Pois por mais longos que sejam os caminhos
Eu regresso.
SOPHIA DE MELLO
BREYNER ANDRESEN
Gostaria de abrir com uma pergunta feita
para mim e os leitores deste texto: Por que a figura mítica de Eurídice atrai de
maneira poderosa e recorrente? Ela se faz visível e invisível, aparece e se desvanece,
fica calada e fala. Eurídice não deixa de incitar, surpreender, assombrar. É possível
imagina-a de diferentes maneiras, mas algo inalterável a identifica, embora nem
sempre seja explícito. Como sabemos, tem sido objeto e sujeito de diálogos memoráveis
na literatura e nas artes visuais. Sobretudo, escritoras contemporâneas se reconhecem
nela das mais variadas formas ao configurá-la desde dentro – assunto que motiva
estas notas –, integrando vivencias e convicções sobre a existência social da mulher.
Eurídice é vivida e revivida como metáfora viva na sua dramática intimidade de tão
fulgurantes sentidos simbólicos.
Há pouco tempo
foi publicado um instigante romance, A vida
invisível de Eurídice Gusmão (2016), de Martha Batalha. Sua narrativa deu origem
a um filme, A vida invisível (2019), dirigido por Karim Aïnouz. Os dois privilegiam
no título o motivo da invisibilidade da mulher condenada ao submundo da irrealização,
tema de rico apelo no contexto da crítica feminista. Pensando em filmes, impossível
esquecer Orfeu negro (1959), dirigido
por Marcel Camus, que vi em Cuba no seu momento de estréia, obra memorável além
das polêmicas que suscitou. Esta versão foi vaticínio, então inexplicável, se bem
marcante ao mostrar um universo que reconheci como meu e de outro (terceiro) mundo.
Orfeu (1999), de Cacá Diegues (1999), surgiria depois. Ambos os filmes baseados
livremente na peça de Vinicius de Moraes Orfeu
da Conceição (1956). No âmbito da favela e o carnaval carioca, o mito de tanta
ressonância na história da literatura e a arte, será redimensionando. O autor declara:
“esta peça é uma homenagem ao negro que me permitiu, sem esforço, num simples relampejar
do pensamento, sentir no divino músico da Trácia a natureza de um dos divinos músicos
de morro carioca” (MORAES, 1956, p. 14). Orfeu ocupa o primeiro plano, Eurídice
deverá esperar.
Sem deixar
de me interessar por essas versões fílmicas que privilegiam a perspectiva de Orfeu,
se bem os dois amantes estejam atrelados na trama mítica, [1] comecei a procurar outras representações de Eurídice na poesia contemporânea
de autoria feminina. Buscava Eurídice como alicerce e foco da trama, recontado o
mito.
A poesia de
Margaret Atwood foi ponto de partida pela proposta gendrada e a trama original.
Escrevi um artigo (2004), [2] onde examino
os poemas “Eurydice” e “Orpheus (1)” de Interlunar
(1984). Aprofundando no tema sobre a base dessa primeira aproximação, surgiu “Interpretaciones
de Eurídice” (2007). [3] Nesse ensaio
leio comparativamente Eurídice en la fuente
(1979), de Juana Rosa Pita, e os poemas de Margaret Atwood nos que Eurídice
está presente como figura dominante.
Então, este
raconto não é gratuito. Supõe a busca,
que dura anos, de outros entendimentos e modos de configurar heterodoxos, talvez
baixo continuo na tentativa de ganhar
consciência, na ordem teórica, em relação a uma autopoética [4] em formação. Constitui, portanto, um
catálogo pessoal e limitado considerado em relação à abrangência do assunto, mas
motivação principal, explícita ou subjacente, de uma experiência autoral; o que
em poesia, como na vida, não resulta menos significativo e desafiador.
Eurídice nas escrituras reflexivas: o
laboratório de formas
Nas escrituras reflexivas sobre as poéticas
distintivas de Margaret Atwood e Juana Rosa Pita, antes citadas, exploro a composição
da identidade narrativa de Eurídice nos termos da teoria de Paul Ricoeur (1996;
2001), a qual toma a narração como modelo heurístico de apreensão do ser-no-mundo.
Nesta concepção, a experiência de identidade passa pelo registro textual, implica
atos discursivos que se inscrevem no espaço e tempo de si mesmo e dos outros, para
configurar existências imaginárias, sensíveis e intelectualizadas, abertas à interpretação
em uma dinâmica que vai da vida ao texto, do texto à leitura. Precisamente este
vaivém foi meu percurso de leitura-escritura sobre o tema de Eurídice e suas variações.
Focalizado nas dimensões discursivas e compositivas, o
conceito de Ricoeur me permitiu explorar de maneira mais advertida a história mítica,
a natureza da enunciação, as maneiras de inventar, de fabular a Eurídice que nessas
autoras, Atwood e Pita, é um tipo de sujeito pós-metafisico, característico da cultura
artística e intelectual da alta modernidade, onde as identidades são tão fluidas
e mutantes que desafiam o próprio conceito de identidade. Nos textos das duas poetas
trata-se de uma figura mítica mulher, narrativizada em episódios de vida e na emergência de si. Sujeito poético,
nem homogêneo nem autotélico, mas relacional, trazendo consigo a alteridade que
também identifica a estas versões da Eurídice mítica.
A identidade narrativa me permitiu vislumbrar formas do
figurável, ao examinar as fronteiras cada vez más flexíveis entre mundo e figuração
poética. Estava à procura de modelos na ficção, nunca em oposição ao mundo da vida,
mas altamente imaginativos, de projeções metafóricas e simbólicas.
A proposta de ontologia hermenêutica de Ricoeur resultou-me,
ademais, muito promissória na indagação do oficio leitor na criação de sentidos
ao instaurar outros horizontes epistemológicos marcadamente de autocognoscitivos.
A identificação com o sujeito Eurídice, fio de trama, faz possível não só a interpretação.
O leitor volta-se para si. E era esse meu empenho na escritura: transitar entre
interpretação e autointerpretação.
Também Ricoeur levou-me a atualização do conceito aristotélico
de mimese, não calco ou duplicado, senão mediação entre tempo e narrativa e entendimento
de mito como “posta em trama”, fazer sobre um fazer. Destacaria, neste processo
reflexivo, a ideia de mito atrelado a trama, imaginação, composição, representação.
A ficção revelava-se “laboratório de formas”.
O conceito de identidade narrativa conduz-me naturalmente
á poética e, nesse marco, a investigar os vínculos entre mito e mimese. Focada nas
dimensões ontológicas das representações do mitema de Eurídice, avancei em zonas
de identidade contraditórias e muito ricas, inseparáveis da experiência das autoras,
das leitoras e leitores, todos inscritos na temporalidade histórica que o mito,
longe de esvaziar ou abstrair, revela com renovada força.
Barthes analisa como o mito congela os significados para
lançar-los a una semiose sem fim. Interpela a partir de analogias e gera diversas leituras. Lido diacronicamente conserva vestígios das anteriores
interpretações; lido em sincronia, oferece uma trama verdadeira irreal. Assim ler literariamente um mito é entrar em uma vasta rede de formas significantes.
Dessa forma
aconteceu comigo neste processo, embora muitos significados ainda reclamem interpretação.
Tanto Margaret Atwood como Juana Rosa Pita (nascidas em 1939) concebem Eurídice
no espírito libertário dos anos 80, concedendo primazia à autopoiese. Assim autogênese
e metamorfose, sobre a base do autoconhecimento, estão no centro da busca ontológica
que Eurídice representa. Margaret Atwood desestabiliza os estereótipos com a ironia
intertextual de seus arquétipos; Juana Rosa Pita trama também uma figura arquetípica,
mas a partir de uma memória imaginária que tem um forte vínculo com sua condição
transcultural como poeta de uma diáspora.
Ao criar versões, visões, estilos diferençados, as poetas
conservam e transformam o mitema em sua relação com o cânone. A identidade de Eurídice,
tramada na narração, está referida a uma subjetividade única, possivelmente autoficcional
e de projeção simbólica. Nesse espaço intermédio entre historicidade e mito, nesse
interstício auto e bio ficcional de tantas potencialidades, resscrevem o mito de Eurídice, focalizando, e gostaria
de sublinhar-lo, a figura feminina na sua metamorfose.
Essas ficções de Eurídice, e vale invocar
de novo a Ricoeur, revelam a mudaça na coesão de uma vida. A identidade é um si-mismo
(ipse), uma estructuração temporal dinâmica
que resulta da composição. Atwood e Pita configuram um processo aberto que potencializa
zonas de silencio, escuras e luminosas. Pela condição de
escritoras de espaços liminares e interstícios, nada é definitivo. Em conseqüência,
os níveis de leitura interpretativa são instáveis e fluidos.
Com suas audazes propostas, Pita e Atwood modelam um leitor
em movimento que atua. Leitor semiótico que se pergunta sobre a composição como
forma que significa e, neste caso particularmente interessado interpretação mítica.
Na Eurídice plural da poesia, ao esvaziamento do mito, sucede a plenitude dos sentidos
da nova mitificação com suas estratégias intertextuais, transgressivas, de inclusão.
À ortodoxia sucede a proposta heterodoxa: a história já
não é contada desde ou por Orfeu. Eurídice consegue deixar o inferno
ou quer ficar nele, recodificado como espaço de ressurreição e renascimento, a morte
é fecundante, inicio jubiloso, Eurídice/corpo é vazia, mas Eurídice/sombra, carregando
trevas, está plena. Sua metamorfose não é só resistência, mas libertação de uma
forma que a aprisionava. Ela está no caminho do encontro consigo, do autoconhecimento
e, por tanto, de sua transfiguração. Em termos de poética, poderia se pensar nas
trevas luminosas em Margaret Atwood e na ascensão à luz em Juana Rosa Pita. Nos
seus poemas, anábese e catábase [5] mostram uma poderosa recriação.
A caminho de Eurídice
Certamente estas versões de Eurídice, e durante um bom
tempo as escrituras reflexivas referidas as suas configurações poéticas, estavam
incitando-me a ler a própria vida na tessitura da ficção desde a perspectiva de
uma narração clássica situada na temporalidade e no espaço do mito. A experiência
vital era desafiada pela forma.
E hei que,
quando começo a escrever ficção na poesia, Eurídice aparece em “Despedida de Eurídice”
de Las palabras viajeras (2010). Neste
livro ensaio variantes da autoficçao – memória, autoconfissão, autorretrato, carta
–, assunto que pesquisava no trabalho acadêmico. Desde o princípio foi evidente
que bioficção e autoficção se comunicam nas suas estruturas profundas, ainda que
essa relação tenha sido escassamente apontada nas teorias das escrituras de si mesmo.
Abria-se uma nova perspectiva, tanto na teoria como na ficção.
Conceber Escribas (2013) foi um exercício natural,
sem deixar de ser deliberado. No livro desenvolvi essas modalidades genéricas da
metaficção nos seus vínculos ostensivos. As vidas imaginárias, uma máscara autorreflexiva;
a autoficção, um exercício biográfico voltado para si, de pretensão “realista” ou
fantástica. E, em lugar central, a retomada da figura autoral como demiurgo e protagonista
da sua ficção.
Nesse espírito,
em Escribas uma autora chamada A está
tramando histórias de escribas mitológicas e históricas (até o século XIII). Paralelamente
conta episódios de sua vida de maneira fragmentária e não cronológica. Nessas histórias,
não falta um descenso ao inferno (protagonizada pela deusa Innana, na narração de
Enheduanna) e uma defesa da caída como ascensão (Marguerite Porete com sua obra
O espelho das almas aniquiladas ardendo
na fogueira).
No livro Andante, que atualmente escrevo, Eurídice
está explícita em um poema, “Assim falou Eurídice”, e de maneira alusiva em outros
dois: “Descenso” e “Pergunta”. Ademais, de forma tangencial, em “Para Gwendolyn”
que retoma o tema do descenso ás regiões infernais, nesta ocasião inspirado no imaginário
de Gwendolyn MacEwen, [6] escritora de
fascinantes versões míticas, com a qual dialoga Margaret Atwood.
Seja nos repertórios
clássicos [7] ou cristãos, a descida
ao inferno representa uma experiência de perdição e salvação, de revelação e ocultamento,
de silencio e fala. Seus extremos, mais que polaridades em confronto, supõem intervalos
desafiantes e fecundos.
Nas descidas
a esse mundo subterrâneo, diversos imaginários vão se amalgamando até constituir
um espaço de busca, autoconhecimento e transformação, como acontece no modelo da
anábase clássica. Pela sua parte, a catábase forma uma ampla rede hipertextual não
só referida ao mito de Orfeu e Eurídice. Na minha escritura essa viagem fantástica
aparece freqüentemente, tanto no diálogo intertextual com a Divina Comédia, de Dante Alighieri, através
das figuras de Francesca e Paolo, como com Uma
temporada no inferno de Arthur Rimbaud.
O Inferno do
Jardim das delícias, de Hieronymus Bosch,
é o fio que trama Visiones de mujer con alas
(2016), livro que tematiza uma descida ao inferno pessoal como espaço de memória
e de renascimento, reinterpretando catábase e anábase em uma viagem de morte e vida,
no qual o sujeito poético Narcisa, consubstanciada com a sombra, finalmente alcança
sua luz. Neste mundo simbólico de ambiguidade e ambivalência, descenso e ascensão
se correspondem em uma concepção que deve muito ao vazio pleno de Marguerite Porete,
precursora em ocidente do misticismo negativo, embora de mais antiga existência
noutras formas de espiritualidade como sufismo, taoísmo, budismo.
No seio dessas
versões heterodoxas, ao dizer de Cirlot, também resulta muito expressivo William
Blake, quem desenvolve sua concepção em As
bodas do céu e o inferno. Em sua visão o inferno é crisol das energias cósmicas,
enquanto o céu simboliza a serenidade, a paz dos resultados últimos e a possibilidade
de uma síntese (1992).
Nesse âmbito
tão rico dos motivos míticos recontados, brilha a poesia de Sophia de Mello Breyner
Andresen vinculada a Eurídice, [8] motivo
que tem manifesta centralidade em sua obra de grande riqueza imagética e conceitual.
Nesse corpus – que atualmente leio e sobre
o qual ainda não escrevi–, chamam a atenção as notáveis subversões de cânone: Eurídice
é quem anda em busca de Orfeu, o inferno está recodificado – acaso o vasto mar incognoscível
a mais poderosa –, a catábase está mais perto de imersão (talvez pela imagem do
mar) que do descenso ao mundo subterrâneo.
Eros e Thanatos
se fazem patentes na configuração dos amantes, mas de maneira nada convencional.
A morte não é término, mas verdadeiro caminho para a completude no amor esférico
do mito platônico, inalcançável no mundo dos vivos. Orfeu pretende a Eurídice na
vida, não quer morrer; entretanto Eurídice o completa desde o reino da morte. Não
só Orfeu, também Eurídice é uma configuração simbólica da poesia. Os dois poetas
se espelham. E sobre todo este universo paira a memória com seu poder criativo.
Essa vastíssima
rede de interpretações mostra a constância do tema de Eurídice no inferno e na luz,
com notáveis variações, pois ainda que referido à narrativa mítica canônica, resulta
subversivo. Eurídice torna-se sujeito principal da história e de sua trama. É configurada
na sua identidade profunda de múltiplas fases, prismática e proliferante. Assim,
a escolha do conceito de variação para estas notas responde à intenção de pensar
as formas compositivas da semiose, tanto referidas à trama, como metafóricas e simbólicas.
Suas motivações, conscientes ou subliminais, também estão no fundamento de um projeto
ficcional pessoal em desenvolvimento.
Variação, como
sabermos, é um termo que vem da música barroca com sua polifonia, contemporaneamente
o jazz, uma de suas expressões mais elaboradas. No esclarecido verbete sobre Variações,
Zilá Bernd refere suas estratégias, improvisação, repetição, proliferação, que caracterizam
uma estética de movimento, de instabilidade e, sobretudo, de insubordinação à partitura
(2010: p. 389). Desde a perspectiva da poética enfatiza suas possibilidades artísticas
“metaforizando a mobilidade e a insubmissão como soluções literárias e também existenciais”
(BERND, 2010: 401).
Nos poemas
contemporâneos sobre Eurídice, a variação desenvolve uma metáfora seminal referida
á possibilidade de transformação na busca de formas cada vez mais autoconscientes
de identidade. Narrativiza, ademais, um processo de variados sentidos e potencialidades,
inclusivo da alteridade, no qual a insubmissão se faz patente. Ficam na berlinda
a sociedade patriarcal, suas performances de gênero, a invisibilidade e o silêncio
impostos à mulher pelos costumes, modos, concepções e práticas de uma época que
está durando milênios.
A Eurídice
figurada, na esteira dos atos liberadores tão característicos da poesia de autoria
feminina atual, tem suas próprias maneiras de libertação das imposições sociais
que a desvanecem, deixam sim voz nem corpo e condenam à marginalidade. A Eurídice
que se faz presente quer realizar uma vocação desalienante, para assumir sua criatividade
como fazedora de si mesma que deixa seu legado no mundo da vida. Com outras formas,
regressa, está aqui com um poder vivificador desconhecido.
No seu conjunto
os poemas interpretam variações sobre o tema de Eurídice, vinculados aos motivos
de catábase e anábase, alguns de modo explícito, outros de forma indireta, mais
velada. Neles a paixão de Eurídice está no mundo dos conflitos extremos. Então,
nem tudo poderá ser entrega e amor. Sua cabeça foi roubada. Depara-se com morte,
violência, desaparição. Mas é uma mulher errante, livre e ousada, que amou e foi
amada, mas também perdida, deixada atrás, no inferno, onde longe de desvanecer,
se refaz e transcende. Com consciência de si, exerce sua obra de fidelidade e perseverança.
Na subversão do rol do herói mítico, desce ao inferno e desafia o poder da morte.
Semelhante a Isis, dá ao corpo desmembrado do amado, uma nova forma imortal porque
tem muita fé. Finalmente realiza um nosto,
motivo caro á tradição clássica. Seu regresso é obra de “Amor constante, além da
morte”, lembrando o ímpar soneto de Francisco de Quevedo, séculos depois magistralmente
reinterpretado por Carlos Fuentes em Aura. O amor é possibilidade infinita que faz
acontecer o impossível.
Hoje reconheço
Eurídice como caminho possível e desejável. Sua imagem cheia de nuances, perto do
“coração selvagem”, me incita a procura-a nas variações, formas fluidas, insubmissas,
em movimento. Ela tem cabeça própria, sua busca não tem fim, assim como a palavra
que a testemunha. O simbolismo de história mítica ganha literalidade, funciona a
modo de efeito de distanciamento que permite a fala do não falado e abre as portas
da intimidade inconfessa. Com Eurídice é possível traspassar o umbral, deixar atrás
o reino da dor e a perda, tornando visíveis e interpretáveis fragmentos de vida
na ficção. Com ela vamos ao encontro de nos mesmos e do Outro noutra altura da experiência
vital.
A seguir os
poemas, retomando a pergunta inicial para a qual não tenho uma resposta única pessoal,
só estes textos abertos à interpretação.
DESPEDIDA DE EURÍDICE
acepto decirte adiós
te despido en este lugar
estático de la noche
donde daré vida a los signos
favorables de tu ascenso
oculto en los espejos negros
sabrás que irás solo
acompañado de augurios
y de rumores delicados
porque tu lugar es el eco
y al despedirnos
me nombrarás
para que sea imagen
y las palabras del amor
sin tiempo
amor te deja partir
ASÍ HABLÓ
EURÍDICE
You hold love in your hand, a red seed
you had forgotten you were holding.
MARGARET ATWOOD
Estoy de vuelta del olvido
mi amor fue fiel en el destierro.
Estoy en tu memoria nítida
porque fui tu otro yo verdadero.
Cuando me perdiste en el infierno
después de tanto andar sin rumbo
en el umbral de la desmemoria
me acogí a mi sombra desolada.
Guardé las señales del tiempo
aprendí el placer de ser intacta
vestí las sutiles ropas del silencio
y las sandalias aladas de la muerte.
Por fin he vuelto con otra forma.
Mariposa negra en jubiloso duelo
innumerable semilla al viento.
Y como sé que estás dilacerado
te traigo estas granadas milagrosas
de mi constante jardín del fuego.
AL PARTIR
como niebla
deslizas el rumor
de tus breves alas
amante
te contemplo
al volcarte
en lo que escapa
como en el ser
inasible de los sueños
te deshaces
hasta volverte
un punto esfumado
que viaja
en las palabras
si el vuelo
fuera designio
la línea de fuga
trazaría el perfil
melancólico de tu falta
sin haber llegado
te veo de ti partir
infinito al abrir las alas
DESCENSO
Ando en
busca del Amado
que tiene
todas las formas
duración
inmortal y eco.
Pero la
muerte nos antecede.
Allí en
su fondo está él
perdido
amor sin cuerpo.
Cada noche
lo invoco
y trasmutado
en sombra
entre aromas
resplandece.
Cálida ola
del viento
túrgida
agua que en mí
abre cauces
inéditos.
Hasta él
desciendo
y en la
vida lo acojo
para el
amor sin muerte.
EN EL CAMINO
El verdadero camino es la caída
MARGUERITE
PORETE
La partida es regreso.
Desnuda desciendo.
Me deshago de las formas
que me fijaron ausente.
Las memorias verdaderas
recupero en el olvido.
Y la sombra va conmigo.
Al viaje iniciático
me entrego.
Arrojo uno a uno
mis pedazos.
Hacia la otra margen
anonadada camino.
Ya mi alma vive
dentro del amor
libre de mí.
Nada en este mundo
me separa
de lo que amo.
La caída es ascenso.
PARA
GWENDOLYN
For years I have wanted to write a poem called
The Garden of the Thieves.
GWENDOLYN MACEWEN
Descendí hasta lo más profundo
en las tibias aguas de la sombra.
Era un jardín de ojos florecido
con sinuosos pinos oscilantes
y llamas de corales que ardían.
En el umbral estaba el Ladrón
que invocaba al destino
y entre sus manos mi cabeza
de ilusa medusa decapitada
sangrando en un plato.
Esperanzado el cuerpo
que sin entender sonreía
buscaba a tientas su cabeza
y al encontrarla con gozo
se la encajó de nuevo.
En el espejo de fluidas aguas
me vi libre mujer errante
que se corona a sí misma.
Y ahora finalmente entera
te cuento esta historia feliz
de la cabeza recobrada
en el jardín prodigioso.
MITOLÓGICAS
Las Ménades
del goce
posesivo
privadas
con furia
lo despedazan
y hunden
su lírica cabeza
en el río
helado de la muerte.
Isis apasionada
lo busca
unge sus
pedazos devota
en oro crea
su falo delicioso
con mucha
fe bate las alas
y amante
lo resucita.
En toda
historia
entre la
furia y la fe
el amor
es forma.
ISIS ROSA
Es dos alas infinitas
que se despliegan suntuosas
engarzadas en un tallo.
No es más que esas dos alas.
Su rostro a cada vuelta renace.
Sabe que eros y tanatos
son de lo mismo fases.
Madre de fallecidos y vivos
va juntando los pedazos
y cuando agita sus alas
el cuerpo desmembrado
en el amor rehace.
Después de la ilusoria vida
habita la casa real
de la vida verdadera.
PREGUNTA
Todavía me pregunto
si cuando ellas
enloquecidas
lo dilaceraron
y a las aguas
de la desmemoria
sin lira
sin voz
sin sexo
lo arrojaron
¿fue venganza o justicia
por en el infierno
haberla dejado?
OTRO INFIERNO
Pero siempre
solo; sin familia;
hasta esto, ¿qué lengua hablaba?
ARTHUR RIMBAUD
Estuve una temporada
en el infierno no de Dante
que era fabuloso imaginario.
Mi infierno tenía la forma
del lugar común del yo.
Descendí a los círculos
apenas tristes laberintos
sin salida semejantes al caos.
Erré en lo profundo
preguntando absurdos
procurando claves.
Aullé de esclarecido miedo.
Y de tanto vagar y sufrir y gritar
quedé sanamente enferma y muda
que no del todo y al fin muerta.
De vuelta al mundo de los vivos
recupero la tenue luz del anochecer
la bondad del café en la mañana
el aire sutil de la alta noche
las buenas conversas a solas conmigo.
Y dejo correr las horas vagas
mirando el ir y venir de las nubes
que impasibles van hacia la nada.
Ausculto mi cuerpo y escucho
el acompasado ritmo del día
con sus esclarecidos meandros.
Ahora sé que cada paso es camino.
Toco la vida y todo alcanza
sentidos inagotables.
Estoy en paz.
Y sueño.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
Os poemas
“Despedida de Eurídice” e “Al partir” pertencem a Las palabras viajeras. “En el camino”, “Otro infierno”, “Isis rosa”
estão em Visiones de mujer con alas. Fazem parte do livro em processo Andante: “Así habló Eurídice”, “Descenso”,
“Pregunta”, “Mitológicas” e “Para Gwendolyn”.
1. Dentre as tantas versões no mundo
clássico, e posteriormente, a continuação transcrevo o resumo do mito realizado
por Elaine Cristina Prado dos Santos no seu artigo sobre catábase (2008) a partir
da versão de Vírgilio no canto IV das Geórgicas:
“Orfeu, desesperado pela morte da esposa Eurídice, desceu aos Infernos para trazê-la
de volta à vida. A dor de Orfeu foi tanta que resolveu arrancar a esposa à morte,
já que, sem ela, não conseguiria viver. Por meio do som inebriante de sua lira e
de sua divina voz, Orfeu encantou o mundo ctônico, comovendo Caronte, que largou
o barco e seguiu o cantor. Comovidos com a voz de Orfeu e com tamanha prova de amor,
Plutão e Prosérpina – os deuses infernais – concordaram em devolver-lhe a esposa,
entretanto uma condição foi imposta: ele iria à frente e ela lhe acompanharia os
passos, mas Orfeu não poderia olhar para trás. Os dois amantes subiam em direção
à luz, na dura estrada que conduzia da morte à vida, mas ele não resistiu, olhou
para trás e viu Eurídice sumir para sempre em uma sombra. Orfeu tentou regressar,
mas não foi lhe dada uma segunda chance. Inconsolável e fiel a seu amor, Orfeu passou
a repelir todas as mulheres da Trácia, que se sentiram desprezadas, mataram-no e
esquartejaram-no e lançaram-lhe os restos e a cabeça no rio Hebro. Ao rolar a cabeça
no rio, sua boca proferiu o nome de Eurídice.”
2.
Ver Eurídice segundo Atwood? Interfaces Brasil/Canadá, v. 4, no. 1, 2004.
3. Interpretaciones
de Eurídice. Poesía insular de signo Infinito.
Una lectura de poetas cubanas da diáspora. Madrid: Betania, 2007, p. 61-88. O livro
é resultado de um pós-doutorado orientado por Zilá Bernd na Universidade Federal
de Rio Grande do Sul; também integra o trabalho investigativo realizado na Université
du Québec à Montréal, em diálogo com Simon Harel.
4. O conceito
de autopoética, segundo María Clara Lucifora (2015) supõe uma postulação do programa
de escritura, em textos reflexivos ou ficcionais. Dota o escritor de uma identidade
ao criar um espaço privilegiado para a construção de sua figura autoral. Na visão
de Laura Scarano (2017), a autopoética (mais que o termo muito geral de poética)
oferece valiosas pautas epistemológicas e metodológicas para o entendimento da função-autor.
Mais que justificativa, implica a proclamação de pressupostos estéticos, espécie
de projeto autoral explícito que focaliza o “si mesmo” nas diversas operações autorreferenciais.
5. Vale lembrar que catábase, ação de descer,
descida ao mundo subterrâneo, mundo inferior, mundo dos mortos, geralmente inferno,
é um topos da literatura antiga, presente na tradição mesopotâmica, egípcia e greco-latina.
Anábase, subida, ascensão á luz, foi consagrado pela obra de Xenofonte Retirada dos Dez Mil. Ambos os motivos têm
longa vida literária e artística. A catábase, experiência de morte, vincula-se á anábase.
Integram gradativamente anagnórise, autoconhecimento, transformação.
6. Ver:
BOLAÑOS, Aimée G.; HAZELTON, Hugh. Gwendolyn MacEwen: versiones de su poesía. Interfaces Brasil/Canadá, no. 3, v.17, 2017.
7. “Segundo a literatura clássica,
em Homero, o Hades é um imenso abismo, onde as almas são lançadas para todo o sempre;
em Hesíodo, já existia uma mudança escatológica no destino de algumas almas privilegiadas;
no entanto, o Orfismo fixou normas topográficas definidas e reestruturou o destino
das almas. Oficialmente, o Hades foi dividido em três regiões distintas: a parte
mais profunda, o Tártaro; a medial, o Érebo e a mais alta e nobre, os Campos Elísios.
Enquanto os dois primeiros eram destinados aos tormentos impostos às almas, os Campos
Elísios seriam para aqueles que tinham passado pelos horrores dos dois outros compartimentos
e iriam retornar à vida.” (DOS SANTOS, 2008)
8. Três poemas titulados “Eurydice”,
“Soneto a Eurydíce”, “A Praia Lisa","Orpheu", "Orpheu
e Eurydice", "Eurydice em Roma” e "Elegia". Ver: O tema de Orfeu
em Musa de Sophia de Mello Breyner Andesen
(FERREIRA, 1998)
AIMÉE G. BOLAÑOS (Cuba, 1943). Leitora e escriba de ficção. Professora de literatura na pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Rio Grande, Brasil. Professora adjunta na University of Ottawa, Canadá. Doutora em Filosofia. Pós-doutora em Literatura Comparada. Autora de numerosos livros e artigos em revistas latino-americanas, canadenses, europeias. Conferencista em Universidades de México, Argentina, Colômbia, Canadá, Cuba, Espanha, França, Portugal, Alemanha, Ucrania. Livros de ensaios recentes: Poesía insular de signo Infinito. Una lectura de poetas cubanas de la diáspora e Oficio de lectora. Como coautora Vozes negras da literatura das Américas, Ficções da história, Identidades em diálogo. Tem participado nos livros: Historia de la literatura cubana, Literatura e emigrantes, Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas; Imaginários Coletivos e Mobilidades (Trans)Culturais; Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos, Literatura do íntimo; Diálogos com Paul Ricoeur: ensaios de hermenêutica literária, Huellas francesas en Cienfuegos, Deslocamentos Culturais e suas formas de representação, Revisões do cânone. Obra de ficcão: El Libro de Maat (2002); Las palabras viajeras (2010), Escribas (2013), Visiones de mujer con alas (2016), Alada viajera (2020), Erótica Medusa (2021).
SÉRVULO ESMERALDO (Brasil, 1929-2017). Escultor, grabador y dibujante, Sérvulo Esmeraldo se inició profesionalmente en Fortaleza, a finales de los años 1940, en los talleres libres de SCAP – Sociedade Cearense de Artes Plásticas. Trasladado a São Paulo en 1951 para estudiar arquitectura, se sintió atraído por la efervescencia de la 1ª Bienal y su revolución artístico-cultural. Su exposición realizada en el MAM (SP), en 1957, le acreditó para un año de estudios en París, becado por el gobierno francés. Una temporada que se saldó con una estancia de más de veinte años. Y en el desarrollo de una obra plural y con muchas vertientes. En París, asistió a los talleres de Litografía de la École Nationale des Beaux-Arts y de Grabado en metal de Johnny Friedlaender, dedicándose en gran medida a este último, habiendo realizado incluso grabados a partir de gouaches y pinturas para Serge Poliakoff. Poseedor de una considerable obra grabada, editada y distribuida por importantes editoriales europeas, a mediados de los años 1960, Esmeraldo estaba decidido a no dedicarse exclusivamente al grabado. Estaba interesado en poner en práctica sus proyectos cinéticos. De la misma época datan las esculturas de plexiglás en blanco y negro, cuyo interés es la topología del volumen. Inició su regreso a Brasil en 1977, trabajando en proyectos de arte público que incluían esculturas monumentales en el paisaje urbano de Fortaleza, ciudad donde estableció su estudio en 1979. Fue creador y curador de la I y II Exposición Internacional de Arte Efímero. Esculturas (Fortaleza, 1986 y 1991). Con importantes exposiciones realizadas y participación en salones, bienales y otras exposiciones colectivas en Europa y América, su obra está representada en los principales museos del país y en colecciones públicas y privadas de Brasil y del exterior. Artista invitado en esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 249 | março de 2024
Artista convidado: Sérvulo Esmeraldo (Brasil, 1929-2017)
editora | ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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