sábado, 23 de novembro de 2024

SIMONE SAURESSIG | La Minuana, de Lucio Carvalho

 


Um dos maiores desafios para quem escreve é a tradução da voz oral para a Literatura. Não se trata de transcrição: cada fala é uma melodia particular, feita não só do som da palavra, mas de gestos e silêncios repletos de significados e impossíveis de serem trazidos em sua totalidade para a palavra escrita. Acentuações, entonações, ruídos que não são palavras, mas tem sentido, sobretudo entre grupos familiares ou clãs, são coisas irreproduzíveis. Todo escritor sabe disso.

Mas não custa tentar, não é?

O resultado destas tentativas, muitas vezes, é o erro. É comum ver a fala do povo, com suas espontaneidades e expressões, a melodia única da forma não ortodoxa do idioma, associada a personagens broncos, tratados sem profundidade no texto ou associados a uma moral duvidosa. São deslizes que muitas vezes refletem um preconceito que o autor nem sabia que possuía.

Felizmente, contudo, quando o autor acerta, o resultado é brilhante. O texto passa a refletir formas de pensar e de agir, traz para a página a impressa a poesia oral e improvisada dos povos, sobretudo quando esse grupo humano é fronteiriço e mescla idiomas, criando uma linguagem única, as melodias das falas se misturando em uma forma muito pessoal. É o desafio de trazer para a Literatura a sinfonia do popular, acrescentando um grau de dificuldade, que é o da mescla, da boa e velha, mistura.


Tal é a primeira impressão que “La Minuana” de Lucio de Carvalho, publicado pela tan editora de Sant’Ana do Livramento neste mesmo ano de 2023. Com uma capa sóbria e elegante, o livro de apenas 96 páginas tem como abertura um Prólogo, talvez um pouco extenso para esta leitora que gosta de ir direto ao que interessa – e nesse caso, o que interessa é a história de um desertor que abandona as batalhas da Guerra do Paraguai e se envolve com um grupo de indígenas em busca de paz para uma alma mergulhada no terror da morte matada e buscada. Quem lhe poderia dar paz, segundo lhe disseram, é uma das componentes do grupo, La Minuana de nome, porque aquilo que nós entendemos por nome, Maria, ou Augusta, ou Raimunda que fosse, ela não tem. O protagonista a encontra ardendo em febre por conta de uma picada de cobra, mas milagrosamente a chegada do “cristiano” traz, também, a recuperação da mulher. É o encontro de duas raças, uma em processo de desaparição e outra que ainda não se formou nestes pagos rio-grandenses, mas que vai se criando. Unido ao grupo, o paisano segue os caminhos e a vida dura desses remanescentes de uma das últimas etnias originárias do Pampa, seguindo trilhas, vencendo coxilhas e, de vez em quando encontrando aquele recorte de pedras que os homens brancos usam para delinear seu espaço: as cercas. Das cercas para os povoados que um dia serão cidades, é ao mesmo tempo um passo longo para quem acredita na grandiosidade da civilização atual, e um tropeço, para quem sabe que somos parte de algo maior que nós e não seus proprietários.

A história do paisano e de La Minuana é um romance de poucas páginas, para quem conta apenas os números, porém gigantesca se abrangermos a vida de cada personagem. Escrito em primeira pessoa, o texto que Carvalho explora não é castelhano nem português, mas essa mescla tão nossa, o “portunhol”, no qual esgueiram-se expressões em tupi e no idioma charrua. Desafiante para o leitor? Sem dúvida alguma. Mas o autor não nos abandona e eventualmente palavras e expressões menos conhecidas são esclarecidas com notas de pé de página. Observo que muita gente não gosta das tais notas, mas é sempre bom lembrar que elas não são de leitura obrigatória, como parece ser para alguns leitores.

O livro se encerra com uma lista de referências bibliográficas, uma breve biografia do autor e uma bem-vinda lista de bibliografia selecionada, para quem quiser expandir suas leituras nesse universo sem fronteiras que foi o Pampa dos séculos anteriores ao afã de propriedade.

Por fim, não posso terminar sem lembrar ao leitor um detalhe importante: sendo um texto calcado na oralidade, vale uma leitura em voz alta para saborear os acordes melodiosos que só as fronteiras dos povos e dos idiomas são capazes de inventar. E para quem ficou na dúvida, um último comentário: não se fiem de que “La Minuana” tem como única qualidade o desafio textual. Dois parágrafos me bastaram para me fazer mergulhar nessa história e seguir sua torrente até a última página, adentrando um Pampa selvagem e livre, resgatado das brumas do tempo pela imaginação de seu autor.


LÚCIO CARVALHO. Nascido na fronteira do Brasil e o Uruguai, em Bagé (Rio Grande do Sul), Em 1971, viveu sua infância e adolescência entre a cidade natal, o município de Lavras do Sul, cidade onde residiam os avós paternos, e a estância Três Tarumãs, propriedade rural de seus pais. Servindo-se de uma máquina de datilografar Olivetti vermelha, presente do pai, ainda em Bagé começa sua atividade literária. Os registros mais antigos são versos escritos aos seis anos de idade. Na terceira infância, lê o quanto pode dos livros da família, antologias, enciclopédias, jornais e o que lhe for possível, sem deixar de lado a experiência infantil e o adolescer. Nesse meio tempo, publica com amigos na imprensa alternativa local e participa de mostra promovida por grupos de artistas locais no ano de 1986. Começa a estudar música. Durante os anos a seguir, escreve esparsamente. No fim da década de oitenta, passa a viver em Porto Alegre, onde ainda reside. Gradua-se no curso de Biblioteconomia e Documentação e especializa-se em Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Da pós-graduação, resulta a edição do livro A crise da representação rural na literatura rio-grandense (2020). Em 2015, publica pela editora Movimento, de Porto Alegre, o livro de contos A aposta, integrando a Coleção Rio Grande da editora. Em 2015 e 2017, respectivamente, publica o volume de poemas Falso Alarde e a coleção de ensaios Inclusão em Pauta, em edição do autor. A seguir, em 2019, cria o selo editorial Valentine e por seu intermédio publica mais duas novelas, Frente fria e Down House 1858, o romance Trapézio (republicado como Fica na tua pela Saraquá Edições em 2021), dois volumes de poemas (Pedra-pomes e Achados, salvados, perdidos) e uma antologia de contos intitulada Interiores (2019). Em 2022, publica Inventário, pela tan Ed., livro que reúne a produção poética dos livros anteriores e recupera poemas desde o ano de 1986. Atua profissionalmente no Ministério Público do Estado do RS, no qual concursou-se em 2004. Em 2020, criou e tornou-se editor da revista literária quadrimestral Sepé.

 


SIMONE SAUERESSIG (Rio Grande do Sul, 1964). Com mais de 30 títulos publicados, participou de várias coletâneas de contos, além da obra esparsa pela rede. Seu livro Contos do Sul (Terror), tem versão para o inglês e Um rio pelo meio (Infantil), em alemão. Alguns de seus contos infantis têm versão em espanhol e foram publicados na Espanha. Em 2011 recebeu o prêmio Livro do Ano – Narrativa Longa, da Associação Gaúcha de Escritores (AGEs) pelo romance aurum Domini – O ouro das Missões (Ed. Artes&Ofícios). Em 2022 O jovem Arsène Lupin e a Dança Macabra (Avec Editora) venceu o prêmio da Biblioteca Nacional, na categoria juvenil e o O último continente (independente) venceu o prêmio da AGEs na categoria infanto juvenil e como Livro do Ano. Participou de programas de leitura como o Autor Presente (IEL) e Adote um Escritor (CRL). Seu site é o www.porteiradafantasiasite.wordpress.com.


 


SUZANNE VAN DAMME (Bélgica, 1901-1986). Pintora posimpresionista belga que evolucionó hacia el surrealismo en la década de 1940. Se formó en las Academias de Bruselas y Gante y en el Studio L’Effort de Bruselas. Durante su estancia en Ostende, recibió la influencia de James Ensor. A principios de la década de 1930, Van Damme se mudó a París, donde conoció al pintor y poeta italiano Bruno Capacci, quien se convirtió en su marido. Ella pasó mucho tiempo en París, el sur de Francia, Londres y Florencia. En 1941 entró en contacto con los surrealistas y participó en la Exposición Internacional Surrealista de 1947 en París, organizada por Breton y Duchamp. Sus obras de los años 1940 hacen claramente referencia a Picasso, De Chirico, Seligmann y también a Toyen. Expuso en la Bienal de Venecia en 1935, 1954 y 1962 y en la Bienal de São Paulo en 1953. Cuando más tarde se mudó a Florencia, comenzó a crear obras más abstractas antes de desarrollar un lenguaje muy personal lleno de signos y símbolos. Sus obras se convirtieron entonces en conjuntos de ideogramas compuestos por minipinturas con elementos abstractos y figurativos. Es de lamentar, sin embargo, que su obra surrealista de pinturas haya sido comprada por coleccionistas y rara vez aparezca en colecciones públicas. Suzanne van Damme es la artista invitada en esta edición de Agulha Revista de Cultura.



Agulha Revista de Cultura

Número 257 | novembro de 2024

Artista convidada: Suzanne van Damme (Bélgica, 1901-1986)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024


∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 




Nenhum comentário:

Postar um comentário