Nos versos de “Não sei dançar”, onde
Bandeira baila sobre a miscigenação das raças, numa crítica bem-humorada à prazerosa
bagunça brasileira e a seu despropósito, filtrando com muito acerto a nossa cultura
através de uma noite de carnaval – ele cita Marie Bashkirtseff ao lado de Henri-Frédéric
Amiel. Ambos ficam ali estampados como a vertente oposta ao modo inconsequente de
ser brasileiro. Way of life que, aliás, ele simula estar agora incorporando, uma
vez que nessa peça Bandeira acaba por rejeitar, em nome da tal “alegria” – a “tristeza”,
e, pelos vistos, a Europa. Desta, Bandeira regressara após o tratamento da tuberculose
que quase o vitimara – doença que, por sinal, fora a causa da morte dessa mesma
Marie que comparece no seu poema.
Assim, nesse carnaval que presencia,
mas ao qual, contraditoriamente, não consegue se integrar – uma vez que, como reza
o título do poema, Bandeira “não sabe dançar” – ele se dá conta de que ninguém que
ali esteja se lembra, por exemplo, da política, dos “oito mil quilômetros de costa”,
da “malária”, da “moléstia de Chagas”, e muito menos dos “ancilóstomos”. No entanto,
pendendo entre uma e outra cultura, o poeta supõe que gostaria de adotar para si
essa irresponsável “alegria” que campeia no salão do baile observado. E eu o cito:
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile
de terça-feira gorda.
A “alegria” de Bandeira fica de certa
maneira aproximada, neste contexto, à droga, à alienação, à frivolidade, à superficialidade,
ao gozo irresponsável da vida, bem ao contrário da “tristeza” que, por sua vez,
parece ser o lema dos dois autores citados.
Tanto Amiel quanto Bashkirtseff se primam
pela escritura de seus hoje célebres diários, o que semeia no poema a insinuação
de uma outra zona, a do recolhimento, a da psicologia, a de uma certa profundidade
de inquirição pessoal, a de um vasculhamento vertical da alma, a de uma preferência
pela intimidade – tudo em contraste com a balbúrdia, o ajuntamento alheado e o destrambelhamento
daquilo que Bandeira presencia: o nosso emérito carnaval…
No entanto, para exercer a “alegria”
é preciso tomar a iniciativa orientada pelos versos que, aliás, é esta:
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser
triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma
pilhéria…
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff!
Graças à perspectiva masculina de um
poeta cosmopolita como Manuel Bandeira, ficamos a nos inquirir sobre a possível
apreciação da obra de Marie, ali rapidamente pincelada. Trata-se, desse ponto de
vista, de uma escrita “triste”, ou seja, responsável e grave, intimista, que esquadrinha
uma identidade e suas razões de existência – bem ao contrário do imprudente e público
transbordo carnavalesco. O Diário de Marie (1860-1884) nos endereça à área
real e dolorosa da vida, e não à fantasia prazenteira, impertinente e fortuita que
esse tipo de folia gera.
Também a poetisa portuguesa Judith Teixeira (1880-1959),
contemporânea de Bandeira, de Florbela e de Ada Negri, cita Marie Bashkirtseff,
já agora em defesa dos baixos ataques recebidos contra si e contra a sua obra. Num
pronunciamento intitulado De Mim. Conferência em que se explicam as minhas razões
sobre a Vida, sobre a Estética e sobre a Moral, [1] ocorrido em 1926
(portanto, um ano após a produção do poeta brasileiro), Judith aproxima as palavras
da jovem ucraniana às de outras personagens que venera.
Trata-se, para o caso, de uma declaração
em desagravo às acusações e detratações sofridas por ela durante e após o escândalo
de 1923 – o conhecido e execrável episódio da “Literatura de Sodoma”. E já se sabe
como tais difamações estão ligadas à situação política de então! Acusada de comportamento
pernicioso e de atitudes luxuriosas, vítima de atrozes ataques exercidos por seus
opositores em forma de artigos desrespeitosos e de caricaturas perversas, Judith
arvora para si, contra estes, a alma do artista moderno, o cérebro inquieto e combativo
que confere ao mundo a máxima expressão da verdade. E confessa ali que não pretende
pedir desculpas à sociedade burguesa pelo que tem produzido, mas ao contrário. Que,
numa “teima irreverente e sem remédio”, ela há de “continuar a dizer (…) sinceramente,
honestamente” as suas “concepções de Arte no maior tom de verdade!” E é em tais
convicções que ela insere as ponderações de Marie.
De maneira que, engrossando ao mesmo
tempo as palavras de Pierre Louys (“compreender as exigências da carne é compreender
as exigências do espírito”), e assumindo, com a sua contemporânea Marie, que “o
luxo físico é necessário ao luxo moral” – Judith atesta que as coisas valem segundo
o mundo de beleza que são capazes de suscitar ao seu redor. Assim, não é justo,
num século que, a par do drama terrível da guerra, da figura trágica de Lenine;
num século que herdou também o espírito de Oscar Wilde, os versos de Renée Vivien;
num século que
viu despir-se Isadora Duncan sob o céu
estrelado de Paris, mostrando a pétala branca e imaculada do seu corpo de Artista
aos olhos extáticos da Multidão!
– não é justo, portanto, que ela, Judith,
tenha de ser obrigada a calar-se.
E, num grito por liberdade incondicional,
ancorado nas palavras de tais artistas, Judith clama que ninguém mais vai “encarcerar
a Arte em ritmos acadêmicos, em conceitos estreitos e velhos”. Que os que contestam
seus versos o fazem apenas porque estão presos, até a morte, dentro de uma vida
que lhes é “estrangeira”, e que são esses, ao contrário dela e dos seus pares, os
que buscam estar bem com Deus apenas por medo do Inferno. De modo que, na contramão
desses tantos hipócritas, ela, seguindo o ensinamento dos seus, sublinha que “Ninguém
[lhe] faz a vida!”,
Sou eu que componho e distribuo aos meus
nervos os motivos das suas vibrações.”
Não fica difícil concluir, pois, que
a figura de Marie Bashkirtseff tem, para Judith Teixeira (para esta que é considerada
a única poetisa modernista portuguesa, a primeira mulher a inaugurar, na Literatura
Portuguesa, uma poética feminina de cariz homossexual) – uma referência emblemática.
Seja esta, a de libertação feminina, de direito de voz, de ousadia, de pertinácia;
seja esta, a de direito de expressão das reflexões mais privadas, das contradições
próprias e dos conflitos internos; seja esta, a de um espírito moderno.
Marie paira, no manifesto de Judith,
ao lado de Oscar Wilde, de Renée Vivien, de Isadora Duncan, de Lenine e de Valentine
de Saint-Point – esta, a excêntrica autora do Manifeste de la Femme Futuriste
(1909) e do Manifeste Futuriste de la Luxure (1910).
Para Florbela Espanca, por exemplo, o
Diário de Marie Bashkirtseff torna-se, em 1930, uma espécie de contraponto
ao seu próprio Diário do último ano. [2] E o comentário da
sua lavra, registrado no dia 24 de janeiro de 1930, exibe ao leitor, ao mesmo tempo,
a semelhança e a diferença entre as duas obras. [3] O fato de ela considerá-lo
“profundamente triste” e “tragicamente humano” parece se apresentar como característica
constitutiva de ambos os escritos, confirmando, por um lado, o parecer de Bandeira
quanto ao livro de Marie. No entanto, Florbela problematiza uma certa concepção,
desigualmente assumida por cada um deles.
Segundo crê esta, Marie tem “medo da
morte”, o que a torna apavorada, espantada, indignada, e Florbela, para comprovar
o que diz, vai citando trechos da edição francesa, atestando pouco a pouco o que
aventa a respeito de Marie. Assim, afirma a Poetisa alentejana que a escritora ucraniana
morreu “com pouco mais de vinte anos gritando até o fim que não queria morrer” –
justo ela, que tudo almejava: a glória, o poder, a riqueza, a felicidade. E é então
que Florbela se pergunta:
Como não compreendeu ela [Marie] que
o único remate possível à cúpula do seu maravilhoso palácio de quimeras, de ambição,
de amor, de glória, poderia apenas ser realizado por essas linhas serenas, puríssimas,
indecifráveis, que só a morte sabe esculpir?
Deveras. É aqui que o diferencial entre
ambas se torna gritante. O Diário de Florbela se encerra com a realização
concreta do seu projetado suicídio e com a demonstração do seu desprezo pela vida;
o Diário de Marie se fecha com a inevitabilidade da sua morte por tuberculose,
desde há tempos consabida e aguardada, agonia que nutre as próprias letras da sua
escrita atormentada por essa funesta espera e pelas diferentes e vãs tentativas
de evitá-la. Ao contrário de Marie, Florbela há, por antecipação, de se ufanar do
seu fim, da sua coragem em coroar sua existência com a desistência desta, fato que
a Poetisa pateticamente admira na atitude do irmão Apeles, fato que ela exalta direta
ou indiretamente na sua obra. E a maneira como trata essa questão agora, aqui neste
excerto do seu Diário, garante a persistência de tal propensão como sendo
algo de raiz. De modo que ela especula, indagando-se através de Marie, como foi
possível que a jovem não tivesse compreendido o
alto e supremo símbolo das mãos que se
cruzam, vazias dessa maré de sonhos, que a vida, em amargo fluxo e refluxo, leva
e traz constantemente.
Ora, o único traço que Florbela deplora
em Marie é a sua antecessora não ter procedido tal como ela pretende fazer – não
ter respondido à vida com esse “nada” em eslavo, [4] com o necessário
e imprescindível desdém pela vida que, em Florbela, é fundamento e lema.
Reparo que as metáforas tomadas para
nomear a sua interlocutora são bem aquelas que ela mesma profere para si – a de
“princesa” e de “exilada” – meios de se endereçar narcisicamente a seu ego, auto
chamamentos constantes em toda a sua obra poética, que desembocam nesse “nada”,
nesse “nitchevo” que ela almejaria ouvir na voz de Marie, e que nela, Florbela,
não somente encontram eco, mas antes pronúncia forte e definitiva.
Uma, no dia 15 de novembro, quando o
seu Diário registra – “Não, não e não!”; e outra no dia 2 de dezembro, sua
última visita ao caderno, quando anota:
E não haver gestos novos nem palavras
novas!
Quero crer, de resto, que a leitura do
Diário de Marie [5] acompanha, deveras, a escrita
do Diário de Florbela, porque disso há fortes indícios. Por exemplo, em Marie,
lê-se:
Para que mentir e fazer pose? É verdade
que desejo, ou, pelo menos espero, ficar nesta terra de qualquer maneira. (…) Se
este livro não fosse a exata, a absoluta, a estrita verdade, não teria razão de
ser. Nele não somente digo sempre o que penso, mas jamais me passou pela cabeça
a ideia de dissimular o que talvez me parecesse ridículo ou me fosse desfavorável.
Não de todo diferente, o Diário
de Florbela começa a ser redigido no dia 11 de janeiro de 1930, anunciando-se semelhantemente:
Para mim? Para ti? Para ninguém. Quero
atirar para aqui, negligentemente, sem pretensões de estilo, sem análises filosóficas,
o que os ouvidos dos outros não recolhem: reflexões, impressões, ideias, maneiras
de ver, de sentir – todo o espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez profundo.
(..)
“Atténdre sans espérer” poderia ser a
minha divisa, a divisa do meu tédio que ainda se dá ao prazer de fazer frases. Não
tenho nenhum intuito especial ao escrever estas linhas (…). Quando eu morrer, é
possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber
dizer (…) e realize o que eu não pude: conhecer-me.”
E não custa especular que, no dia 29
de novembro, muito perto do findar desse derradeiro ano, encontramos em Florbela
uma citação em francês que pode, quero crer, ser localizada em Marie:
La tendresse
humaine ne peut s´exprimer que par un seul geste: celui d´ouvrir et de refermer
les bras.
Também é nesse último ano que Florbela,
por intermédio de Guido Battelli, se aproxima da escrita de Ada Negri, declarando
já tê-la conhecido graças às traduções francesas e ao estudo de Édouard Shuré. [6]
Esta obra referida pela Poetisa portuguesa,
publicada em Paris em 1908, tem por título algo que muito condiz com as nossas visadas
mulheres. Chama-se Précurseurs et Révoltés, e tem como alvo, no ensaio dedicado
a Ada Negri, a sua antologia de 1892 – Fatalità.
Não por acaso, é nesta antologia de Negri,
visada por Shuré e lida por Florbela, que se encontra o poema da lavra da Italiana
dedicado “A Marie Bashkirtseff”. E já agora é preciso que compreendamos por que
razão essa jovem tem comparecido com tanta constância nos textos das poetisas que
aqui tenho tratado.
O Diário de Marie Bashkietseff
apresenta diferentes vertentes: ele dá conta, de um lado, das ambições e limitações
femininas em meio aos salões de uma certa aristocracia europeia de época, realizando
um perfeito painel dessa sociedade no final do século XIX, com todo o seu requinte
de hábitos, comportamentos e preferências. De outro lado, segue-se ali também a
formação de uma jovem, via valores matriarcais, educada por um núcleo de mulheres
(mãe, tia, prima), num ambiente em que a figura masculina resta eclipsada (a mãe
de Marie cedo abandonara o esposo e já partira em grandes viagens com a filha pela
Europa Ocidental). De maneira que, nesse estrato, o homem parece servir de paradigma
a ser ultrapassado ou a ser enfrentado para a obtenção de um lugar de destaque num
mundo que (se espera) honre a inteligência feminina.
Uma outra dimensão do Diário diz
respeito à ideia de Arte, de formação artística. Seja da música instrumental (Marie
tocava harpa e piano), do canto lírico (Marie possuía excelente voz e, até que a
perdesse, seguiu a carreira operística), da dança, da escultura e, sobretudo, da
pintura, artes que praticou, sobretudo a pintura, através da qual tornou-se conhecida
e premiada – muito embora, mercê da sua ousadia, tenha também sido expulsa da École
de Beaux Arts de Paris.
Uma grande parte da obra pictórica de
Marie (que frequentou a Académie Julian em Paris) desaparece durante a Segunda Guerra,
sequestrada (ou destruída) pelos nazistas. Os exemplares salvos fazem parte, hoje
em dia, de coleções dos museus franceses, notadamente do Musée d’Orsay.
Seu interesse pelo universo marginal
das figuras citadinas (ao contrário das campesinas, como então era moda), se concentra
num especial quadro intitulado “O encontro”, em que um grupo de meninos dos arredores
de Paris se acha entretido na urdidura de algum insuspeitável plano. Quero crer,
no entanto, que a vertente mais valiosa desta obra, aquela que maior respeito impõe
às nossas interlocutoras, deva emanar da escrita paralela de um verdadeiro
manual de construção do feminino, que, por vezes mostrando uma face excêntrica,
vaidosa e caprichosa, passa pela busca de uma prática de mulher sincera e autêntica,
pelas crises de narcisismo, pela histeria, pelas relações com o mundo masculino,
pelo teatro social, pelo artifício das poses, pelas relações com o divino, pela
amizade, pela enfermidade, pela morte, enfim, pela conquista da independência e
da individualidade feminina.
A partir de tal perspectiva, chama a
atenção do leitor do Diário, a pertinácia, a tenacidade, o esforço, a vontade
férrea dessa adolescente talentosa e superdotada, capaz de brilhar nos salões por
seu próprio valor pessoal, mercê da sólida formação cultural e linguística adquirida
nos programas de estudos a que se impunha, na determinação de saber mais, sempre
mais que o comum das mulheres do seu tempo.
Nascida em 1860 na Ucrânia, Marie Konstantinovna
Bashkirtseff é de nacionalidade russa. Por meio do pseudônimo Pauline Orell, ela
cooperou na revista La Citoyenne, dirigida por Hubertine Auclert (1848-1914),
feminista socialista e sufragista anticlerical. A militância de Marie a tornou membro
da sociedade “Le Droit des Femmes”, da “Societé Française des Femmes” e do “Cercle
des Artists Russes”, tendo o seu artigo sobre as mulheres artistas causado grande
impacto na altura.
O Diário, iniciado aos 12 anos
de idade, foi recortado e preparado por ela mesma para a edição de 1887, no entanto
póstuma, uma vez que Marie falece em Paris aos 24 anos de idade, em 1884, de uma
tuberculose que a afetava há tempos. Além dessa obra que, originariamente, compreende
16 volumes, Marie nos legou a galeria de quadros a que me referi – e é sobre um
destes que Ada Negri escreverá o poema que lhe consagrou.
Num campo tão fecundo quanto o Diário
de Marie, colho, meio ao léu, alguns excertos a respeito do seu pensamento progressista
a propósito do feminino, para que o leitor tenha uma ideia da mensagem de liberdade,
de euforia e de independência, que uma mulher tão jovem de meados do século XIX
pôde passar para as outras escritoras que a leriam posteriormente.
Reclamando que a sua beleza é um óbice
ao seu desempenho intelectual, em 2 de Janeiro de 1879, Marie se manifesta desse
modo no seu Diário: [7]
Que inferno! é então que me enfureço
por ser mulher. – Vou arranjar vestidos burgueses e uma cabeleira que me enfeiem
tanto, ao ponto de me tornar livre, como um homem. É a liberdade que me faz falta
e sem ela não se pode chegar a ser alguma coisa.
Nessa mesma quarta-feira, ela se encontra
deveras indignada com a sua deplorável existência feminina, chegando mesmo a aproximar
a “feiura” da “liberdade”, como armas para a obtenção da tão almejada igualdade
de condições entre os gêneros. E faz críticas à educação que destinam às mulheres:
As mulheres nunca passarão de mulheres!
E, no entanto… Se fossem educadas do mesmo modo que o homem, a desigualdade que
lastimo será anulada, e só restaria a desigualdade inerente à natureza. Apesar de
tudo, é preciso gritar, tornar-se ridícula (deixo este cuidado a outras) para obter
dentro de cem anos a almejada liberdade.
Entenda-se por “desvantagens” o fato
de ela ser inteligente, rica, instruída, bela e com uma reputação a zelar. Ela que,
em 7 de Agosto de 1883, anotará: “jamais poderei amar outra cousa senão a arte.”
Lunetas e “pince-nez” quando se trata
de mulheres, são símbolos de ideias avançadas. Deporta-se, envenena-se, exila-se,
por uma só palavra. Invadem domicílio, à noite, e, se não nos acham muito perigosos,
exilam-nos para Viatka ou Perm, e se nos acham, então é a Sibéria.
Por todos esses apontamentos tão vanguardistas
para o seu tempo, gostaria de me deter sobre o poema que Ada Negri lhe consagra,
procurando puxar a linhagem que extrai dessa ucraniana tão precoce, crítica e infeliz.
Ada Negri (1870-1945) já completara 24 anos e publicado
o referido Fatalità (1892) quando nasce a nossa Poetisa Espanca. O livro
de Negri, destacado então com o “Prêmio Milli”, a tornaria simultaneamente famosa
e maldita, uma vez que também a lançaria na lista negra da Igreja Católica Apostólica
Romana – no Index Librorum Prohibitorum.
Florbela roçou entrar para esse índex,
uma vez que também a sua segunda publicação, o Livro de “Sóror Saudade” (1923),
foi desancado pelo jornal católico A Época, e a ela foi exigido que lavasse,
“com carvão ardente”, os seus lábios manchados e malditos.
Suponho que o entrelaçamento literário
da Portuguesa à italiana se deva ao Fatalità, que Florbela sublinha, em carta
de 27 de Junho de 1930 a Guido Battelli, haver lido. Nessa obra, o poema que Ada
dedicou “A Marie Bashkirtseff” talvez seja, creio, o elo dourado que mais
intimamente a teria apegado à escritora italiana. Porque ambas parecem se considerar
herdeiras
dessa admirável ucraniana demasiado inteligente, lúcida e culta.
Ada reitera, no poema a ela endereçado,
que guarda do espírito de Marie “a vívida centelha”, muito embora esteja, como a
sua antecessora, destinada à morte. Mas, diante da herança feminina interminável
deixada pela ucraniana, a Morte nada pode: através de cada uma das mulheres, o gênio
impetuoso de Marie “penetra, arde e resplandece” para sempre.
Florbela, como aventei, precisa de Marie
para encontrar um ponto de referência que sublinhe a sua desenvoltura perante a
morte, a sua coragem e determinação. Marie parece, pois, ter amalgamado, de alguma
maneira, o imaginário feminino das duas Poetisas. E não só o de ambas, mas também
o de Judith Teixeira, como afiancei.
Há, entre Ada e Florbela, alguns pontos
de convergência e divergência, certos liames que podem ser esboçados aqui, para
além do fato de serem elas mulheres escritoras que tratam dessa específica condição
em suas produções, as duas, por isso mesmo, pioneiras.
A fim de conhecermos o poema de Ada Negri
dedicado à Marie, peça que foi, portanto, lida por Florbela na tradução de Schuré,
precisamos, antes, percorrer uma série de contiguidades entre a Poetisa italiana
e a Portuguesa, de maneira a compreender melhor porque ambas tomam a Ucraniana como
uma ligadura que ajuda a construir a identidade feminina.
São ambas oriundas de um ambiente provinciano,
emergindo de pequenas localidades onde nasceram ou foram criadas. Ada Negri é tida
como a primeira escritora italiana a surgir do proletariado, reconhecida pelos socialistas
italianos como a “filha do povo”, a “Donzela Vermelha”, graças ao empenho da sua
poesia contra as injustiças sociais.
Na poética de Florbela tal traço não
é primordial, como sabemos, o que, no entanto, ocorre na sua prosa, nos seus contos
– não exatamente no livro dedicado a Apeles, As Máscaras do Destino (póstumo,
1931), mas em O Dominó Preto (também póstumo, publicado em 1982). Ali, ela
toma o partido dos desafortunados, dos membros das classes menos favorecidas, também
dos campaniços alentejanos, podendo ser cogitada, por isso, como uma espécie de
neo-realista avant la lettre.
Ada nasce no interior da Lombardia, em
Lodi; Florbela no interior do Alentejo, em Vila Viçosa – e ambas afinarão o seu
estro com a sua terra natal, tomando-a ora como referência substancial do modo próprio
de olhar e julgar o mundo, ora como raiz natural, fonte telúrica e respectivo cenário
ficcional. Com a diferença de que a Lodi do tempo de Ada era então uma cidade de
agricultores, enquanto Vila Viçosa, residência da corte ducal, sempre foi, desde
o século XIII, uma povoação a viver em torno da Coroa Portuguesa que, servindo-a,
acabou por absorver o tipo de trato dessa nobreza, com seus gostos e educação.
Talvez se preste para o reforço de tais
diferenças, o fato de que, enquanto Giuseppe, o pai de Ada, parece (como consta)
ter perdido tudo o que tinha nas jogatinas e morrido jovem; o pai de Florbela, João
Maria Espanca, culto e republicano, tenha introduzido na região o vitascópio de
Edison (espécie de aparelho precursor do cinema), cultivado a fotografia e vivido
um tanto como pintor, bricabracabista e proprietário da empresa “Photo Calypolense”
(já então em Évora, cidade vizinha, onde Florbela completará seus primeiros estudos).
As classes sociais de onde emergem as
escritoras têm, como se vê, diferentes estratos. No entanto, Ada Negri conviveu
com famílias da nobreza italiana, pois que a avó, que a criou, só pôde mantê-la
graças ao trabalho de funcionária da casa de uma dessas linhagens abastadas, ambiente
que ela também frequentou e que (a crer nos seus escritos) acabou marcando ainda
mais (e desfavoravelmente) a diferença de origem.
Ambas ficaram cedo órfãs: Ada, do seu
pai, e Florbela, de sua verdadeira mãe – que não a criou e que abandonou prematuramente
a sua terra natal. Florbela chegará mesmo a deplorar em seus poemas a “má hora”
em que foi nascida, a Mágoa que bebeu no leite materno e, sobretudo, o ter sido
“o fruto amargo” das entranhas da Mãe. Também Ada teve um único irmão, Annibale,
do qual foi separada após a morte do pai, quando levado para ser educado por outro
ramo familiar. Apeles, que se torna Tenente da Marinha, vai se suicidar em 1927,
exacerbando ainda mais o sofrimento dilacerante em que mergulhará Florbela nos derradeiros
anos da sua existência. Além de todos os seus desencontros amorosos, ela também
passara por diversos abortos involuntários e nunca teve filhos.
Ada, que teve duas filhas, viveu grande
parte da vida em solidão. Foi abandonada por Ettore Patrizi, um ativista socialista
que emigra para a Califórnia; casou-se depois com um rico industrial (Giovanni Garlanda),
perde prematuramente a caçula Vittoria, o jovem enteado, e vai amargar, posteriormente,
a distância da única filha. Por fim, a sua grande paixão (um construtor, já no tempo
em que vive na Suíça) morre inopinadamente durante a epidemia da gripe espanhola.
São três os casamentos de Florbela e
relembro: o primeiro com o professor Alberto Moutinho (aos 19 anos, em 1913); o
segundo com o alferes da Guarda Nacional Republicana, António Marques Guimarães
(aos 27 anos, em 1921); o terceiro com o médico Mário Lage (aos 31 anos, em 1925)
– e parece ter sido muito desastrosa a sua vida sentimental.
Comenta-se, da mesma forma, a triste
existência de Ada Negri, que logo de início foi desprezada pelos intelectuais contemporâneos,
e, daí por diante, aclamada, na justa medida em que sua obra crescia em sucesso
e fama. Dentre estes, criticam-na Benedetto Croce e Pirandello, o que talvez se
explique, à luz de hoje, como reação à valorização que Mussolini se empenhou em
oferecer à obra dela. Ottorino Respighi, por seu turno, musicou vários de seus versos.
Aliás, além de tê-la indicado ao Prêmio
Nobel de 1926 (para o qual não foi eleita), o ditador italiano também parece ter
exercido sua influência para a eleição de Ada ao Prêmio Mussolini (1930), ao cobiçado
Prêmio Firenze (1936), à Medalha de Ouro do Ministério da Educação (1938). Ela foi
também sugerida, por ele, à Academia Real da Itália (1940), onde ocupou o lugar
de “membro de pleno direito” (até então apenas privilégio de homens). No entanto,
essa diligência política (que se deveu à simpatia de Mussolini pelo dito teor da
poética e do jornalismo de Ada, e à amizade dela pela sua amante Margheritta Sarfatti,
jornalista como Ada) a converteu na representante feminina do movimento fascista
italiano, o que, desastrosamente, ocasionaria o misreading da sua obra após a Segunda
Grande Guerra e o relativo esquecimento que a alcançou a partir de então.
Se Ada foi famosa durante a sua vida
e seus versos aplaudidos também pela sua vertente política, Florbela, ao contrário,
foi praticamente ignorada em vida. E se Ada foi desprezada depois de morta, Florbela,
inversamente, obteve a sua entrada no panteão literário português, apenas depois
do seu desaparecimento.
Formada pelo pai na escola da ideologia
republicana, Florbela sempre se demonstrou muito crítica a qualquer tipo de política.
Mas, mesmo assim, foi odiada pelos salazaristas e pela Igreja Católica a estes aliada,
que viram nela e na sua obra uma emblemática mulher opositora à moral e aos ditos
bons costumes burgueses. Ironicamente, será esta uma das vertentes para o crescimento
do seu público-leitor e para os booms editoriais que a sua obra vai atingir a partir
de 1930. As polêmicas seguintes foram discutidas detidamente durante as páginas
deste livro. Vê-se que, se polêmicas não faltaram à Ada Negri durante a sua vida,
estas ocorreram em profusão para a Florbela póstuma.
Tanto Ada quanto Florbela tiveram uma
vida um bocado errática, que as levou a moradas em diferentes territórios, onde,
aliás, acabaram por fenecer em solidão. E, neste sentido, é bizarro como o tipo
de solidão de Florbela se faça sentir pela necessidade absoluta de seus sonetos
invocarem o “outro” para poderem ser erigidos. Na medida em que ela sempre chama
para si o Amante, numa espécie de “dialogismo soliloquial” (se é possível com tal
imprecisão registrar a natureza específica da sua função poética), a impressão que
se tem é que estamos diante de um patético “bloco” de um “eu” sozinho, de uma “solidão
acompanhada”…
Sem considerar que Ada perde a casa milanesa
destruída por bombardeios durante a Primeira Guerra, seus deslocamentos foram, como
os de Florbela, pronunciados. De Lodi para Motta-Visconti, onde exerceu o magistério;
para Milão, para Zurique (Suíça), para Parma, Pavia e novamente Milão, onde falece.
Em seus poemas, Ada refere a sua raça de “ciganos” e a localização da sua casa como
sendo “o mundo inteiro”, como se vê em “Um irmão” de Dal Profundo (1910).
Florbela, por sua vez, deixa Vila Viçosa para estudar em Évora, leciona como professora
em Redondo, vai para Lisboa cursar a Universidade de Direito, que não conclui; depois
segue para o Porto (para viver no quartel com seu segundo marido), em seguida retorna
a Lisboa, indo depois para o Porto e ainda em seguida para Matosinhos, onde encerra
a sua existência.
Para quem lê a sua correspondência, fica
a impressão de que Florbela passa a vida buscando o seu lugar, o seu amparo, a sua
casa, e é bom de observar como essa tópica também comparece em Ada, sobretudo em
“Regresso a Motta Visconti”, que se encontra em Maternità (1904). Ali se
lê que a “dor” é a propulsora dos seus versos, que andam pelo mundo “pela potência
da dor levados”: “Dor” – outra constante entre ambas as escritoras.
No tão mencionado poema “Minha Terra”,
pertença do derradeiro e póstumo livro Charneca em Flor, Florbela pede pungentemente
abrigo à sua terra de origem, e se queixa:
– Eu não tenho onde me acoite,
Sou uma pobre de longe, é quase noite,
Terra, quero dormir, dá-me pousada!… [8]
Sublinhando particularmente o erotismo
que deste último poema emerge, creio não ser difícil compreender que Florbela é
aquela que inaugura, em língua portuguesa, uma poesia que não teme ser feminina.
Segundo se depreende dos seus escritos, essa certeza de gênero emana de um insolúvel
paradoxo, visto que é nesse padrão que se embatem o princípio de prazer e o princípio
de realidade, resultando daí um impasse que gera a “Dor” – esse preciso sentimento
que, a crer nos seus poemas, diferencia a mulher do homem.
Para Negri, no poema “A um irmão”, também
surpreendemos o esboço dessa cisão entre o comportamento feminino e masculino. Para
o caso, a liberdade dele é louvada, enquanto a mulher, a “pantera”, se encontra
aprisionada. Também Florbela se diz uma “pantera aprisionada” nas cartas dirigidas
a Battelli.
Repare-se que a diferença entre público
e privado, e a atrocidade que esta representa para a mulher, também é tema do poema
“A máscara”, de Ada. O silêncio da mulher morta, calada para sempre, com quem topamos
nessa história de muitas mulheres que é o poema “Segredo”; os conselhos de comportamento
feminino que Ada implicita em “O orgulho”; a evidência que a mulher “natural” fornece
à intelectual (que leu os “livros impuros” escritos pelos homens) fazendo com que
esta saiba “o quanto esse bem é vão” (“Samaritana”) – a aproximam aos pareceres
de Florbela.
A Dor e o pranto são “uma voluptuosidade,
como o amor!”, reflete Ada Negri em “Verdade” (Dal Profundo). A Mágoa e a
Dor constituiriam à Florbela, um pertence genuinamente feminino. E é dessa maneira
que ela reatualiza, para a Literatura Portuguesa, aquele ideário que enforma a novela
Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, obra quinhentista onde, pela primeira vez
transparece essa “estética da dor” que, à Poetisa alentejana, a guiará por seus
meandros artísticos.
A fragilidade e o poder da mulher, daquela
que, estando em Vênus deve ser sempre Marte, como explicita Florbela; daquela, cujo
anseio de liberdade topa com os ditames de uma prisão; daquela que, tendo a oferecer,
deve guardar, tal como reza Florbela nos seus poemas “Mulher” – desembocam na Mágoa
que, identificando sua obra de estreia (o Livro de Mágoas, publicado em 1919),
transmuta a histórica inatividade social da mulher em força produtiva. É com tal
matéria prima, a “Dor”, que Florbela constrói a sua poética enquanto coisa de mulher.
Sem me deter agora no sinuoso desenvolvimento
da construção desse imaginário, diria rapidamente que a configuração feminina da
“sóror” em Florbela Espanca (ao contrário do que ocorre com Ada, que se dedica,
aliás, no fim da sua vida, às hagiografias de Santa Catarina de Siena e de Santa
Teresa de Lisieux) compreende, no contexto dessa obra e da seguinte (não por acaso
intitulada Livro de “Sóror Saudade”, 1923), um regime de dedicação feminina
ao entendimento da Mágoa. De modo que a reclusão conventual se converte, em Florbela,
em condição sine qua non para o aprofundado conhecimento e questionamento dessa
sina feminina e de seus meandros: o amor, o interdito, o devaneio, a tortura do
pensamento, a precariedade da vida, o orgulho, a autonomia, o desencontro – a identidade
da mulher que, aliás, é desvendada como múltipla.
É à Dor que vai se consagrar a Sóror
que, em Florbela, retira-se do mundo para a clausura (nesse seu segundo livro),
para depois abandonar o hábito, num frenesi de liberação erótica, em verdadeiro
estado de cio (Charneca em Flor) para, ao fim e ao cabo, com a estamenha
a recobrir o seu corpo e seus desejos (em Reliquiae) – num movimento de ida
e volta que retrata a própria oscilação interna da condição feminina, e mesmo o
seu estado de intermeio, de oxímoro: a sua fragmentação histórica. Fenômeno também
tratado por Ada Negri no seu extenso poema intitulado “Eu”, pertença de Tempeste
(1895).
Nessa tentativa de descoberta daquilo
que se é, o poema de Ada observa que esse “eu” representa, na verdade, todas as
mulheres do mundo: a mineira, a trabalhadora geral, a cigana, as grandes heroínas,
a princesa, a monja, a artista, a simuladora etc. De modo que ali se proclama, mercê
desse desfile do feminino, a certeza de a mulher jamais conhecer “o inebriamento
de poder morrer inteira”…
O distanciamento do princípio de realidade
que o claustro metaforiza em Florbela remete a outras figurações que a alentejana
toma como suas: ela é a habitante dos Paços Reais, a Infanta, a Castelã, a Princesa
Desalento, a Mística Dona, a Infanta do Oriente, a Maria das Quimeras, a Intangível,
a Princesa Encantada, a Castelã da Tristeza – índices de uma “aristocracia” humana
que concebe o feminino como uma categoria altiva (e de casta) dentro do âmbito social
e público.
No entanto, é o baldado percurso por
dentro de tais investiduras femininas que acentuará em Florbela a sensação perene
de deslocada, de estrangeira, de definitiva “exilada” em busca do
“Ignoto País” de onde veio e para onde quer regressar. Nesse país benfazejo e de
luz, lá sim, ela será admitida – lá sim terá assento.
E é assim que, pateticamente, a Morte
comparece, na sua poética, como o lugar privilegiado onde, de fato, o feminino se
realiza. Mas ele se concretiza unicamente enquanto transcendência, uma vez que,
no território do real, o impasse permanece inevitável.
O poema “Mística” de Ada, contido em
Fatalità (1892), desenha mais ou menos um movimento semelhante. Ele gira
em torno da mulher etérea, consagrada ao ambiente monasterial que, ao encontrar
o amor, descobre ao mesmo tempo o inferno e o paraíso. O templo resulta vazio e
o candeeiro dos ritos rompe-se.
Já o “Canto de Abril”, do mesmo livro,
se assemelha – na utilização das qualidades de leveza do amor primaveril, do vento,
dos cheiros, da luz, da flor brotando, da seiva vital e da ressurreição – preceder
aos poemas da amplidão amorosa de Charneca em Flor.
No entanto, a Morte corporifica, para
Florbela, a “Iluminada” – a Mãe primeva, ao seio da qual ela regressa para a paz.
E a Poetisa pede, como temos visto, à “Senhora dos dedos de veludo” que lhe feche
os olhos “que já viram tudo”, que lhe corte as asas “que voaram tanto”.
A nossa “Castelã da Tristeza” veio
da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
à tua espera,… quebra-me o encanto!
Na história da Poesia Portuguesa, Florbela
não é apenas herdeira daquela “menina-e-moça” que sente passar bernardianamente
pelas ruas ermas de “Évora”, mas também da mulher-freira de Mariana Alcoforado.
Como a Sóror de Beja, também Florbela retorna a seu espaço carcerário depois de
ter conhecido os prazeres do amor e experimentado em si as várias identidades que,
afinal, lhe dizem respeito.
No recorrente soneto “Renúncia” (de Livro
de “Sóror Saudade”) os índices sagrados e profanos que rondam o feminino ficam
definitivamente explicitados: de um lado, a prisão cultural; de outro, a liberdade
natural. De um lado, a cruz, a paz, a cegueira e o sacrifício – o fiat Maria cristão.
De outro, a Lua, Satanás, a Beleza – o erotismo. Eis aqui as duas figurações centrais
da mulher, os dois polos – o sagrado e o profano.
Também a nossa Ada Negri, essa “Dama
Vermelha” tão solitária e infeliz, parece ter-se recolhido para dentro da “mortalha”
no termo da sua existência. Refiro-me à sua inclinação (ao seu “dom”?!) pelo misticismo
e pela religiosidade, que marcam as suas derradeiras produções.
Creio que é a partir de tais reflexões
podemos agora ler assimilando a maneira como Ada Negri desenvolve o seu poema a
Marie dedicado, atraída pelo olhar que a Ucraniana, com a força de um ímã, a mergulha
nas suas profundezas.
Negri ressalta que, embora mortos, os
lábios de Marie falam ainda ali a linguagem de quem, com vontade exorbitada, se
destina ao poder; como aquela capaz de nascer das adversas contingências; como a
melodia que irrompe suplicando, ao mesmo tempo em que se arma com imprecações; como
aquela que, sem se entregar, guerreia contra o desconhecido; como aquela que traz,
de onde vem, tesouros incalculáveis; como aquela que, vivendo num espaço, outro
lugar busca; como aquela que, estando nos altos, o mar procura; como a tela onde
os contrários se juntam.
E o poema lastima que, dessa “Batalhadora
Filha da Arte”, que apontava para um futuro intrépido, apenas tenha restado uma
urna sob a terra.
Ocorre que nesta, todavia, o seu crânio,
mesmo em meio aos vermes, ainda se ri de todos os reveses…
O retrato que Ada Negri elabora de Marie
Bashkirtseff não escapa da tonalidade patética de quem, almejando tanto e lutando
para tal, tenha sucumbido como qualquer um dos outros. No entanto, o seu status
de exceção ainda se manifesta no que resta de si depois da morte, uma
vez que o seu riso perpétuo de caveira ironiza a sua própria queda.
A MARIE BASHKIRTSEFF
Da ampla tela, fascinante e fixo
O teu olhar persegue-me; e a si me atrai
Como boca do abismo.
Sob os cabelos de ouro fino e fluentes
Sois toda branca, e as rosadas narinas
Vibram nervosamente:
Diz o lábio fechado: “Eu penso e quero:”
Diz o rosto jamais curvado:
“Nasci para os louros e para o trono.”
….Ouve. É verdade que estás morta, ó
loura Eslava,
Que tesouros de engenho nos trouxeste
Dos gelos de Poltawa;
Que no silêncio das tristes neves
Como rosa desabrochaste, e inconsumada
Sede de glória tinhas?…
A ti a melodia que tem súplicas e ânsias.
Que fala, irrompe, impreca e se contorce
Nas cordas pulsantes;
Do génio com o ignoto a ti a guerra;
A ti a fantasia que tudo toca,
E impetuosa se desfere;
A ti a tela onde alegria e dor,
E carne e sol e alma se tornam
O jorro da dor.
Flor da charneca nas neves aberta,
Tu sonhavas, na verde ágil haste,
Os céus do deserto:
Grácil patrícia, tu os abetos sombrios
Dos Alpes suspiravas, o mar de espuma,
A liberdade dos bosques.
… Agora de ti o que resta, ó batalhadora
Filha da Arte?… Uma serrada caixa
Debaixo da negra terra;
Que triunfo de vida e de intrepidez.
Quanta grandeza em ti, quanto futuro
Que sopro de esperança!…
Sobre a caixa uma cruz exposta aos ventos;
Dentro, entre os vermes, o teu crânio
que ri,
Ri, mostrando os dentes.”
*
…Mais nada?… —Calma enfim cai
Na noite, à volta. — Eu na tela
Observo-te, ó loira Eslava.
O teu olhar mutável me acorrenta:
Qualquer coisa de ti me entra no coração,
E toda me envenena.
Uma elétrica força se liberta
Da tua real forma— e se me insinua
Por toda a pessoa;
E eu sinto-me tu. — Do martelante
Desejo do ignoto que o teu seio minava
Sinto o hálito arquejante.
Sinto a inata faculdade que cria;
Sinto o pulsar no cérebro a aguda
Vertigem da ideia.
Vejo a morte girar de longe
Já olhando a minha cabeça; álgida larva
Se apressa e alcança-me;
Como em ti, tudo suprime e tudo aniquila.
Desce o corvo a grasnar sobre a ruína:
Fuma a lanterna apagada.
Nada então de nós, nada mais resta?…
Lanço a ti o grito angustiado
Da alma em tempestade.
Mas a terra não sabe, Deus não responde!…
No infinito o gemido é engolido
Como pedra nas ondas.
Enquanto sobre as dúvidas das gentes
ignaras
Ó trespassada, o teu crânio sorri
Mostrando os dentes puros,
Do teu espírito a vívida centelha
No ser meu que morrerá em pouco
Penetra, arde e resplandece. [9]
Como se atenta, podem-se notar duas imagens
de Marie desenhadas por Negri. A primeira é a que resiste ao tempo no quadro
elaborado pela própria pintora, e que a traz de volta em sua força e audácia. A
segunda é a que, não resistindo ao tempo, ganha, no
entanto, uma face imóvel capaz de desdenhá-lo, pois que o ultrapassa com a ironia
de quem está acima de todos os valores terrenos.
De resto, tanto num como noutro caso,
a herança de Marie permanece em cada mulher, resplandecentemente – eis como se encerra
o longo poema de Negri. E é de fato o Tempo, o senhor absoluto de tudo, que para
este texto retorna, agora que, tendo flexionado em Judith, Florbela e Ada os sinais
de uma poética do feminino que a obra de cada uma dessas escritoras se empenha em
reler para o futuro, busco eu mesma, nelas, a erosão que foi preciso sofrer para
alcançarem a dignidade que suas obras clamavam.
Não há traços de Judith no Portugal do
Estado Novo. Sua poesia de mulher a obrigou a deixar sua Pátria em 1927 para retornar,
desconhecida e só, apenas para ali morrer em 1959.
Florbela, que se mata em 1930, não se
permitiu assistir ao que foi feito da sua obra durante o Estado Novo.
Ada Negri, no entanto, incorreu num erro
maior: fez-se admirar por Mussolini. E uma vez terminada a Guerra, a Itália a desprezou
como a todos os vencidos e sua obra não pôde ser lida sem a isenção de ânimos que
solicitava.
Nessa cartilha do feminino
(via Marie Bashkirtseff), todas as suas leitoras, por ela alfabetizadas, parecem
sofrer de uma mesma maldição, aliás, um tanto equivalente àquela “tristeza” de que
nos falava Bandeira – a de terem se antecipado ao seu tempo.
NOTAS
1. Judith Teixeira.
Poesia e Prosa. Org. e Est. Intr. de Cláudia
Pazos Alonso e Fabio Mario da Silva. Lisboa: Dom Quixote, março de 2015. As páginas
citadas são dessa edição.
2.
Remeto o leitor para o meu “Diário (e Epistolografia) do último ano”. Florbela Espanca, Afinado (op. cit.), pp. 317-388. As páginas citadas
pertencem a essa edição.
3. O texto de Jonas Jefferson
de Souza Leite, “Os diários de Marie Bashkiertseff e Florbela Espanca” (Interdisciplinar. Ano X, v. 23. Aracaju:
Universidade Federal de Sergipe, jul./dez.2015, pp. 269-280.), estuda justamente
a questão da Escrita de Si, aproximando e diferenciando ambas as obras, para o qual
endereço o leitor.
4. Só como nota, lembro
que há um filme mudo produzido em França, datando de 1926, cujo título é Nitchevo que, traduzido do russo para o francês,
significa ao pé da letra “rien”. A obra é dirigida por Jacques de Baroncelli. É
possível que Florbela o tivesse assistido, uma vez que seu pai João Maria Espanca
também trabalhava como exibidor de filmes, ele mesmo dono de um vitascópio de Edison,
que transportava para diferentes ocasiões e lugares.
5.
BASHKIRTSEFF, Marie. Diário. São Paulo/Porto
Alegre: Revista dos Tribunais/Livraria do Globo, 1943, trad. do francês por Gilda
Marinho. As páginas citadas são retiradas dessa edição.
6.
SCHURÉ, Édouard. “Ada Negri, une voix du peuple”. Précurseurs et Révoltés. Paris: Librairie Académique, 1908, pp. 183-207.
7. Há pouco tempo, em 2005,
esse montante foi recuperado e editado na sua integridade, cada tomo contendo cerca
de 300 páginas.
8.
Os poemas de Florbela são citados a partir da minha edição Poemas. Florbela Espanca.
São Paulo: Martins Fontes, 1994, e as páginas respectivas se encontram entre parênteses
ao final da citação.
9. NEGRI, Ada. Poesie. Roma: Arnoldo Mondadori Editore, 1948, pp. 90-92; Tradução de Luisa Antunes Paolinelli.
MARIA LÚCIA DAL FARRA (Brasil, 1944). Poeta, ensaísta. Tem Mestrado e Doutorado em Literatura (USP, onde lecionou), Livre-Docência em Literatura Comparada (UNICAMP, onde lecionou), é Professora-Titular e foi Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa (UFS, onde lecionou); possui Pós-Doutorado pela École Pratique des Hautes Études de Paris e pela Universidade de Lisboa. Participou da equipe pioneira de Antonio Candido para a fundação do Departamento de Teoria Literária e do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP (1973-1988) e foi professora em Berkeley (Universidade da Califórnia, 2002). Tem publicados inúmeros estudos de Literatura Portuguesa, Brasileira e Comparada (sobre poesia e narrativa), e livros sobre Fernando Pessoa, Vergílio Ferreira, Herberto Helder, bem como um elenco de 12 obras sobre Florbela Espanca, dentre as quais o Trocando Olhares foi leitura obrigatória para o Programme du Concours Externes de l’Agrégation às universidades francesas em 2002, sendo o derradeiro o Caleidoscópio Florbela, publicado em dezembro de 2023 pela Universidade de Évora, para além da direção científica do Dicionário Florbela Espanca, em suas edições brasileira e portuguesa, 2024. É prêmio Jabuti de Poesia (2012), e tem publicados poemas: Livro de Auras (1994), Livro de Possuídos (2002), Alumbramentos (2012), Terceto para o Fim dos Tempos (2017), Alguns Poemas (2019, ed. portuguesa), Poemas (2013, ed. peruana) e, possui, no prelo, o Livro de Erros. Escreveu ficções:– Inquilina do Intervalo (2005). A Cadeira número 25 da Academia Botucatuense de Letras guarda o seu nome.
ILCA BARCELLOS (Brasil, 1955) | Artista Visual, Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestre em Biologia Vegetal pela Université Pierre et Marie Curie – Paris VI, por muitos anos foi professora de biologia no Colégio de Aplicação da UFSC onde já recorria aos desenhos e às formas orgânicas tridimensionais de seres vivos – representando organelas, sistemas e organismos, em massa de modelagem – como recurso didático. Em 2006, ingressou no campo artístico por meio da cerâmica, participando de exposições coletivas nacionais e internacionais. Ampliando sua produção artística, explora atualmente outros materiais – tecidos, espuma expansiva de poliuretano, EVA, madeira, metal – e diversas linguagens – instalação, pintura, desenho, fotografia, vídeo. Em seu processo investiga as possibilidades conceituais que tangem um duplo percurso: científico e artístico; e busca indagar através de sua produção a poética do pulsar, do devir. Participa de salões nacionais e internacionais desde 2007. Em 2008 através do Salão dos Jovens Artistas de Santa Catarina ganhou o Prêmio Aquisição do Museu de Arte de Santa Catarina – MASC e em 2016 ganhou terceiro lugar do 1º Salão de Artes Visuais de Navegantes, SC. Participou de residências artísticas no Canadá e Cuba. Artista convidada da presente edição da Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 252 | junho de 2024
Artista convidada: Ilca Barcellos (Brasil, 1955)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário