sábado, 23 de novembro de 2024

FLORIANO MARTINS | Não se deve dar descanso ao vento: conversa sobre Surrealismo: Paulo Antonio Paranaguá, Leonardo Fróes, Viviane de Santana Paulo



Um século se passou desde que André Breton publicou o Primeiro Manifesto do Surrealismo. Em meio aos últimos preparativos do livro III de minha trilogia do Surrealismo, ampliei um pouco a enquete em que procuro rever alguns aspectos que sempre me chamaram a atenção, tais como a rejeição de um ideal estético, as expulsões, o dogmatismo etc. Consultei três brasileiros com inestimáveis experiências de vida fora do país: a França de Paulo Antonio Paranaguá, a Alemanha de Viviane de Santana Paulo e os Estados Unidos de Leonardo Froes, que também viveu na França e na Alemanha.

 

FM | Depois de um século de purificação do surrealismo, registando a sua recusa em ser confundido com uma escola ou apenas com um ismo, é impossível descartar a propriedade estética de qualquer obra criativa. Qual é a tua compreensão de um ideal estético do surrealismo?

 

PAULO ANTONIO PARANAGUÁ | Purificação? Detesto a noção de pureza. Em nome da pureza – religiosa, étnica, ideológica ou sexual – foram cometidos os piores crimes contra a humanidade. O surrealismo surgiu como uma rebelião visceral contra a barbárie da guerra e contra os nacionalismos, quando os ideais do humanismo foram massacrados nas trincheiras da Europa, supostamente o berço da civilização. Não acredito na existência de um ideal estético do surrealismo. Em primeiro lugar, porque o surrealismo é contemporâneo da explosão da estética tradicional, nas artes plásticas e na literatura, no teatro e nas artes visuais. Os surrealistas tiveram uma participação decisiva nessa revolução da modernidade que acabou com as regras acadêmicas. Além disso, o surrealismo se expressou numa multiplicidade de formas e experiências que descartam qualquer modelo. Qualquer antologia literária ou exposição de artes plásticas de obras surrealistas mostram a inexistência de um padrão. Seria absurdo almejar um ideal ou modelo. O que desejo é ser surpreendido, descobrir algo diferente do existente. Apesar do imenso e inesgotável prazer em rever ou reler as obras apreciadas.        

 

LEONARDO FROES | Creio que o ideal estético do surrealismo tornou-se por fim o próprio espírito de toda a arte moderna ou modernista. Ou seja, a ingerência de um controle racional sobre a criação artística acabou por se dissolver no horizonte, assim como acabou ficando claro que o chamado realismo, que chegou ao auge na prosa do século XIX, era apenas um estilo como outro qualquer. Como tantos outros movimentos do começo do século XX, o surrealismo nos levou a uma liberdade mais plena e praticável.

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Compreendo que toda arte se baseia em um ideal estético, mesmo sendo uma estética que não se orienta nos padrões de “beleza” que uma determinada camada da sociedade ou da crítica deseja. O surrealismo, neste sentido, oferece uma possibilidade quase ilimitada de criação, devido à espontaneidade e a sua fonte no inconsciente. Sendo assim, eu diria que o surrealismo é a origem de toda a arte, porque a criação surge, primeiramente, no inconsciente, para depois ser “trabalhada” pelo consciente. A criação do mundo encontrada, por exemplo, nas mitologias das diversas etnias, são narrações advindas do subconsciente. As mitologias adotam diversos símbolos, imagens e metáforas, às vezes, bizarras e desconexas, para explicar o mundo e as relações humanas. Minerva nasce da cabeça de Zeus, já adulta e armada. Dentes são jogados no solo de onde nascem monstros cegos e assassinos. Na mitologia dos indígenas desanos, a deusa Yebá Bëló criou os seres humanos do ipadu, da folha da coca que ela mascava. E assim por diante! Temos então, vários elementos do surrealismo na narração da origem do mundo e das relações humanas. Na minha opinião, o surrealismo lida com aspectos que não são apreendidos na realidade cotidiana, aspectos ocultos, submersos e que vêm à tona em forma de metáforas, símbolos e imagens, como no sonho. O surrealismo possui esta origem no inconsciente, no sonho, e creio que é o estilo que mais liberta o artista das convenções sociais. As distorções, as disfunções de imagens, as anomalias e associações aparentemente desconexas, bizarras que se encontram no surrealismo, penso que devam prevalecer.

 

FM | As expulsões clássicas de surrealistas realizadas na formação original parisiense foram de natureza comportamental. A má qualidade de uma obra nunca foi um aspecto levado a julgamento. Ainda hoje, embora as expulsões já não sejam uma ocorrência comum, quando comentam acerca de seus pares, fazem-no considerando simpatias e adesões, o que acentua a existência de uma irmandade. Até que ponto este clube de amigos distorce a compreensão que se poderia ter da revolução cultural mais relevante do século XX?

 

PAULO ANTONIO PARANAGUÁ | Na história do surrealismo procuro diferenciar o anedotário ou conjuntural daquilo que é essencial e permanente. Antonin Artaud recebeu uma homenagem merecida quando saiu do asilo psiquiátrico depois da Segunda Guerra Mundial, com a participação destacada de André Breton. A distância passageira entre ambos não tem mais importância numa perspectiva histórica. O grupo de Paris assumiu um papel predominante devido à própria aparição do movimento na França, num contexto conturbado pelo auge dos totalitarismos. Mas a difusão das ideias surrealistas pelo mundo afora propiciou uma diversidade natural, devido às diferenças de cada cultura. Mesmo o grupo surrealista belga, próximo pela comunidade linguística e existencial, tinha uma maneira de declinar o surrealismo diferente do grupo parisiense. Uma historiografia discutível, baseada numa ortodoxia ambivalente, reduziu o impacto internacional do surrealismo às relações pessoais com os franceses, como se estes fossem profetas à procura de correligionários ou discípulos.

 

LEONARDO FROES | É importante entender que em todo grupo ou movimento as discórdias e dissensões são comuns e às vezes inevitáveis. No segundo manifesto do surrealismo, o de 1929, André Breton se mostra muito magoado e ressentido com os que, por diferentes razões, foram se afastando do grupo original. Mas esse fato não impediu que as colocações iniciais da década de 1920 se mantivessem, para ter tanta repercussão nos tempos conturbados que vieram depois.

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Percebo, infelizmente, que no Brasil as relações são quase estritamente pessoais, em todos os âmbitos. É difícil separar a relação pessoal da profissional ou da artística. Os críticos deixam-se seduzir pela pessoa do artista e não pela obra, pela proposta, pela representatividade e importância da obra. E confunde-se crítica com elogio ou falar mal da obra. Quando a avaliação crítica é baseada na subjetividade e nessairmandade, isso prejudica a qualidade da arte. Na literatura brasileira, há diferentesirmandadese sinto que elas não se comunicam, não se apoiam, pelo contrário, se repudiam. É contraproducente! Autores falam mal de outros autores, também de autores clássicos já consagrados, sempre tentando diminuir a importância destes autores na tentativa de assim, poder se autopromover. Por outro lado, autores levam a crítica para o lado pessoal. Enfim, é um círculo vicioso! Não vejo isso na Europa, na Alemanha, por exemplo, onde resido há vários anos. Talvez eu seja ingênua, mas a minha impressão é a de que os autores alemães procuram promover outros autores, porque assim estarão promovendo a literatura e a venda de livros em geral. E isso é bom para todos os escritores. Um escritor ou escritora na Alemanha não critica um autor ou autora de sucesso, como acontece no Brasil, no caso de Paulo Coelho e outros. E os seus poetas e artistas clássicos são cultuados. Amerdade Joseph Beuys nunca foi criticada por outros artistas alemães. Eles entendem que as críticas devam partir dos críticos e cada artista possui a sua proposta artística que será aceita ou não pelo público e pela crítica. Um bom crítico nunca é um escritor, um artista. Escritor não sabe ser crítico. Ele pode criticar, mas não está livre de sua subjetividade e vaidade. Um crítico literário competente é aquele que não é autor, aquele que almeja ser autor, mas não consegue, justamente porque é crítico. Ele ou ela analisa a obra de um ângulo diferente de um escritor ou escritora. Seria mais profícuo se a cena institucional literária brasileira fosse imparcial e objetiva. E incluísse as diversas tendências literárias brasileiras que permanecem à margem, mas que abordam, com autenticidade, temas internacionais, como o colonialismo, o racismo, a comunidade LGBT, a ecologia… Falta objetividade, maior competência na arte de criticar. A crítica também é um gênero, também é uma arte. Falta mais solidariedade entre os artistas de diferentes tendências e mais respeito à arte em si. E o Brasil deveria saber olhar para dentro e reconhecer o seu grande potencial.


FM | As revistas surrealistas – antes impressas, agora também virtuais e com uma longa recuperação desde os primórdios desta atividade em edições fac-símile e em formato pdf – formam um acervo incomparável a qualquer outro movimento, escola ou vanguarda ao longo dos séculos. Defendo que as mais valiosas são aquelas que nunca refutaram outras perspectivas de vida e obra, estranhas e/ou complementares ao surrealismo. Tais revistas são, a meu ver, o espaço cativante de uma contra-ortodoxia, um exercício pleno de generosidade e partilha de mundos dispersos. Contudo, ainda existe, declarada ou não, uma imensa rejeição do surrealismo precisamente por causa do seu princípio ortodoxo. Como separar o joio e o trigo aqui?

 

LEONARDO FROES | É tolice rejeitar qualquer coisa que tenha existência comprovada. Mas todo mundo é livre para formar opiniões a favor ou contra as diferentes manifestações culturais.

 

PAULO ANTONIO PARANAGUÁ | O surrealismo do século XX não foi uma igreja ou capela, como diziam e ainda dizem seus inimigos. Portanto a pretensão a uma ortodoxia ou dogma é antinômica com o projeto surrealista. Os textos autorreflexivos do próprio André Breton, um poeta sempre em movimento, inspirado pelas suas viagens, encontros, experiências, afetos e diálogos, é a melhor comprovação disso. Sua prosa poética é ao mesmo tempo uma narrativa existencial e um exercício de autoconhecimento e lucidez sobre o seu tempo. Não houve dogmatismo quando Breton procurou lembrar as fases sucessivas do movimento surrealista, numa série de entrevistas à Radio França que foram publicadas em livro (Entretiens, 1952) e incluídas na magnifica edição das Obras completas organizada por Marguerite Bonnet para a coleção La Pléiade (Gallimard, vol. III, 1999). As revistas foram de fato fundamentais, mas foram também diversas, adaptadas às circunstâncias nacionais, políticas, culturais, editoriais. As revistas francesas, as únicas que tiveram continuidade, correspondem a ciclos diferentes da evolução do surrealismo. Essas publicações expressavam a natureza coletiva da atividade surrealista, que procurava interagir com artistas e intelectuais de outros grupos, setores e países. Porém, a leitura, a percepção, a interpretação e a avaliação das obras são subjetivas, variam com cada um. A exploração da subjetividade é uma questão fundamental da revolução surrealista: a modificação da relação entre sujeito e objeto sugere uma atitude mais ativa, participante, intima, de cada um de nós, sem ficar preso a uma norma ou cânon acadêmico.

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Bem, a transformação é a única constância na vida, para mencionar Heráclito. As coisas mudam, então é difícil manter um estilo ou um movimento exatamente com as mesmas características iniciais. Certamente, o surrealismo de hoje não é igual ao dos anos vinte, iniciado na Europa. Aliás, há atualmente muito mais surrealistas na América Latina do que na Europa. São quatro décadas de surrealismo e suas influências continuam inspirando grandes artistas até hoje. A meu ver, a rejeição ao surrealismo vem por causa da falta de informação do que ele representava e continua representando. As revistas dedicadas ao surrealismo devem abrir espaço para outros experimentos semelhantes a este estilo. Necessário seria uma melhor divulgação e a conscientização de como este estilo está vivo em muitas obras de artistas e autores que não são enquadrados como exclusivamente surrealistas, como Kafka, ou Celan, mas até que ponto suas obras apresentam elementos surrealistas. De qualquer forma, a rejeição leva à limitação. Penso em mais curiosidade e conhecimento das técnicas de interpretação. Neste sentido, o ensino de arte nas escolas é fundamental.

FM | Duas denominações sempre me chamaram a atenção, dentro do ambiente surrealista, não porque me pareçam inadequadas, mas sim pela divisão entre elas de elogio e rejeição: movimento surrealista e civilização surrealista. Até que ponto estas denominações diferem e o que representam à beira de parecerem antípodas?

 

PAULO ANTONIO PARANAGUÁ | O movimento descreve a etapa de expansão do surrealismo, sua projeção em diversas latitudes e gerações, bem como a vocação coletiva da sua ação. A civilização surrealista é uma expressão que surge num momento mais exclusivamente reflexivo, devido à divisão dos franceses depois de Maio de 1968 e à clandestinidade forçada dos tchecoslovacos depois da invasão soviética de 1968. O principal elo entre uns e outros, Vincent Bounoure, poeta e antropólogo, sugeriu assim a possibilidade de uma alternativa utópica às sociedades de consumo ou burocráticas, numa época caracterizada pela busca de respostas à globalização. Mas o surrealismo já questionara os totalitarismos e sempre propiciou a rejeição do conformismo. Apesar do recuo da ideia de revolução, traída pelo comunismo, o surrealismo é um movimento de ruptura, tanto individual quanto coletiva. Como movimento organizado, os surrealistas têm uma trajetória com eclipses, com maior ou menor intensidade dependendo dos países. Porém, o surrealismo permanece vivo, nem que seja em estado latente, pois encarna uma tendência ou aspiração humana que se expressou inclusive antes do Manifesto de 1924, como escreveu Breton.

 

LEONARDO FROES | Talvez uma característica do surrealismo histórico tenha sido ir além da esfera literária e artística para lançar-se a uma ambição bem maior, transformar o mundo e mudar a vida, lema no qual André Breton sempre fez questão de insistir nos seus escritos. Mesmo que o mundo se transforme sozinho e a vida, queiramos ou não, nunca deixe de passar por mudanças, esse lema de Breton, fusão de ideias oriundas de Marx e Rimbaud, continuou a ser válido para as inúmeras gerações de insatisfeitos que se manifestaram depois.

 


VIVIANE DE SANTANA PAULO | Movimento surrealista baseia-se na estética artística. Civilização surrealista diz respeito às disparidades sócio-políticas do mundo atual. As contrariedades e ambiguidades políticas, a rapidez com que as coisas mudam através dos mecanismos tecnológicos, as catástrofes climáticas, as pandemias, o populismo na política, a propagação defake newsnas mídias sociais, as teorias de conspirações, as manipulações políticas e os acordos econômicos e políticos sigilosos em uma democracia, o desenvolvimento positivo e negativo da IA… uma série de coisas acontece atualmente e está deixando o ser humano desorientando. Ele busca explicações rápidas e não as tem porque as relações humanas estão se tornando cada vez mais complexas de forma global. Então, tudo parece surrealista, bizarro, desconexos, destorcido, pesadelo. Nos anos vinte, quando o surrealismo surgiu, havia os destroços da primeira Guerra Mundial: destruição, matança, fome, epidemias, doenças, refugiados... E as teorias de Sigmund Freud. Sem o surgimento da psicanálise o surrealismo talvez surgiria de outra forma, uma vez que, como mencionei, já na mitologia dos diferentes povos havia uma espécie de surrealismo. Então, o movimento surrealista refere-se à estética artística e a civilização surrealista tem a ver com a impressão que temos do mundo atual. E o surrealismo é um estilo literário com todas as características adequadas para interpretar a loucura da nossa época.       

FM | É comum evocar no surrealismo o seu poder imaginativo e o seu carácter experimental, aspectos estritamente complementares. Porém, na inquestionável impossibilidade de uma renovação perene no ambiente de criação artística, em muitos casos, o que se verifica no surrealismo é uma repetição de recursos, modos de ser e truques de linguagem. Como lidar com essas oscilações tão comuns em qualquer território criativo?

 

PAULO ANTONIO PARANAGUÁ | O inconsciente como conceito é uma invenção de Freud, mas isso não significa que era inexistente até então. O poder da imaginação propiciado pelos surrealistas é quase uma dedução desse descobrimento. O surrealismo nasceu como movimento experimental estimulado por essa revelação. Sem experimentação, não existe renovação. Sem experimentação, a repetição leva à mera retórica. Sem imaginação, não existe reflexão fértil. Sem reflexão, a imaginação é incapaz de desembocar numa utopia. A originalidade do surrealismo foi unir no mesmo movimento a imaginação criativa e a utopia social.

 

LEONARDO FROES | Não querer repetir recursos nem truques de linguagem é sempre uma postura saudável para quem se aventura à escrita. De quando em quando surgem bons autores que, tentando chegar ao máximo de autenticidade possível, criam obras de cunho bastante original.

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Experimentando, sempre experimentando e criando. Algumas tendências e estilos possuem os seus limites. E penso que isso não é necessariamente ruim. E trabalhar com esse limite não significa falta de criatividade, mas variações dentro de um limite estético. Creio que há a possibilidade de criar algo novo dentro deste limite. Importante ampliar o leque de associações, de temática, de metáforas.

FM | O argentino Aldo Pellegrini foi um dos raros estudiosos do surrealismo que tratou especificamente de seu ambiente poético. Numa bibliografia surrealista, o tom reforça a relevância da imagem plástica. Tal adjetivo sempre me pareceu uma falha crítica, pois a essência renovadora, já no início do século XX, refere-se à própria imagem e às suas múltiplas perspectivas. Será esta uma das inúmeras adulterações dos princípios surrealistas ou mesmo entre elas, percebeu-se a falta de distinção – exceto meramente técnica – entre imagem plástica e imagem poética?

 

PAULO ANTONIO PARANAGUÁ | Não sei. Aldo Pellegrini merece ser mais conhecido e lido. O mexicano Octavio Paz integrou o surrealismo à sua poética, nos ensaios O arco e a lira (1956) e Estrela de três pontas (1996). Escrevi sobre “Octavio Paz, o Surrealismo e Luis Buñuel” na revista [o que nos faz pensar] dedicada ao centenário de Paz (n° 37, PUC-Rio, setembro de 2015). Desde uma perspectiva diferente, a imagem foi estudada em vários ensaios do poeta cubano José Lezama Lima.

 

LEONARDO FROES | Pode ser que sim, mas eu mesmo nunca pensei nisso. A palavra imagem, sem que seja preciso adjetivá-la, já e si mesma me abre para um sem-fim de significados.

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Confesso que, lamentavelmente, ainda não li Aldo Pellegrini. Só posso dizer que nestas nomenclaturas e definições há margem para interpretações diferentes. Tenho dificuldade em pensar nisso como adulteração dos princípios de qualquer estilo literário ou artístico. As discussões sobre diferentes interpretações são importantes e profícuas, e fazem parte da arte de criticar. Através delas, uma nova visão pode surgir, outra perspectiva do mesmo tema e assim por diante.


FM | No seu surgimento, as expectativas sociais do surrealismo giravam em torno do que então era apresentado como ações revolucionárias, especialmente o que se baseava nas proposições de Marx e Freud. Octavio Paz chegou a declarar que o século XX seria lembrado como o século de Freud e do Surrealismo. Ao eliminar Marx das suas profecias, esqueceu – isto se é de fato um esquecimento – que o mercado derrotaria, no mínimo, todas as pretensões revolucionárias, sem deixar de lado as duas destacadas pelo mexicano. Como avaliar o tema em nosso tempo? Diante de um absolutismo virulento do mercado, o que aconteceu com as forças desencadeadas por Freud, Marx e o Surrealismo?

 

PAULO ANTONIO PARANAGUÁ | O capitalismo é o pior modo de produção, à exceção de todos os demais: nem o feudalismo nem o comunismo foram melhores. O tal do mercado não derrotou nada, foram as próprias revoluções que cavaram suas fossas. Mas essa tragédia não acabou nem com o inconsciente e a sexualidade, nem com o sonho de uma vida melhor ou uma utopia. Essas pulsões vitais favorecem a permanência do surrealismo no coração e nas mentes mais inconformistas e esclarecidas.

 

LEONARDO FROES | Raciocínios sobre questões sociais não são exatamente o meu forte. Mas comprovo que o chamado mercado, com seu “absolutismo virulento”, costuma ser um obstáculo forte para a liberdade de criação e os avanços de todo tipo que a própria vida sugere, em suas irrupções tão naturais.

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Para mim, é a ironia do destino! É o Absurdo da vida humana, como bem definiu Camus. Os idealistas não imaginavam que o comunismo, que partiu de princípios humanitários e de solidariedade, se transformasse em uma ditadura, em uma matança de pessoas através da fome ou da violência do estado, como na Rússia stalinista e na China maoísta. Certamente, Karl Marx estaria horrorizado com isso, como os poderosos usaram a sua ideologia para criar um regime de repressão, censura e perseguição. Também do lado do capitalismo são cometidos muitos crimes contra a humanidade, gerando guerras, perseguições e explorações. Também o capitalismo falha. Neste sentido, eu seria por uma mescla do lado bom do capitalismo e do comunismo,à laJoseph Stiglitz, um capitalismo progressista, uma democracia socialista. Porém, não culpo o mercado. O mercado é algo manipulável e criado pelo ser humano. As atrocidades causadas pelos seres humanos, na minha opinião, não resultam do capitalismo ou do socialismo em si, mas de determinados grupos de seres humanos gananciosos de poder e riqueza. Estes grupos sempre utilizaram as ideologias para alcançarem os seus objetivos que é: poder e riqueza. E sempre se utilizarão de qualquer sistema econômico ou social, de qualquer regime político ou ideologia para imporem e alcançarem – riqueza e poder. Deturpam qualquer ideologia para que possa se transformar em um instrumento que os auxiliem nesta empreitada. Portanto, para mim, os Direitos Humanos são a máxima a serem defendidos. Os Direitos Humanos e a Democracia. Infelizmente, tenho a forte impressão que estamos caminhando para uma era sombria. As catástrofes climáticas e o avanço da extrema-direita são duas combinações que levam à formação de regimes ditatoriais. A propagação defake news, que colabora para desorientar as pessoas, cria um cenário de confusão e insegurança, facilitando a crença nos populistas, a crença em soluções rápidas e fáceis para problemas complexos. O desenvolvimento célere da internet e da IA conduz a transformações também rápidas no modo de vida e de pensar, sem proporcionar tempo para analisarmos essas mudanças mais profundamente. Nestes regimes ditatoriais, a arte e a imprensa livre são as primeiras a serem perseguidas, amaldiçoadas e banidas. Precisamos da arte, porque ela nos auxilia a desenvolver um julgamento cognitivo em relação à realidade, aos acontecimentos, e porque, “A arte existe para que a realidade não nos destrua”. A vida humana sempre foi repleta de conflitos bélicos. O ser humano é um ser conflitivo por natureza. Mesmo sozinho, ele pode encarar a si mesmo como inimigo. Há quem diga que a guerra pertença ao humano. Ao ser humano masculino, acredito eu! Sou idealista e imagino que possamos amadurecer a ponto de nos relacionarmos uns com os outros de forma pacífica, com discórdias e brigas, mas sem guerras. Toda guerra é um ganho econômico para a indústria bélica, e cresce o seu poder. Por outro lado, “o mundo não é ameaçado apenas por pessoas que são más, mas também por aquelas que permitem o mal”, para mencionar Einstein. Portanto, temos que combater e resistir, e criar arte e defendê-la. Hoje em dia, os desafios gerados pelo aquecimento global exigem soluções globais. Portanto, o mais lógico seria nos unirmos. Mas o ser humano não é um ser totalmente lógico! Freud explica! E o surrealismo ilustra e poetiza! 



PAULO ANTONIO PARANAGUÁ (Brasil, 1948). Cresceu no Rio de Janeiro onde estudou arte e história, embora quando criança tenha vivido algum tempo em Madrid. Em 1967 ingressou no movimento cinematográfico surrealista, junto com Sérgio e Leila Lima. Em 1975, ele fugiu com sua esposa para Buenos Aires do regime de tortura no Brasil. De maio de 1975 a janeiro de 1976, ele e sua esposa María Regina Pilla foram sequestrados pelos serviços de inteligência como parte da Operação Condor. Foram libertados através dos contatos políticos de seu pai. No final da década de 1970 mudou-se para Barcelona e estudou cinema com Roman Gubern. Em 1982 mudou-se para Paris, onde reside desde então. Lá trabalhou como jornalista cultural, organizador de festivais e curador de exposições e retrospectivas. Ele recebeu seu doutorado em História do Cinema pela Sorbonne em Paris. Autor de uma dezena de livros, é um dos mais importantes historiadores do cinema latino-americano. Sua abordagem à necessidade de estudar o cinema latino-americano através de uma abordagem comparativa tem sido fundamental para a história do cinema contemporâneo.



LEONARDO FROES (Brasil, 1941). É um dos principais defensores da ecologia no Brasil. Atuou no Jornal do Brasil, entre 1971 e 1983, com a coluna “Natureza”, e no Jornal da Tarde, com a coluna “A arte de plantar”. Nesse espaço defendeu a ecologia e o ambientalismo. É um conhecido tradutor do inglês, francês e alemão, tendo traduzido obras de Shelley, Goethe, Swift, Choisy, Faulkner, Woolf, Eliot e Lowry. Por sua produção poética recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia, de 1996, pela obra Argumentos Invisíveis, e o Prêmio Alceu Amoroso Lima – Poesia e Liberdade, em 2016. Em 1998 recebeu o prêmio de tradução de Fundação Biblioteca Nacional. Sua obra foi publicada no volume Poesia Reunida (1968 - 2021), pela Editora 34. Dentre seus livros de poesia podemos citar: Língua franca (1968), A vida em comum (1969), Esqueci de avisar que estou vivo (1973), Anjo tigrado (1975), Sibilitz (1981), Assim (1986), Argumentos invisíveis (1995), Um mosaico chamado a paz do fogo (1997), Quatorze quadros redondos (1998), Chinês com sono (2005) e A pandemônia e outros poemas (2021).



VIVIANE DE SANTANA PAULO (Brasil, 1966). Poeta, romacista, tradutora e ensaísta. Estudou filologia germânica e românica na universidade de Bonn. É autora dos livros, lebendiges wensen namens gedicht – vom satelliten aus gesehen / ser vivo chamado poema – visto do sattélite (coletânea de poesia bilíngue – Engelsdorf Verlag, Leipzig, 2023); Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Foi membro da equipe editorial da ila-latina, revista de cunho social-político com sede em Bonn (Informationsstelle Lateinamerika e.V.). Seus textos foram publicados em revistas e antologias na Europa e América Latina. Traduziu diversos poetas alemães, incluindo Jan Wagner, Nora Bossong, Ron Winkler, Josef Kafka, Sarah Kirch, Paul Celan, Gottfried Benn.



FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta, editor, dramaturgo, ensaísta, artista plástico e tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura. Coordenou (2005-2010) a coleção “Ponte Velha” de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo). Curador do projeto “Atlas Lírico da América Hispânica”, da revista Acrobata. Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), foi professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), Las mujeres desaparecidas (poesia, Chile, 2022) e Sombras no jardim (prosa poética, Brasil, 2023).



SUZANNE VAN DAMME (Bélgica, 1901-1986). Pintora posimpresionista belga que evolucionó hacia el surrealismo en la década de 1940. Se formó en las Academias de Bruselas y Gante y en el Studio L’Effort de Bruselas. Durante su estancia en Ostende, recibió la influencia de James Ensor. A principios de la década de 1930, Van Damme se mudó a París, donde conoció al pintor y poeta italiano Bruno Capacci, quien se convirtió en su marido. Ella pasó mucho tiempo en París, el sur de Francia, Londres y Florencia. En 1941 entró en contacto con los surrealistas y participó en la Exposición Internacional Surrealista de 1947 en París, organizada por Breton y Duchamp. Sus obras de los años 1940 hacen claramente referencia a Picasso, De Chirico, Seligmann y también a Toyen. Expuso en la Bienal de Venecia en 1935, 1954 y 1962 y en la Bienal de São Paulo en 1953. Cuando más tarde se mudó a Florencia, comenzó a crear obras más abstractas antes de desarrollar un lenguaje muy personal lleno de signos y símbolos. Sus obras se convirtieron entonces en conjuntos de ideogramas compuestos por minipinturas con elementos abstractos y figurativos. Es de lamentar, sin embargo, que su obra surrealista de pinturas haya sido comprada por coleccionistas y rara vez aparezca en colecciones públicas. Suzanne van Damme es la artista invitada en esta edición de Agulha Revista de Cultura.



Agulha Revista de Cultura

Número 257 | novembro de 2024

Artista convidada: Suzanne van Damme (Bélgica, 1901-1986)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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