aumenta a minha lucidez. E é sobre isto que desejo falar. Não sou um iluminador profissional, ainda que este aspecto sempre exista. Sou, se me permitem, um iluminado.

 

FM | Não creio que seja antiético falar da crítica de arte no Brasil, sendo este o teu ofício. Há em nossos críticos uma percepção da intimidade criadora de imagens dos artistas e de identificação daquilo que em tais artistas é uma forma de explorar o que é comum a todos os homens, ou seja, aquela essência indispensável a toda criação artística?

 

JK | Nós tivemos críticos importantes, hoje temos críticos importantes. Mudou o enfoque, a realidade, o que antes era exercido no espaço da comunicação, da mídia, hoje é tarefa universitária e, em boa parte, circunscrita ao campus. Há pensadores importantes. Há muita coisa sendo pensada e escrita. Eu não pretendo a supremacia. Não quero ser melhor e mais completo do que ninguém. Eu só pretendo ser leal a mim mesmo. Apesar da idade já tão avançada, confesso a minha loucura; estou cheio de planos.

 

FM | Esquecemos algo?

 

JK | Esquecemos. Quero fazer uma declaração, mesmo que isso soe um ato teatral. Como pode ser esperado, eu dei dezenas de entrevistas, fiz dezenas de lives, participei de infinitos simpósios. Às vezes, nem sempre, sinto que os anos tornaram tediosas as entrevistas, as lives, os simpósios. Pela simples razão de que tudo se repete ad infinitum. Floriano Martins não faz parte deste universo convencional e repetitivo. É um profeta. É um indagador. Pensador de tempo integral. A presente entrevista foi uma experiência rica e animadora. Tive que refletir sobre muitas coisas, especialmente sobre mim mesmo. Esta entrevista foi um momento de prazer.

 



FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Criador e integrante da “Rede de Aproximações Líricas”. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023). 




MIREYA BAGLIETTO (Argentina, 1936). Artista, ceramista, pintora, escultora e investigadora, creadora del Arte Núbico. De formación casi autodidacta, es considerada una artista atípica dentro del escenario de las artes visuales de su país. Ha realizado numerosas exposiciones, muchas de ellas a nivel internacional y ha sido reconocida con diversos premios por su trayectoria, incluyendo el premio Konex como una de las cinco figuras más importantes de la historia del arte cerámico argentino y el Gran premio de Honor del Salón Nacional de Artes Visuales. Durante su etapa de ceramista (1958-1978) creó el Taller para Estudios Cerámicos que lleva su nombre, donde se formaron numerosos ceramistas argentinos. A partir de 1985, cuando el Arte Núbico quedó establecido como una tendencia, desarrolló una vasta tarea de docencia tanto en su propio estudio como en diversos centros y universidades argentinas, trabajando sobre el despertar de la sensibilidad creativa en relación con la materia y el espacio atemporal. 

 

 


Agulha Revista de Cultura

Número 248 | fevereiro de 2024

Artista convidado: Mireya Baglietto (Argentina, 1936)

editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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