Ainda muito jovem, em 1923, serve ao
departamento de educação pública do Alto Comissariado do Líbano onde é notado pelo
colunista literário da nrf, Gabriel
Bounoure, então inspetor gálico do ensino secundário na Síria e no Líbano. É Bounoure
quem indica Schéhadé ce jeune poète plein
de talents a Jean Paulhan, que mais tarde o publica na Revue.
Já então vivia ausente, em silêncio,
como se estivesse sempre em outro tempo ou lugar. Cultiva a discrição. Prefere considerar-se
um poeta de “duas margens”, porém, por seu idioma de pluma, é lido antes como um
autor francês que soube associar com particular originalidade e elegância a atmosfera
atemporal arábica com a poesia moderna.
Il y a des jardins qui n’ont plus de pays Et qui sont seuls avec l’eau
Des colombes les traversent bleues et sans nid
Mais la lune est un cristal de bonheur
Et l’enfant se souvient d’un grand désordre clair
¯
Existem jardins
que não têm mais país e estão
sós com a água
atravessados por pombas azuis e sem ninho
Mas a lua é um cristal de felicidade
|
¯
Les premiers brebis
bêlent au marécage Nous avons sommeillé sous un arbre
La lune montait
comme un animal d’orage Les feuilles du vent brûlaient
et pour mieux être
nous-mêmes avons rêvé
Qu’à chaque tournant
de route un homme dormait Le front irrité de miracles
L’épaule sans ombres
du ciel
et comme nous une bêche près du dormeur et ses
cris dans la campagne
¯
Les arbres qui ne voyagent que
par leur bruit Quand
le silence est beau de
mille oiseaux ensemble Sont les compagnons
vermeils de la vie
Ô poussière savoureuse
des hommes
Les saisons passent
mais peuvent les revoir Suivre le soleil à la limite des distances
Puis − comme les
anges qui touchent la pierre Abandonnés aux terres du soir
Et ceux-là qui rêvent
sous leurs feuillages Quand l’oiseau est mûr et laisse ses rayons Comprendront à
cause des grands nuages Plusieurs fois la mort et plusieurs fois la mer
¯
De l’automne jauni qui tremble dans le bois dételé
Il demeure une étrange mélancolie
Comme ces chaînes
qui ne sont ni pour le corps ni pour l’âme
Ô saison les
puits n’ont pas encore
déserté votre grâce Ce soir nous avançons dans vos feuilles
qui passent Près d’une cascade de
triste folie
Et voici dans un
nuage de grande transparence L’étoile comme une étincelle de faim
As primeiras ovelhas balem no pantanal Nós dormíamos
embaixo de uma árvore A lua nascia
como uma fera do temporal A folhagem do vento abrasava
e para ser melhor quem
somos sonhávamos que a cada curva
do caminho alguém dormia A fronte
irritada por milagres
As costas sem sombra do céu
e como nós uma pá junto
a quem dormia e este grito no descampado
¯
As árvores que só viajam com seu murmúrio
quando o silêncio tem a beleza de mil pássaros
juntos São os companheiros vermelhos da vida
Ó pó saboroso dos homens
As estações passam mas é possível revê-las seguir
o sol até o limite das distâncias
E depois – como os anjos que tocam a pedra abandonados
nas terras do poente
e aqueles
que sonham em suas folhagens quando
amadurece o pássaro em seus raios
compreenderão pelas grandes nuvens muitas vezes a morte muitas vezes o mar
¯
Do outono amarelo que tremula no bosque dispersado
perdura uma estranha melancolia
como essas correntes que não são para o corpo
nem para a alma
Estação, os poços não perderam ainda tua graça
Esta noite avançamos entre folhas que passam perto de uma cascata de triste loucura
E eis que
na nuvem de vasta transparência a estrela como um clarão de
fome
¯
Sur une montagne
Où les troupeaux
parlent avec le froid Comme Dieu le fit
Où le soleil est
à son origine
Il y a des granges
pleines de douceur Pour l’homme qui marche dans sa paix Je rêve à ce pays où l’angoisse
Est un peu d’air
Où les sommeils
tombent dans le puits Je rêve et je suis ici
Contre un mur de
violettes et cette femme Dont le genou écarté est une peine
¯
O mon amour il n’est
rien que nous aimons Qui ne fuie comme l’ombre
Comme ces terres lointaines où l’on perd son
nom Il n’est rien qui nous retienne
Comme cette pente
de cyprès où sommeillent Des enfants de fer bleus et morts
¯
Si je dois rencontrer les Aïeux
A l’extrémité d’une terre d’élégie Là où se perd la parole des puits Et
le vieil élevage des lunes
La nuit fera une
seule gerbe de nos ombres
Je rejoindrai l’aiguille et les songes
Et la main de leurs
habits
– Allongés dans
leurs têtes légères
Sous un arbre imaginé
par la vie Si je dois rencontrer les Aïeux
A l’extrémité d’une
terre d’élégie Menant un enfant de grand sommeil Au bord des fleuves sans terres
¯
Sobre a montanha
onde os rebanhos falam com o frio como Deus
fez
Onde o sol está na sua origem há celeiros cheios
de doçura
para o homem que anda em sua paz
Eu sonho
com esse lugar onde a angústia
é um pouco de ar
onde os sonhos caem nos poços Eu sonho e estou
aqui
entre esta
mulher
e um muro de violetas o seu joelho
aberto que comove
¯
Meu amor não há nada do que amamos que não fuja
como a sombra
como essas terras distantes onde os nomes se
perdem Não há nada que nos retenha
como esta encosta de ciprestes onde dormitam
meninos de ferro azuis e mortos
¯
Se devo encontrar os Antepassados no fim de
uma terra de elegia
Lá onde se
perde a palavra dos poços e a antiga ascensão
das luas
A noite fará um só facho com nossas sombras
Reunirei a agulha e os sonhos
e a mão com os seus mantos estendidos das suas
leves cabeças
Sob a árvore imaginada pela vida se devo encontrar os
Antepassados no fim de uma
terra de elegia levando
o menino do sono imenso pela margem de rios sem terras
¯
Bounoure o levou a Paulhan e a Saint-John
Perse. Em 1930, é publicado pelos simbolistas da revista Commerce, dirigida por Valéry. Em 33, durante sua primeira viagem a
Europa conhece Max Jacob e Jules Supervielle. Logo, é Éluard quem o apresenta a
Breton que o recebe nos seguintes termos:
Se
alguém me perguntasse qual é o segredo de Georges
Schéhadé, eu responderia, na velha linguagem da falcoaria, que ninguém
sabe atrair a presa tão implacavelmente como
ele.
A partir de 1938, sua poesia é editada
em plaquettes por Guy Lévis Mano. Após
a Segunda Guerra Mundial, Schéhadé divide-se entre Beirut, onde é o braço direito
de Bounoure na recém-criada École Supérieure des Lettres, e Paris, onde convive com os surrealistas. Octavio Paz, seu primeiro tradutor ao espanhol, assim descreve o
convívio com o grupo:
No Café de la Place Blanche
e em outros lugares. Os pilares
desses encontros foram André e Benjamin. Muitos jovens compareciam e, de vez em
quando, alguns veteranos de campanhas passadas: Max Ernst, Miró, Hérold e, mais
raramente, Julien Gracq.
Com ele e com outros
dois escritores recém-chegados aos
encontros, André Pieyre
de Mandiargues e Schéhadé, me senti mais à vontade.
Gracq não é apenas um grande escritor, mas também um homem discreto
e cortês, que sabe conversar e ficar calado quando necessário. Meus melhores amigos
eram Mandiargues, brilhante e assustador
como um conto de Arnim,
e Schéhadé, sempre
com um ramo de adágios recém-cortados de uma árvore no Paraíso.
Mas nada ou muito pouco de Schéhadé pode ser considerado surrealista, no rigor do termo. Sua associação com Éluard e Char, foi estabelecida antes pela capacidade de criar um universo poético próprio, de transparência e lenda, que por
afinidade conceitual. Schéhadé escreve tomado pela delicadeza da infância e por
um olhar cândido, mas maduro. O tom é
discreto, a dicção proverbial e o tempo bíblico.
Na sua poesia não há tensão formal alguma.
Ao contrário, o verso livre se naturaliza na estrofe e, se a desmancha, é por obedecer
ao ritmo do que diz.
Mon merveilleux amour comme la pierre insensée Cette pâleur que vous jugez légère
tellement vous vous égarez de moi pour revenir
À l’heure où le soleil et nous d’eux faisons une rose Personne n’a dû la retrouver
Ni le braconnier ni la svelte amazone qui habite les nuages ni ce chant qui
anime les habitations perdues
Et vous étiez cette femme et vos yeux mouillaient d’aurore la plaine dont j’étais
la lune.
¯
Meu amor maravilhoso como a pedra insensata
Esta palidez que julgas leve
de tal modo que te afastas de mim para retornar
na hora em que nós dois e o sol formamos uma
rosa Ninguém jamais te encontrou
Nem o caçador, nem a esbelta amazona que habita
as nuvens nem este canto que anima os quartos perdidos
e tu eras essa mulher e teus olhos molhavam
de aurora a planície onde eu era a lua
Poesia oral. Como no teatro, cria um cenário.
Sem discurso, sem récitas, com ambiência apenas. Poesia
do sonho, não no sentido daliniano, ou das praças
duras de De Chirico, nem das formas líquidas de Miró, mas de
uma remota e esmaecida atmosfera suspensa.
Si tu es belle comme les Mages de mon pays Ô mon amour tu n’iras pas pleurer
Les soldats tués et leur ombre qui fuit la mort
–Pour nous la mort est une fleur de la pensée
¯
Il faut rêver aux oiseaux
qui voyagent Entre le jour et la nuit comme une trace Lorsque
le soleil s’éloigne dans les arbres
Et fait de leurs feuillages une autre prairie
Ô mon amour
Nous avons les yeux bleus des prisonniers Mais notre corps est adoré par les
songes Allongés nous sommes deux ciels dans l’eau Et la parole est notre seule absence
¯
Se tu és bela
como os Mágicos do meu país Meu amor não chores
pelos soldados mortos e suas
sombras que fogem da morte
-Para
nós
a morte
é uma
flor
do
pensamento
Sonhemos com
os pássaros que
migram entre o dia e a noite como um rastro quando o sol se afasta
entre as árvores e das suas folhagens faz outra planície
Meu amor
temos os olhos azuis
dos prisioneiros mas os sonhos adoram nossos corpos deitados somos dois céus na
água
e a palavra é a nossa
única ausência
Os poços, as pombas, as rosas, as ovelhas
são
afro-mediterrâneas,
mas
poderiam
ser
de qualquer lugar e em
qualquer época. O silêncio, tão
presente no ar dos seus poemas, é um lugar de repouso
para as suas palavras. Diz o poeta:
Le silence est la villégiature des mots.
Um
silêncio grave,
ao mesmo tempo
existencial e universal, devedor da musicalidade do verso e da limpidez rítmica
com que faz uso da língua.
¯
Nous reviendrons corps de cendres ou rosiers Avec l’œil cet animal charmant
O colombe
Près des puits de bronze où de lointains Soleils sont couchés
Puis nous reprendrons notre courbe et nos pas Sous les fontaines sans eau de
la lune
O colombe
Là où les grandes solitudes mangent la pierre
Les nuits et les jours perdent leurs ombres par milliers Le temps est innocent
des choses
O colombe
Tout passe comme si j’étais l’oiseau immobile
¯
Voltaremos corpos de cinza ou rosais com o olho
esse animal encantador Pássaro
Perto dos poços de bronze onde sóis distantes
estão deitados
Então retomaremos nossa curva e nossos passos
pelas fontes sem água de lua
Pássaro
lá onde a imensa solidão devora a pedra
Noites e dias perdem sombras aos milhares O tempo é inocente
das coisas
Pássaro
Tudo passa como se eu fosse o voo imóvel
¯
O poeta é também autor de uma obra cênica
que divide com Samuel Beckett, Eugène Ionesco
e Artur Adamov as concepções do teatro francês no pós-guerra. Em 1951, Georges Vitaly produziu com escasso sucesso sua primeira peça, Monsieur Bob’le, no Théâtre de la Huchette.
No ano seguinte, Gallimard reuniu as quatro plaquettes
impressas por glm sob o título Les Poésies. Schéhadé escreveria três outras
obras teatrais que entraram no repertório da Comédie-Française,
sendo Histoire de Vasco, a mais exitosa.
Em 1978, a guerra no Líbano o traz definitivamente
a Paris. Nesse meio-exílio volta a escrever poesia. Em 85, a Gallimard publica Le Nageur d’un Seul Amour (O Nadador
de um Só Amor) sua última reunião. Não obstante, o longo percurso entre
sua estreia em 1938 e os últimos poemas cinquenta anos depois, seu estilo não muda. Como se vê nestes primeiros versos:
Les arbres qui ne voyagent que
par leur bruit Quand
le silence est beau de
mille oiseaux ensemble Sont les compagnons
vermeils de la vie
Ô poussière savoureuse des hommes
Les saisons passent mais peuvent les revoir Suivre le soleil à la limite des
distances
Puis − comme les anges qui touchent la pierre Abandonnés aux terres du soir
Et ceux-là qui rêvent sous leurs feuillages Quand l’oiseau est mûr et laisse
ses rayons Comprendront à cause des grands nuages Plusieurs fois la mort et plusieurs
fois la mer
¯
As árvores que só viajam com seu murmúrio
quando o silêncio tem a beleza de mil pássaros
juntos São os companheiros vermelhos da vida
Ó pó sabor de homens
THOMAZ GUILHERME ALBORNOZ NEVES (Sant’Ana do Livramento, 1963) é um poeta brasileiro com uma trajetória traçada à margem da tradição lírica nacional. Sua poesia, escrita entre 1981 e 2018, está reunida no volume À espera de um igual. São seis livros que podem ser lidos como um só. Neles, o surrealismo extemporâneo leva a uma intensa concisão formal gradualmente desintegrada pelo confronto com o silêncio. Estruturada no presente, sua poesia parte da realidade para transcendê-la. Seja por um impulso original ou por uma busca de realização, é uma obra aberta à espiritualidade e que, segundo o poeta Ivan Junqueira, “aspira a um estado não verbal da linguagem”. O trabalho como tradutor de Albornoz reúne versões do Tao Te Ching, do Shin Jin Mei e do Hokyo Man Zai, além de uma seleção da poesia chinesa dos séculos I a XVIII e da poesia japonesa dos séculos VIII a XX, incluindo uma extensa antologia de haicai. Publicou ensaios biográficos com traduções de poemas de Kaváfis, Seféris, Montale, Éluard, Michaux, Char, Tranströmer, Brodsky, Heaney e Ashbery, entre outros. Através da sua editora, a tan ed., publica, desde 2020, autores que escrevem entre Porto Alegre e Montevidéu, em português, espanhol e portunhol. Vive do campo, na fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, onde nasceu.
SUZANNE VAN DAMME (Bélgica, 1901-1986). Pintora posimpresionista belga que evolucionó hacia el surrealismo en la década de 1940. Se formó en las Academias de Bruselas y Gante y en el Studio L’Effort de Bruselas. Durante su estancia en Ostende, recibió la influencia de James Ensor. A principios de la década de 1930, Van Damme se mudó a París, donde conoció al pintor y poeta italiano Bruno Capacci, quien se convirtió en su marido. Ella pasó mucho tiempo en París, el sur de Francia, Londres y Florencia. En 1941 entró en contacto con los surrealistas y participó en la Exposición Internacional Surrealista de 1947 en París, organizada por Breton y Duchamp. Sus obras de los años 1940 hacen claramente referencia a Picasso, De Chirico, Seligmann y también a Toyen. Expuso en la Bienal de Venecia en 1935, 1954 y 1962 y en la Bienal de São Paulo en 1953. Cuando más tarde se mudó a Florencia, comenzó a crear obras más abstractas antes de desarrollar un lenguaje muy personal lleno de signos y símbolos. Sus obras se convirtieron entonces en conjuntos de ideogramas compuestos por minipinturas con elementos abstractos y figurativos. Es de lamentar, sin embargo, que su obra surrealista de pinturas haya sido comprada por coleccionistas y rara vez aparezca en colecciones públicas. Suzanne van Damme es la artista invitada en esta edición de Agulha Revista de Cultura.
Agulha Revista de Cultura
Número 257 | novembro de 2024
Artista convidada: Suzanne van Damme (Bélgica, 1901-1986)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2024
∞ contatos
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