domingo, 15 de setembro de 2024

FLORIANO MARTINS | Maria Lúcia Dal Farra e o maior de todos os erros

 


Há noites que começam em uma lavanderia, outras em uma taça de vinho. Não importa sequer que caia chuva lá fora, haverá sempre um gato à espreita. Ele sabe os célebres e permissivos nomes de todos os sonhos. Os gatos criaram a receita dos elixires da longevidade. E guardam no olhar os círculos essenciais em que são interpretadas as revelações de portas, figuras, signos. O gato é um jogo de sete erros. Maria Lúcia Dal Farra é a feiticeira que inventou o lilás como a derradeira prova de que o erro é a soma perene de todas as dúvidas existenciais. Segundo ela, é impossível errar por menos ou pela metade. Eu a imaginei ao lado de Manuel Bandeira no dia em que ele lhe disse que um dos dois teria vindo ao mundo para fazer o leitor satisfeito de si dar ao desespero. Era ela. Era ele. Quanto mais discute o tema, mas desespera o leitor. O encontro entre eles se deu na página inicial do Livro de erros, dela, onde o evoca para caminhar consigo enquanto ela entrega de mão beijada tudo de si e as erínias mudam de forma como em um tabuleiro de xadrez onde quem desespera é a consciência. Se fôssemos nos inclinar pelo vício doméstico das conexões, alguns diriam que Maria Lúcia Dal Farra jamais poderia ser romântica ou futurista. Talvez fosse expressionista, em sua lapidação voraz das essências lilases do mundo. Um entre nós diria sem piscar que ela é surrealista. Pensemos. Os erros neste seu livro são defendidos como curativos, vivificantes, são os decisivos símbolos da fecundidade. Não se erra à toa, na mesma proporção dos acertos.

No Nordeste do Brasil uma velha mulher anda com seus restos expostos, tagarela consigo mesmo enquanto ninguém lhe dá a mínima atenção. Os nós cegos na casa que tece dentro de si uma outra mulher, talvez no inferno ocupado da Cisjordânia, ou nas ruas calcificadas em Habana Vieja. Os nós. Apenas nós. Os que levamos conosco entre ervas e linguagem invertida pelos labirintos onde somos todos a ambivalência correlata da própria existência humana. Lemos nela, em Maria Lúcia Dal Farra, em seus erros com sílabas nítidas. Ela nos lê e me diz: O fato é que há uma diferença entre letargia e desassossego, e convida-se o leitor a fazer o seu lance. Conversar com ela, atravessar o negrume do dia e a luz alta das noites, eu sei, já fizemos isto, é como aprender tudo de novo, como considerar que a realidade traduz o que somos, que somos a unidade dispersa de tudo o que se reproduz, a ilusão pura, o erro energético que dorme com os relâmpagos que se precipitam sobre nós quando estamos a caminho de uma totalidade fugidia. O mundo é uma fenda, uma goela, a poeta nos diz, é o outro lado da noite, outro lado da palavra que mordemos e caímos em total esquecimento. Como Narciso que morre a cada noite, ao dormir. Ou ele mesmo, mítico, nas mãos de Valéry, que fez com que desaparecesse em um sopro. Porque, ao final, onde tudo começa, as noites são a voz dessa mulher que me traça a mais vertiginosa geometria da alma, esta poeta, a brasileira Maria Lúcia Dal Farra, que me ensinou a compreender as muitas vozes que trazemos em nosso íntimo, ela mesmo, uma infinidade de mulheres que jamais poderíamos descobrir uma cifra que lhe desse monta, ela, desde seu Livro de auras (1994), ou mais, depois, depois, quando nos encontramos, um dia, na escaldante Ciudad Juárez, México, onde nos conhecemos, desde ali, eu comecei a me abrir em fortunas, lendo as mãos que elevávamos ao tempo, e agora no abracadabra deste seu Livro de erros eu anoto os títulos internos, sua objeção consciente, sua hora marcada, sua profissão de fé… Eu sou o iluminado por seus erros.

Devo pôr em claro, de volta ao pórtico, onde evoca Bandeira, que a escrita é indomável – tanto na pátina do delírio quanto da razão –, que é uma grande tolice pensar no mundo que criamos, que é também o mundo da criação, como um ser vivo que tenha um pé firme apenas em uma das margens do abismo da existência. Ela nos diz, tão linda, anotando em sua pele os caprichos da escrita de José Lezama Lima:

 

Aberta, plena, asfixiante

a lua nefasta me instiga ao cio

e a estrela quebra a sua ponta no meu peito vazio –

minha derradeira brecha.

 

Este o seu erro convicto. Esta, a nossa dobra no espaço/tempo. As inconfundíveis vozes que confirmam a poética singular desta mulher possuída por mil espíritos são da mesma origem do silêncio que ela sabe errar como seu maior acerto.

A esta resenha que é quase uma quiromancia oculta, sobre o Livro de erros, de Maria Lúcia Dal Farra, eu gostaria de acrescentar a íntegra de seu pórtico, onde ela lança luzes sobre a gênese do livro, mas também cuida de nos dar uma lição preciosa sobre quando uma história se encerra para dar lugar a outra. Esta é a poesia que mais nos eleva, no Brasil, a uma condição tão desejada de nação expressivamente poética. Um milagre sobre os acessos progressivos da presunção. Uma ilha, não, o próprio país sempre foi alheio à lei da queda dos corpos. Seremos constantes em nossa descoberta de uma nova aceleração da gravidade que nos leva a renascer a cada instante?


MARIA LÚCIA DAL FARRA | Pórtico

 

Este livro nasceu do meu poeta Manuel Bandeira que, em 1949, provocou uma notável revisão nos meios literários com o seu aceno a uma

 

NOVA POÉTICA

 

Vou lançar a teoria do poeta sórdido. Poeta sórdido:

Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. Vai um sujeito,

Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito

bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:

É a vida.

 

O poema deve ser como a nódoa no brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar ao desespero.

 

Sei que a poesia é também orvalho.

Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.

 

P


ouco menos de cem anos antes de Bandeira, Baudelaire teria pensado francesamente assim, quando mencionava, como seu semelhante e irmão, aquele hypocrite lecteur de Les Fleurs du Mal que, pelos vistos, inaugurava, a partir de então, a sua sina de criatura expulsa da poltrona confortável da leitura.

A lição baudelairiana de tornar cúmplice o seu leitor é a pedra de toque para que o poema exista – sem dúvida. Antes que esse ser deite os olhos sobre a folha de papel, tudo ali está mudo e morto: paralisado. As letras desmaiadas, embaralhadas, ignorantes, aflitas e sem rumo clamam por existência, pedem-lhe socorro para fugirem ao cativeiro da escrita, a fim de descobrirem, afinal, quem são. Todas elas têm ciência de que só o leitor as libertará. Porque a leitura apenas tem sentido se for produtiva! E daí que o poema conte em absoluto com a sua ajuda, amado leitor!

Não por outro motivo, Herberto Helder confessava ter preferido morrer intensamente (ass)assinado. Traduzo o dito a meu modo: ser morto e redivivo pelo leitor que dá (por ele) sentido ao papel redigido. Trata-se do pequeno ritual de se deixar assassinar para poder ser assinado. E Apollinaire bem sabia disso.

Mas convenhamos: isso é notório. No entanto, só depois de Baudelaire começamos por forrar essa tal poltrona com pontiagudas tachinhas intermitentes e invertidas que (uma ou outra vez) cutucam a nossa paz rotineira. De lá para cá, os solavancos têm sido mais ou menos assíduos – por vezes ritmados por alguma rima caída em graça, ou por bombardeios de sonoridades impiedosas que derrapam até em enigmas para a vida inteira. Pobre leitor de poesia das nossas eras!

É que se pede a ele (que se confia a ele, na verdade) a responsabilidade de agente do que se escreve. E é por isso que ele resulta apoquentado, maldisposto, visto ter sido convocado a abandonar o aprazível assento para ocupar o tamborete periclitante da leitura! A via é difícil – o poema também.

De modo que ninguém espere delícias de aprazimentos e refrigérios num livro de versos. O poema quer despertar você do torpor de não pensar: quer botá-lo em ação, subverter suas maneiras diuturnas, tirar você do embaraçoso aconchego. E o único prazer que pode oferecer é a intervenção, a comunhão, a recomposição daquilo que seus olhos fixam no papel. Dádiva um tanto perversa, é verdade, mas de sumo prazer, porque pode transportar você a epifanias impensáveis – para bem ou para mal...

Por outro lado, há, de sobra, escolhas disponíveis: o poema pleiteia parceria – claro! –, mas não a exige ditatorialmente. Ele deixa você à vontade. Há, por exemplo, best sellers ortodoxos que esparramam, às mãos cheias, benesses e deleites de grande alcance. Custo mínimo, preço de banana ou um tanto apimentado, mas vale sempre a pena. Ficamos a saber como devemos sentir, pensar, sexualizar, escandalizar, narrativizar, olhar, apreciar, rezar, amar – e daí por diante. À nossa disposição um glossário de mega novidades e de emoções febris que nem a haute couture parisiense iguala na sua ousadia, nem as derradeiras séries da Netflix, nem mesmo a violência cotidiana do nosso país. Só o hábito ordinário do celular e das redes sociais pode competir (sendo que não se trata bem de uma emulação, pois que se auxiliam mutuamente) com esse outro mercado.

O fato é que há uma diferença entre letargia e desassossego, e convida-se o leitor a fazer o seu lance.

Por isso, veja-se como, no mesmo poema, Manuel, sem dar bandeira, insinua a cor-de-rosismo desse tipo de letra, que cultiva a ausência-de-experiência, a carência de senso, a menoridade, a mistificação das práticas sociais: a alienação. Sendo que há ingenuidade da parte desse preciso leitor, há, portanto, falta daquilo que Bandeira denomina maldade – e, assim, o mal acaba se insinuando no seu oposto (no poema-manchado-da-vida) tanto quanto nas flores do Baudelaire. E não é uma coincidência.

Que as gerações posteriores tivessem levado a sério tal pecha (bem fincada em 1857) enquanto prática do que é proibido – não estranha. De fato, é impossível imaginar a cara que a literatura teria se os dadaístas, os futuristas, os surrealistas e os istas em geral (refiro-me não só à vanguarda histórica) não tivessem vindo à cena para declarar frontalmente, com o apoio dos existencialistas (munidos da chave-mestra de Dostoievski – daquele que também escreveu: um erro original vale mais que uma verdade banal) que, afinal – tudo é permitido.

Assim, é de se convir que a carência de maldade, por parte de quem se torna mais ou menos vítima da literatura orvalho, abra espaço para um outro leitor que recebe, em vez de sereno, uma chuva de agulhas.

No entanto, parece pairar, sobre a letra manchada pelo real, um teor de negatividade. No poema de Bandeira, a contrariedade, o desespero do pobre do homem – cujo terno de brim branco engomado é assaltado pelos respingos da poça de água suja, com que o caminhão que passava o batizou – se desloca para o leitor.

É verdade que Artaud, por exemplo, levou isso à extrema quando propugnou um teatro da “crueldade” que, não sem o auxílio de Jarry, veio a desembocar no absurdo de Ionesco, Beckett, Genet e tantos outros, na impossibilidade de comunicação de Bernard-Marie Koltès e na polifonia teatral – no espect(ator) – de Valère Novarina.

Vimos alcançando, por essa trilha, o território do indomável, do que regurgita os padrões – domínio das transgressões, daquilo que erra por vontade própria porque busca, nesse desacerto, encontrar uma saída para um mundo mesmizado e mercantilizado.

O erro é, desesperadamente, uma decisão de mutabilidade que se exerce sobre a vida, de intromissão no real: trata-se de uma nova maneira de não saber que, todavia, pode funcionar como uma verdade insólita e insuspeitável. Herberto, que não fica por menos, toma para si o fato de que escrever é uma espécie de inteligentíssima expiação do crime obscuro de não ter morrido, de modo que, na sua obra, qualquer desses erros é cuidadosamente implacável porque escrevo.

A obra de Camões não seria, por isso mesmo, um magnífico erro, uma grande errância? Não foi por o Poeta ter errado todo o discurso dos seus anos que ela foi construída? Como repete sempre o meu amigo Jorge Fernandes da Silveira - afinal, errar é camoniano...

Já acerca desse verbo ou substantivo (como queiram), o Paulo Leminski não deixa de dilucidar, com todas as letras, que

 

nunca cometo o mesmo

erro duas vezes

já cometo duas três

quatro cinco seis

até esse erro aprender

que só o erro tem vez

 

Bem, e quanto a este preciso Pórtico, todo esse discurso errante é para advertir o leitor de que aqui se tisna muito linho: tinguijamos bem o seu brim – divisa que se prestaria com naturalidade a uma lavanderia às avessas, tal qual a deste livro. A bem da verdade, esta obra se aplica em impossíveis, em delitos, em infrações, e, portanto, falha, celebrando a imperfeição. Equivoca-se em tudo: na sua escrita, nas traduções de Lezama Lima (1910/1976), de Edna St. Vicent Millay (1892/1950), tanto quanto nas leituras de poemas alheios e telas, sobretudo na do colossal mármore de Vitória de Samotrácia, exposto logo à entrada do Louvre, obras que mal podiam supor serem um dia assim tão abusadas, e que, no entanto, ficam, dessa maneira, erradas e homenageadas neste livro.

Claro que se erra propositadamente, mas também sem querer – por pura ignorância. Não esquecer que o homem (a mulher) é um erro divino, como supôs Nietzsche um dia.

No ano passado, o Secretário Geral da ONU declarou, em alto e bom som, que a Humanidade está a um erro de cálculo da aniquilação nuclear.

Que este livro possa ser, com sorte (e antes que isso ocorra), um milagre cheio do milagre dos erros. Ao leitor, socorrê-lo. [Maria Lúcia Dal Farra, Lajes Velha, 14/09/2023.]

 



MARIA LÚCIA DAL FARRA (Brasil, 1944). Poeta, ensaísta e conferencista, autora de quatro livros de poesia que se destacam entre os melhores de nossa lírica: Livro de Auras (1994), Livro de Possuídos (2002), Alumbramentos (2012), Terceto para o fim dos tempos (2017), e Livro de erros (2024). Além deles, é autora de um livro de contos, Inquilina do Intervalo (2005) e dois outros de crítica literária: O Narrador Ensimesmado (1978) e A Alquimia da Linguagem (1994), este último em Portugal.



 


FLORIANO MARTINS (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Criador e integrante da Rede de Aproximações Líricas. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023).

 

 


ANTONIA EIRIZ (Cuba, 1929-1995). Se graduó de la Escuela de Bellas Artes de San Alejandro en 1957. Participó en la II Bienal Interamericana de México en 1960 y en la VI Bienal de Sao Paulo en 1961, donde su obra recibió una mención honorífica. De 1962 a 1969 impartió clases en la Escuela de Instructores de Arte y en la Escuela Nacional de Arte, ambas en La Habana. En 1963 ganó el Primer Premio en la Exposición de La Habana, organizada por la Casa de las Américas. Al año siguiente, la Galería Habana presentó su importante exposición “Pintura/Ensamblajes”. En 1966 expuso su obra junto a Raúl Martínez en la Casa del Lago de la Universidad Nacional Autónoma de México, y un año después en el 23 Salón de Mayo en París, Francia. Eiriz tenía una forma muy particular de captar su entorno, optando por retratar las situaciones más dramáticas y grotescas de la condición humana, lo que provocó que su obra fuera incomprendida por el gobierno revolucionario, lo que la llevó a jubilarse anticipadamente. A finales de los años sesenta abandonó la pintura y se dedicó a la promoción de formas de arte popular, transformando su casa en un taller donde enseñaba técnicas como el papel maché y los trabajos textiles a la comunidad local. En 1989 recibió la Orden Félix Varela del Consejo de Estado de Cuba, la más alta distinción del país en el ámbito cultural. En 1991 se realizó una exposición de su obra titulada “Reencuentro” en la Galería Galiano de La Habana y en 1994 recibió una beca de la Fundación John Simon Guggenheim. Después de su muerte en 1995, el Museo de Arte de Fort Lauderdale organizó una retrospectiva de su obra: “Antonia Eiriz: Tributo a una leyenda”. Ahora ella es nuestra artista invitada, en esta edición de Agulha Revista de Cultura.

 


Agulha Revista de Cultura

Número 255 | setembro de 2024

Artista convidada: Antonia Eiriz (Cuba, 1929-1995)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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