sábado, 23 de novembro de 2024

THOMAZ ALBORNOZ NEVES | Georges Schéhadé, poesia e fábula

 


Georges Schéhadé (Alexandria, 1905-Paris, 1989) nasceu em um aristocrático jardim suspenso com vistas ao Porto de Alexandria pouco antes que reveses financeiros levassem a família de volta a Beirute.

Ainda muito jovem, em 1923, serve ao departamento de educação pública do Alto Comissariado do Líbano onde é notado pelo colunista literário da nrf, Gabriel Bounoure, então inspetor gálico do ensino secundário na Síria e no Líbano. É Bounoure quem indica Schéhadé ce jeune poète plein de talents a Jean Paulhan, que mais tarde o publica na Revue.

Já então vivia ausente, em silêncio, como se estivesse sempre em outro tempo ou lugar. Cultiva a discrição. Prefere considerar-se um poeta de “duas margens”, porém, por seu idioma de pluma, é lido antes como um autor francês que soube associar com particular originalidade e elegância a atmosfera atemporal arábica com a poesia moderna.

 

Il y a des jardins qui n’ont plus de pays Et qui sont seuls avec l’eau

Des colombes les traversent bleues et sans nid

 

Mais la lune est un cristal de bonheur

Et l’enfant se souvient d’un grand désordre clair

 

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Existem jardins que não têm mais país e estão sós com a água

atravessados por pombas azuis e sem ninho

 

Mas a lua é um cristal de felicidade

 

e o menino recorda um imenso caos claro

 

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Les premiers brebis bêlent au marécage Nous avons sommeillé sous un arbre

La lune montait comme un animal d’orage Les feuilles du vent brûlaient

et pour mieux être nous-mêmes avons rêvé

Qu’à chaque tournant de route un homme dormait Le front irrité de miracles

L’épaule sans ombres du ciel

et comme nous une bêche près du dormeur et ses cris dans la campagne

 

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Les arbres qui ne voyagent que par leur bruit Quand le silence est beau de mille oiseaux ensemble Sont les compagnons vermeils de la vie

Ô poussière savoureuse des hommes

 

Les saisons passent mais peuvent les revoir Suivre le soleil à la limite des distances

Puis − comme les anges qui touchent la pierre Abandonnés aux terres du soir

 

Et ceux-là qui rêvent sous leurs feuillages Quand l’oiseau est mûr et laisse ses rayons Comprendront à cause des grands nuages Plusieurs fois la mort et plusieurs fois la mer

 

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De l’automne jauni qui tremble dans le bois dételé Il demeure une étrange mélancolie

Comme ces chaînes qui ne sont ni pour le corps ni pour l’âme

 

Ô saison les puits n’ont pas encore déserté votre grâce Ce soir nous avançons dans vos feuilles qui passent Près d’une cascade de triste folie

 

Et voici dans un nuage de grande transparence L’étoile comme une étincelle de faim

 

As primeiras ovelhas balem no pantanal Nós dormíamos embaixo de uma árvore A lua nascia como uma fera do temporal A folhagem do vento abrasava

e para ser melhor quem somos sonhávamos que a cada curva do caminho alguém dormia A fronte irritada por milagres

As costas sem sombra do céu

e como nós uma junto a quem dormia e este grito no descampado

 

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As árvores que só viajam com seu murmúrio

quando o silêncio tem a beleza de mil pássaros juntos São os companheiros vermelhos da vida

Ó pó saboroso dos homens

 

As estações passam mas é possível revê-las seguir o sol até o limite das distâncias

E depois – como os anjos que tocam a pedra abandonados nas terras do poente

 

e aqueles que sonham em suas folhagens quando amadurece o pássaro em seus raios compreenderão pelas grandes nuvens muitas vezes a morte muitas vezes o mar

 

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Do outono amarelo que tremula no bosque dispersado perdura uma estranha melancolia

como essas correntes que não são para o corpo nem para a alma

 

Estação, os poços não perderam ainda tua graça Esta noite avançamos entre folhas que passam perto de uma cascata de triste loucura

 

E eis que na nuvem de vasta transparência a estrela como um clarão de fome

 

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Sur une montagne

les troupeaux parlent avec le froid Comme Dieu le fit

Où le soleil est à son origine

Il y a des granges pleines de douceur Pour l’homme qui marche dans sa paix Je rêve à ce pays où l’angoisse

Est un peu d’air

Où les sommeils tombent dans le puits Je rêve et je suis ici

Contre un mur de violettes et cette femme Dont le genou écarté est une peine

 

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O mon amour il n’est rien que nous aimons Qui ne fuie comme l’ombre

Comme ces terres lointaines l’on perd son nom Il n’est rien qui nous retienne

Comme cette pente de cyprès où sommeillent Des enfants de fer bleus et morts

 

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Si je dois rencontrer les Aïeux

A l’extrémité d’une terre d’élégie Là où se perd la parole des puits Et le vieil élevage des lunes

 

La nuit fera une seule gerbe de nos ombres Je rejoindrai l’aiguille et les songes

Et la main de leurs habits

– Allongés dans leurs têtes légères

 

Sous un arbre imaginé par la vie Si je dois rencontrer les Aïeux

A l’extrémité d’une terre d’élégie Menant un enfant de grand sommeil Au bord des fleuves sans terres

 

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Sobre a montanha

onde os rebanhos falam com o frio como Deus fez

Onde o sol está na sua origem há celeiros cheios de doçura

para o homem que anda em sua paz

Eu sonho com esse lugar onde a angústia é um pouco de ar

onde os sonhos caem nos poços Eu sonho e estou aqui

entre esta mulher e um muro de violetas o seu joelho aberto que comove

 

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Meu amor não há nada do que amamos que não fuja como a sombra

como essas terras distantes onde os nomes se perdem Não há nada que nos retenha

como esta encosta de ciprestes onde dormitam meninos de ferro azuis e mortos

 

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Se devo encontrar os Antepassados no fim de uma terra de elegia

onde se perde a palavra dos poços e a antiga ascensão das luas

 

A noite fará um só facho com nossas sombras Reunirei a agulha e os sonhos

e a mão com os seus mantos estendidos das suas leves cabeças

 

Sob a árvore imaginada pela vida se devo encontrar os Antepassados no fim de uma terra de elegia levando o menino do sono imenso pela margem de rios sem terras

 

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Bounoure o levou a Paulhan e a Saint-John Perse. Em 1930, é publicado pelos simbolistas da revista Commerce, dirigida por Valéry. Em 33, durante sua primeira viagem a Europa conhece Max Jacob e Jules Supervielle. Logo, é Éluard quem o apresenta a Breton que o recebe nos seguintes termos:

 

Se alguém me perguntasse qual é o segredo de Georges Schéhadé, eu responderia, na velha linguagem da falcoaria, que ninguém sabe atrair a presa tão implacavelmente como ele.

 

A partir de 1938, sua poesia é editada em plaquettes por Guy Lévis Mano. Após a Segunda Guerra Mundial, Schéhadé divide-se entre Beirut, onde é o braço direito de Bounoure na recém-criada École Supérieure des Lettres, e Paris, onde convive com os surrealistas. Octavio Paz, seu primeiro tradutor ao espanhol, assim descreve o convívio com o grupo:

 

No Café de la Place Blanche e em outros lugares. Os pilares desses encontros foram André e Benjamin. Muitos jovens compareciam e, de vez em quando, alguns veteranos de campanhas passadas: Max Ernst, Miró, Hérold e, mais raramente, Julien Gracq. Com ele e com outros dois escritores recém-chegados aos encontros, André Pieyre de Mandiargues e Schéhadé, me senti mais à vontade. Gracq não é apenas um grande escritor, mas também um homem discreto e cortês, que sabe conversar e ficar calado quando necessário. Meus melhores amigos eram Mandiargues, brilhante e assustador como um conto de Arnim, e Schéhadé, sempre com um ramo de adágios recém-cortados de uma árvore no Paraíso.

 

Mas nada ou muito pouco de Schéhadé pode ser considerado surrealista, no rigor do termo. Sua associação com Éluard e Char, foi estabelecida antes pela capacidade de criar um universo poético próprio, de transparência e lenda, que por afinidade conceitual. Schéhadé escreve tomado pela delicadeza da infância e por um olhar cândido, mas maduro. O tom é discreto, a dicção proverbial e o tempo bíblico.

Na sua poesia não há tensão formal alguma. Ao contrário, o verso livre se naturaliza na estrofe e, se a desmancha, é por obedecer ao ritmo do que diz.

 

Mon merveilleux amour comme la pierre insensée Cette pâleur que vous jugez légère

tellement vous vous égarez de moi pour revenir

À l’heure où le soleil et nous d’eux faisons une rose Personne n’a dû la retrouver

Ni le braconnier ni la svelte amazone qui habite les nuages ni ce chant qui anime les habitations perdues

Et vous étiez cette femme et vos yeux mouillaient d’aurore la plaine dont j’étais la lune.

 

¯

 

Meu amor maravilhoso como a pedra insensata Esta palidez que julgas leve

de tal modo que te afastas de mim para retornar

na hora em que nós dois e o sol formamos uma rosa Ninguém jamais te encontrou

Nem o caçador, nem a esbelta amazona que habita as nuvens nem este canto que anima os quartos perdidos

e tu eras essa mulher e teus olhos molhavam de aurora a planície onde eu era a lua

 


Poesia oral. Como no teatro, cria um cenário. Sem discurso, sem récitas, com ambiência apenas. Poesia do sonho, não no sentido daliniano, ou das praças duras de De Chirico, nem das formas líquidas de Miró, mas de uma remota e esmaecida atmosfera suspensa.

 

Si tu es belle comme les Mages de mon pays Ô mon amour tu n’iras pas pleurer

Les soldats tués et leur ombre qui fuit la mort

Pour nous la mort est une fleur de la pensée

 

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Il faut rêver aux oiseaux qui voyagent Entre le jour et la nuit comme une trace Lorsque le soleil s’éloigne dans les arbres Et fait de leurs feuillages une autre prairie

 

Ô mon amour

Nous avons les yeux bleus des prisonniers Mais notre corps est adoré par les songes Allongés nous sommes deux ciels dans l’eau Et la parole est notre seule absence

 

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Se tu és bela como os Mágicos do meu país Meu amor não chores pelos soldados mortos e suas sombras que fogem da morte

-Para s a morte é uma flor do pensamento

 

Sonhemos com os pássaros que migram entre o dia e a noite como um rastro quando o sol se afasta entre as árvores e das suas folhagens faz outra planície

 

Meu amor

temos os olhos azuis dos prisioneiros mas os sonhos adoram nossos corpos deitados somos dois céus na água

e a palavra é a nossa única ausência

 

Os poços, as pombas, as rosas, as ovelhas são afro-mediterrâneas, mas poderiam ser de qualquer lugar e em qualquer época. O silêncio, tão presente no ar dos seus poemas, é um lugar de repouso para as suas palavras. Diz o poeta:

Le silence est la villégiature des mots.

 

Um silêncio grave, ao mesmo tempo existencial e universal, devedor da musicalidade do verso e da limpidez rítmica com que faz uso da língua.

 

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Nous reviendrons corps de cendres ou rosiers Avec l’œil cet animal charmant

O colombe

Près des puits de bronze où de lointains Soleils sont couchés

 

Puis nous reprendrons notre courbe et nos pas Sous les fontaines sans eau de la lune

O colombe

Là où les grandes solitudes mangent la pierre

Les nuits et les jours perdent leurs ombres par milliers Le temps est innocent des choses

O colombe

Tout passe comme si j’étais l’oiseau immobile

 

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Voltaremos corpos de cinza ou rosais com o olho esse animal encantador Pássaro

Perto dos poços de bronze onde sóis distantes estão deitados

 

Então retomaremos nossa curva e nossos passos pelas fontes sem água de lua

Pássaro

lá onde a imensa solidão devora a pedra

 

Noites e dias perdem sombras aos milhares O tempo é inocente das coisas

Pássaro

Tudo passa como se eu fosse o voo imóvel

 

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O poeta é também autor de uma obra cênica que divide com Samuel Beckett, Eugène Ionesco e Artur Adamov as concepções do teatro francês no pós-guerra. Em 1951, Georges Vitaly produziu com escasso sucesso sua primeira peça, Monsieur Bob’le, no Théâtre de la Huchette. No ano seguinte, Gallimard reuniu as quatro plaquettes impressas por glm sob o título Les Poésies. Schéhadé escreveria três outras obras teatrais que entraram no repertório da Comédie-Française, sendo Histoire de Vasco, a mais exitosa.

Em 1978, a guerra no Líbano o traz definitivamente a Paris. Nesse meio-exílio volta a escrever poesia. Em 85, a Gallimard publica Le Nageur d’un Seul Amour (O Nadador de um Amor) sua última reunião. Não obstante, o longo percurso entre sua estreia em 1938 e os últimos poemas cinquenta anos depois, seu estilo não muda. Como se nestes primeiros versos:

 

Les arbres qui ne voyagent que par leur bruit Quand le silence est beau de mille oiseaux ensemble Sont les compagnons vermeils de la vie

Ô poussière savoureuse des hommes

 

Les saisons passent mais peuvent les revoir Suivre le soleil à la limite des distances

Puis − comme les anges qui touchent la pierre Abandonnés aux terres du soir

 

Et ceux-là qui rêvent sous leurs feuillages Quand l’oiseau est mûr et laisse ses rayons Comprendront à cause des grands nuages Plusieurs fois la mort et plusieurs fois la mer

 

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As árvores que só viajam com seu murmúrio

quando o silêncio tem a beleza de mil pássaros juntos São os companheiros vermelhos da vida

Ó pó sabor de homens

 

 


THOMAZ GUILHERME ALBORNOZ NEVES (Sant’Ana do Livramento, 1963) é um poeta brasileiro com uma trajetória traçada à margem da tradição lírica nacional. Sua poesia, escrita entre 1981 e 2018, está reunida no volume À espera de um igual. São seis livros que podem ser lidos como um só. Neles, o surrealismo extemporâneo leva a uma intensa concisão formal gradualmente desintegrada pelo confronto com o silêncio. Estruturada no presente, sua poesia parte da realidade para transcendê-la. Seja por um impulso original ou por uma busca de realização, é uma obra aberta à espiritualidade e que, segundo o poeta Ivan Junqueira, “aspira a um estado não verbal da linguagem”. O trabalho como tradutor de Albornoz reúne versões do Tao Te Ching, do Shin Jin Mei e do Hokyo Man Zai, além de uma seleção da poesia chinesa dos séculos I a XVIII e da poesia japonesa dos séculos VIII a XX, incluindo uma extensa antologia de haicai. Publicou ensaios biográficos com traduções de poemas de Kaváfis, Seféris, Montale, Éluard, Michaux, Char, Tranströmer, Brodsky, Heaney e Ashbery, entre outros. Através da sua editora, a tan ed., publica, desde 2020, autores que escrevem entre Porto Alegre e Montevidéu, em português, espanhol e portunhol. Vive do campo, na fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, onde nasceu.
 



SUZANNE VAN DAMME (Bélgica, 1901-1986). Pintora posimpresionista belga que evolucionó hacia el surrealismo en la década de 1940. Se formó en las Academias de Bruselas y Gante y en el Studio L’Effort de Bruselas. Durante su estancia en Ostende, recibió la influencia de James Ensor. A principios de la década de 1930, Van Damme se mudó a París, donde conoció al pintor y poeta italiano Bruno Capacci, quien se convirtió en su marido. Ella pasó mucho tiempo en París, el sur de Francia, Londres y Florencia. En 1941 entró en contacto con los surrealistas y participó en la Exposición Internacional Surrealista de 1947 en París, organizada por Breton y Duchamp. Sus obras de los años 1940 hacen claramente referencia a Picasso, De Chirico, Seligmann y también a Toyen. Expuso en la Bienal de Venecia en 1935, 1954 y 1962 y en la Bienal de São Paulo en 1953. Cuando más tarde se mudó a Florencia, comenzó a crear obras más abstractas antes de desarrollar un lenguaje muy personal lleno de signos y símbolos. Sus obras se convirtieron entonces en conjuntos de ideogramas compuestos por minipinturas con elementos abstractos y figurativos. Es de lamentar, sin embargo, que su obra surrealista de pinturas haya sido comprada por coleccionistas y rara vez aparezca en colecciones públicas. Suzanne van Damme es la artista invitada en esta edición de Agulha Revista de Cultura.



Agulha Revista de Cultura

Número 257 | novembro de 2024

Artista convidada: Suzanne van Damme (Bélgica, 1901-1986)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


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