Okamoto
já havia morado na França, dos anos 1920 aos anos 1940, e teve contado com o
movimento surrealista nas frentes bretoniana e batailleana. Para ele, as
tendências de colecionismo e primitivismo dos franceses lhe eram familiares e
foram fundamentais para elaborar textos reflexivos sobre a história da arte em
seu próprio país.
Em
1951, Tarō Okamoto visitou uma exposição de vasos do Japão neolítico
no Museu Nacional de Tóquio e se encantou com a desarmonia estética e com a
total falta de compatibilidade com a graciosidade dos vasos, se comparados com os
dos períodos posteriores, que definiram a tradição nipônica, mais polida e
requintada. Por conta disso, considerou que havia um lapso temporal, um vazio
entre a arte rústica primitiva e a arte formal clássica e concluiu que aquela
arte interrompida, se tivesse continuado a se desenvolver, teria atingido a um
padrão de arte próximo das vanguardas do Ocidente, como o Surrealismo, muito
antes do século XX.
Quando
falamos sobre Japão paleolítico e neolítico, aludimos diretamente ao período jōmon
(14.000 aC - 1000 aC), que compreende do início da empreitada humana no
arquipélago japonês à formação das sociedades nômades e sociedades de caça.
Aqui, temos uma cerâmica mais rústica e ostensivamente ornamentada.
Subsequente, temos período yayoi (1000 aC - 300 dC), que é demarcado
pela consolidação das sociedades agrícolas no Japão, graças à domesticação do
arroz, pela padronização da cerâmica e a criação da profissão de ceramista.
No
texto que se segue, Okamoto equipara dois períodos distintos da história do
Japão, jōmon e yayoi,
em defesa da arte praticada pelos ancestrais nipônicos em detrimento das
ambições vazias e cooptadas da contemporaneidade, tendo em vista o que ele
considera a decadência do projeto moderno. Ele entende que a salvação para a
arte de seu tempo está em resgatar a maneira como esses ancestrais lidavam com
a espacialidade – quarta dimensão repercutida – e como a arte deles se
correlacionava com o natural-sobrenatural/realidade-surrealidade.
SOBRE A CERÂMICA JŌMON, TARŌ OKAMOTO | As formas selvagens e tumultuadas da cerâmica jomon farão qualquer um que as encontre desprevenido prender a respiração. O tremendo poder da cerâmica feita em meados desse período, e sua total sofisticação, deixa qualquer um sem palavras.
Os
padrões das linhas estriadas sobem, descem e rodopiam, sobrepondo-se e
entrelaçando-se febrilmente. Uma sensação de tensão pressiona implacavelmente
em abundância, mas há uma sensibilidade aguçada que é pura e lúcida. Há uma
aura que deixa até mesmo a mim – e eu já sou alguém que argumenta que a
essência da arte é sua intensidade sobrenatural – com vontade de esganiçar.
É
o completo oposto do que é normalmente pensado como suave e elegante na
tradição japonesa. Portanto, pode ser muito difícil para amadores e aficionados
da tradição aceitá-la com equanimidade. Certamente, representa uma ruptura com
esse conceito de beleza. Aquilo foi realmente criado por nossos ancestrais? Não
se pode descartar completamente tais questões que surgem. Podemos facilmente
ver a cerâmica no estilo yayoi e as haniwa [1]
se conectando com uma suposta sensibilidade japonesa. A opinião geral parece
ser a de que o estilo jōmon é algo
totalmente estranho, que não pode ser imaginado como tendo uma conexão direta
com a tradição japonesa.
Eu
acredito que o senso estético do estilo jōmon,
seu teor, complexidade e vitalidade quase indecorosa, era basicamente demais
para o espírito do povo japonês contemporâneo lidar. Não poderíamos tolerá-lo.
Nós o excluímos de nosso reino espiritual e, automaticamente, pensamos nele
como estando além do âmbito de nossas tradições.
Certamente,
da perspectiva da história cultural ou morfológica, há uma ruptura entre o
estilo jōmon e o que veio
depois dele. E o estilo, subsequente, denominado yayoi, tem uma linhagem
que o conecta com o Japão contemporâneo. Mas pensar na tradição como sendo
simplesmente uma sucessão analógica, e que o estilo jōmon
que rompe com isso não tem, portanto, relação com a tradição, é muito
mecanicista e ingênuo.
O
que é a tradição de fato? Essa questão nos levará por um desvio, pois até que a
entendamos claramente toda investigação, será um caminho sem propósito, não
importa quão preciso seja; assim os japoneses contemporâneos nunca serão
capazes de apreender a cultura do estilo jōmon
com agência. Antes de entrar no argumento principal, gostaria de considerar
brevemente este ponto.
O
que pensamos como tradição não é algo fora de nós mesmos. É invariavelmente o
Eu multiplicado pelo passado. Nós sempre nos colocamos como a sustentáculo e
olhamos para o passado a partir daí. Nunca olhamos para as coisas honestamente.
Nós as fazemos corresponder ao nosso temperamento, pegando apenas os aspectos
que são convenientes para nós. Nosso empenho para justificar a posição em que
nos encontramos funciona através de todo um esforço, que pode ser consciente ou
inconscientemente. Eu não diria que isso é algo ruim. Na verdade, a tradição
não é viável fora do Eu.
A
tradição, em qualquer forma que possa assumir, é onde o Eu está em jogo a todo
o momento. É a mais ativa motriz. Quanto mais afiado o Eu se torna, mais ele assume
a aparência de ruptura, e a tradição é transmitida de forma mais tumultuada e
com uma dialética mais rica. Porém, o tradicionalista padrão, geralmente, não
se arrisca. Ele toma a tradição como ideia pré-estabelecida, pela qual se torna
dependente e, portanto, perde seu Eu. Se comporta como se houvesse alguma
autoridade na tradição, que se apresenta imóvel e imutável. Um grande
estratagema ocorre aí. A verdade da tradição está em sua utilidade específica,
em ação até mesmo entre os tradicionalistas, embora eles estejam completamente
confusos sobre isso. Eles hasteiam a bandeira da tradição, mas a usam
astutamente para lutar em reação contra aqueles que estão realmente empurrando
a tradição para a frente. É exatamente o que vemos acontecer quando eles
defendem um mundo de constructos de requinte como wabi-sabi, [2] shibumi, [3]
entre outros sentimentos de resignação feudal e servil como tradição válida,
enquanto se opõem, como filisteus, a novas tendências nas artes.
Para
reforçar, a tradição não é simplesmente o passado, de forma alguma. Ela faz parte
do presente. E não é inerte e imutável. Ao contrário, ela está sempre se
transformando e não se consolida em nenhum momento. Enquanto não conseguirmos
apreendê-la dinamicamente, não seremos capazes de trazê-la à vida ativamente e
empurrá-la para frente.
Faríamos
melhor se assumíssemos a vitalidade e franqueza primitivas, ou seja, a paixão
básica possuída por todos os seres humanos, e usá-la para construir uma nova
tradição que expresse ousadia e glória. Não é esse também precisamente o maior
desafio da vanguarda japonesa?
Depois
de viver por um longo tempo na Europa e me acostumar com as tradições duras e
nada sentimentais que existem por lá, não pude deixar de me sentir desanimado
com o fato de que, depois de voltar para casa, tudo que encontrei lacrado com o
rótulo de cultura ou tradição era tão terrivelmente fraco e retraído. O
sentimentalismo monótono e mesquinho do Japão moderno que não vale a pena
mencionar. Mesmo a linda e magnífica arte budista nara, [4] que as pessoas consideram a maior
antiguidade do nosso país, foi importada diretamente do continente asiático e
instalada, e olhando para ela, sinto um gosto ruim, um ar de arrogância em uma
cultura continental madura e decadente que era completamente inadequada para o
estado rústico do Japão na época. Voltando mais atrás, há a cultura insular
indolente e otimista da estética das haniwa. Eu me desesperei com a
forma como pude ver isso totalmente refletido no formalismo do povo japonês
contemporâneo. Fui assolado por um sentimento insuportável de aversão a mim
mesmo enquanto ponderava sobre o difícil destino deixado ao país por esse
otimismo pessimista. Mas depois de encontrar a cerâmica jōmon,
senti-me revitalizado. Percebi que nosso país também tinha camadas
profundamente ocultas de cultura que precisavam ser escavadas e com isso uma
nova perspectiva sobre a tradição se abriu diante de mim. Não apenas em relação
a uma etnia específica. Fui movido por um sentimento fundamental de fé na
humanidade.
Mas
é claro que ser simplesmente dominado pela aura japonesa hiper contemporânea da
cultura jōmon não significa
nada. Devemos torná-la nossa, avaliando-a de fato e investigando suas
profundezas. Para ser claro, no entanto, tenho ainda menos intenção de dar um
relato arqueológico. O estudo arqueológico empírico de artefatos de cerâmica em
nosso país é incomparável no mundo todo por sua escrupulosidade. Mas ele se
limita onde começa a compilação de classificações detalhadas baseadas em forma
e técnica, sem ter os meios para rasgar sua substância por uma ampla perspectiva
cultural ou sociológica. Parece torná-lo um objeto de curiosidade estranha,
como uma típica dicionarização ambulante. Devemos buscar lampejos sobre a
substância da cerâmica em si por meio da observação direta e confrontá-la às
claras, sem nos prendermos ao estudo acadêmico.
Tendo
isso em mente, a primeira coisa que notamos são as características hiper
japonesas totalmente únicas dos padrões e formas as quais aludi antes. O que
poderia ter sido responsável por sustentar esse senso estético ferozmente
resistente? Por que a sede robusta e transbordante pela vida nesse tempo morreu
subitamente, para ser substituída pela monotonia do que passa como tradição
japonesa e que atravessa os estilos posteriores? Essas perguntas são
precisamente os pontos importantes que devemos investigar. Naturalmente, a
tarefa que me propus é comparar as características contrastantes das cerâmicas jōmon
e yayoi e considerar as condições básicas que as governavam. Primeiro,
vamos considerar os estilos de vida de cada um.
O
período jōmon foi marcado
pela atividade de caça, enquanto o período yayoi se estabeleceu com a
atividade agrícola. Esses modos de produção, decisivamente, colorem cada visão
de mundo. Em uma sociedade de caça, a comida deve ser disputada. Rastreamento,
ataque e batalha são as bases de seu feitio. É extremamente feroz e dinâmica.
Quase todos os aspectos são brutais. Na caça, nem sempre se pode capturar a
presa desejada. Caçadas fracassadas representam um perigo para a vida, enquanto
grandes capturas são eventos alegres, verdadeiros festivais. Há mistério e
instabilidade sem fim. Os campos de caça não são fixos. Se não estiver
constantemente se movendo em busca de presas, a tribo não sobreviverá por muito
tempo. O movimento é uma exploração em um mundo desconhecido que se estende sem
fim. Os fracos morrem, apenas os fortes têm o direito de viver. Solidão e acaso
formam a base dessa visão de mundo.
Isso
nos dá um esboço do impacto decisivo que o modo de produção tem sobre dois
mundos diferentes. Agora, vamos examinar as formas e padrões do ponto de vista
da cerâmica. Lá, podemos ver claramente a expressão simbólica de ambos.
As
linhas de cume, que são a característica mais distintiva da cerâmica jomon,
se estendem vertical e horizontalmente, ferozes e espessas, com energia
pulsante e selvagem. Traçando a jornada dessas linhas, elas se emaranham e
depois se soltam, afundam no caos para reaparecer repentinamente e passam por
todo tipo de acidente. Elas retornam infinitamente apenas para irromper
novamente. Contrastado ao equilíbrio calmo que circunscreve os padrões da
cerâmica yayoi, é claramente a vida desventurada de um povo nômade.
Além
disso, um choque estranho pode ser causado por sua assimetria, que parece
tornar impossível ter plena confiança na forma como um todo. Ela é quebrada,
tem dinamismo. Sua expressão constantemente perfura quaisquer limites.
Começando com sua assimetria, o espectador percebe que deve andar ao redor da
peça inteira para vê-la corretamente. Mas, à medida que muda de perspectiva,
uma imagem que desafia a imaginação se desenrola.
Há
uma crista que parece se erguer sobre seus arredores. Seguindo a crista espessa
e arredondada com o olhar, ela sobe até onde pode sustentar antes de mergulhar
repentinamente em um redemoinho, enrolando-se confortavelmente duas ou três
vezes e então caindo ainda mais para baixo. Aí ela vira para cima novamente em
um ângulo inesperado, traçando um arco estranho enquanto rasteja de volta para
cima. Ela cava profunda e desequilibradamente em direção à superfície antes de
retornar calmamente ao seu curso.
Ao
longo da história da arte mundial, alguém já viu esse tipo de antiestética sem
sentido, uma estética que arranca a consciência do observador de suas raízes e
a subverte?
Os
vasos perturbam o observador até suas profundezas com sua aura, criando uma
ressonância simpática dentro de seus corpos. Eles têm uma força pulsante e
equilíbrio firme, sobre o qual uma sensibilidade estética típica nunca poderia
registrar. Acredito que a assimetria inflexível e o equilíbrio criado a partir
da dissonância ousada são questões sobre as quais podemos aprender mais com a
cerâmica jōmon.
Há
um fato ainda mais surpreendente que pude, efetivamente, descobrir depois de
interagir com os objetos do museu.
É
uma pena que não se possa ter a mesma sensação a partir de fotografias; a
maneira como os vasos lidam com o espaço é espantosa. É maravilhoso que no
paleolítico, com conhecimento e tecnologia tão imaturos, o espaço seja tão
habilmente, intensamente e perfeitamente apreendido.
Na
história da arte, a escultura sempre foi tratada como uma massa que ocupa um
certo espaço. Foi somente com as vanguardas do século XX, em especial, as
magníficas realizações dos escultores abstratos, que o espaço ao redor da
escultura foi finalmente incorporado e transformado em um elemento escultural.
Lipchitz, González, Giacometti e outros organizaram o espaço espetacularmente e
impulsionaram a escultura para novas dimensões. Comparada a essas obras de arte
de vanguarda, a cerâmica jōmon não apenas se
mantém na forma como lida com o espaço, mas é ainda mais extrema.
Como
podemos dar sentido a essa verdade maravilhosa? Não obstante, depois de pensar
sobre o assunto, percebi que, na verdade, não há acidentes.
O
sensório da era da caça deve ter sido organizado espacialmente. Identificar os
sinais da presa e apreender sua localização exata deve ter exigido um senso
extremamente aguçado do espaço tridimensional. Capturar uma presa exige
lançar-se de corpo e alma no espaço. Dessa forma, é natural que os povos caçadores
fossem equipados com uma afiada percepção espacial que ultrapassa nossa imaginação.
Sem ela, nunca teriam sido capazes de compreender o espaço de uma maneira tão
precisa e refinada.
Tendo
isso em mente, somos imediatamente lembrados das pinturas mais antigas do
mundo, as pinturas rupestres de Altamira, pintadas pelos Cro-Magnons da Europa.
[5] Podemos então entender a
tridimensionalidade convincente dessas pinturas, há muito consideradas um
mistério. A ideia de que a arte dos povos primitivos era leviana e simplória
porque eles tinham conhecimento e tecnologia limitadas não passa de uma
suposição completamente imprecisa das pessoas contemporâneas. A maneira como os
psicólogos da Gestalt Köhler e Katz mostraram, na Teoria da Constância Perceptual,
[6] que a apreensão do espaço não se
desenvolve com base no conhecimento e na experiência, no caso de recém-nascidos
e chimpanzés, também confirma minha ideia.
Vamos
comparar o período yayoi, cuja cultura tornou-se agrícola. Naquele
período, embora muito mais avançado tecnologicamente e controlado na forma, o
manuseio ousado do espaço desapareceu, e seu aspecto e padrão mostram-se
extremamente geométricos, estáticos e achatados. É um resultado natural da vida
dessas pessoas ao se estabelecerem e dividirem terras planas para cuidar.
Enquanto a sensibilidade bidimensional permanece, elas perdem a sensibilidade
tridimensional. Como as raízes gregas da geometria indicam, a etimologia parte
de medir (metry) e terra (geo). Nesse sentido, demonstram
habilidades técnicas elaboradas, mas a sensibilidade à tridimensionalidade e ao
espaço decai. Naquele tempo, a roda de oleiro já existia e a cerâmica começara
a ser produzida em massa, sendo o ceramista um ofício. Devemos manter essas
condições em mente, é claro, mas a planura e o formalismo simétrico que
surgiram na cerâmica yayoi deixaram uma marca decisiva na cultura
japonesa como o produto de uma sociedade agrícola feudal que continuou durante
o período medieval posterior.
Voltemos,
então, à cerâmica jōmon.
Tenho
enfatizado características espaciais. Mas a simples apreciação estética e
escultural de objetos tridimensionais também é uma noção contemporânea ingênua.
Não podemos entender essa cultura adequadamente a menos que atendamos ao
misticismo peculiar dessa cerâmica e nos esforcemos para considerar as
características quadridimensionais, que transcendem a realidade do nível da
superfície. É aí que a verdadeira face da cerâmica jōmon
surge mais vividamente.
O
fato de que, nas sociedades primitivas, tudo é religioso e mágico foi bem
estabelecido por sociólogos, começando com a escola de Durkheim. Como abordado
anteriormente, a vida dos caçadores está completamente à mercê do acaso. Para
construir convicção no funcionamento da vontade sobrenatural na mente
incivilizada, tudo é imbuído de um espírito que a controla. Magia é o que invoca
essas forças invisíveis.
Na
caça, por exemplo, capturar a presa não é, particularmente, uma operação
importante. O que é muito mais importante, por outro lado, é a cerimônia que a
precede. Os encantamentos que lançam magia sobre a presa para atraí-la para o
campo de caça. Se o encantamento não for bem-sucedido, a presa pode não ser
localizada ou as flechas podem errar o alvo. Todo e qualquer esforço equivale a
nada. Então, quando a caça não é bem-sucedida, eles imediatamente pensam que
foi porque alguém na tribo quebrou as regras do encantamento. A magia é fator
decisivo; é a caça em si. Encantamentos para encerrar a caça depois que ela
termina também são realizados. Eles aplacam a alma do animal que mataram e
evitam a vingança. Embora esse estilo primitivo de pensamento pareça ignorar as
leis de causa e efeito, ele persiste até hoje. Serviços memoriais como o Hari
Kuyō, [7] para
enguias e até para galinhas; vi no jornal esses dias.
A
vida material e mental é sustentada inteiramente pela religião primitiva. É
como na contemporaneidade, a concepção de belo é inteiramente governada pelo
modo de produção capitalista, só que lá ela tem significado religioso. Devemos
apreciá-la como uma ideologia profunda e inabalável que foi sustentada em todos
os sentidos, desde as óbvias figuras de barro dogū
[8] e tábuas de argila até os padrões e
designs de itens cotidianos, como potes. O fato de que o uso prático por si só
não era seu propósito principal fica claro em sua forma. No entanto, ao mesmo
tempo, é certo que os padrões complexos e misteriosos do estilo jōmon
não foram criados apenas por uma consciência estética da arte pela arte, como
no presente em que vivemos. Tal estilo é adornado com um significado ferozmente
religioso e mágico ou, para colocar de outra forma, apontar para uma quarta
dimensão.
Esse
mistério, no entanto, não necessariamente assume a mesma forma de mistério que
pensamos hoje. Em sociedades primitivas, os mundos visíveis e invisíveis não
são misticamente separados, mas são diretamente conectados, como Lévy-Bruhl
argumenta na Lei da Participação Mística. [9] É
um modo de pensamento pré-racional em que um ser humano pode acreditar que é,
ao mesmo tempo, um canguru, sem qualquer senso de contradição. O urso que é
caçado pode ser ao mesmo tempo uma pedra, uma figura de argila dogū,
um ser humano – ou mesmo uma entidade abstrata, não importa. O humano primitivo
não tem dúvidas sobre essas coisas. Para capturar o urso, trabalhar um
encantamento em uma pedra ou dogū faz funcionar. Em nosso pensamento, a
ideia do misterioso deve servir como um meio para um urso ser uma pedra. Mas
eles não tinham essa visão do misterioso. As coisas estavam conectadas
diretamente, sem um mediador. Para expandir a visão de mundo, os padrões da
cerâmica jōmon provavelmente
estavam muito mais concreta e realisticamente conectados a outras coisas das quais
nem imaginamos. A que estavam concretamente conectados e de que maneira estavam
é algo que não temos como perceber hoje.
Para
os caçadores, a presa é simultaneamente uma divindade e um espírito sagrado,
mas ao mesmo tempo, um rival em uma luta violenta, um inimigo. Ainda por cima,
é o sustento do qual vivem. A ausência da presa é imediatamente uma ameaça às
suas vidas. Eles matam uma divindade que não deveriam. E precisamente porque o
fazem, assumem-na divindade. Este princípio de contradição é a condição trágica
de sua existência. Como descrevi acima, eles não acreditam que podem caçar sem
um ritual religioso estrito, mas a razão para isso não é puramente utilitária.
É um ato solene empreendido para lidar com essa contradição.
Há
preocupação e perigo. Sua vitalidade robusta e primitiva os supera. Não conheço
nenhuma arte que exiba tão ricamente um aspecto tão feroz de pessoas que
suportaram e superaram o fato de serem dilaceradas por uma contradição ardente.
Colocado
dessa forma, alguém pode aludir a algo do drama humano moderno. Mas não é a
mesma coisa. Aquilo é completamente diferente da tragédia e dos problemas que
vivenciamos. Eles se conformavam muito mais diretamente com suas vidas reais e
eram ligados às coisas. Eles concordavam com as coisas. Repito, a robustez
primitiva e a riqueza do espírito foram percebidas por meio de negociações
duras e práticas com um mundo sobrenatural. O equilíbrio da vida entre a
natureza e os humanos é dinâmico e dialético. E está enterrado dentro de uma
estética estranha, pesada e extremamente feroz. É, de fato, um diálogo com a
quarta dimensão.
Agora
temos um diagnóstico da forma da cultura jōmon
e a visão de mundo que a sustenta. Mas esse não é meu objetivo final, pois o
que nos é mais urgente, o que é de suma importância é o que levamos dessas
obras de arte e o que surge da nossa relação com elas. Não importa quão
esplêndida a cerâmica jōmon possa ser, ela
é uma coisa do passado. Vivemos ainda mais ferozmente e corajosamente
enfrentando a realidade atual, e precisamos refletir sobre tudo isso, fazer
disso o cerne da arte.
Até
agora, não houve diálogo algum com a quarta dimensão. Assim como os do passado
negociaram com o mundo sobrenatural, também estamos envolvidos com problemas
urgentes que são invisíveis, mas somos pressionados por uma extrema realidade
prática. E isso não se resume à estética. Bombas nucleares explodem, dois
mundos se confrontam, estranhos pânicos econômicos ocorrem. E enquanto os
atribuímos a categorias de bom ou ruim, eles afetam nossas vidas com extrema
realidade prática, assim como os espíritos faziam nas sociedades primitivas. O
infortúnio da multidão dos dias de hoje, essa que clama a favor da arte pela
arte, só nos leva ao sequestro da arte. A estética otimista baseada apenas no
gosto e na preferência é o legado da era da manufatura, quando os artistas eram
artesãos, separados da realidade social real.
Na
realidade inescapável do nosso presente, aderir à consciência artística cai
muito no espiritualismo. Quase todos os artistas sobrevivem encobrindo sua
impotência e escondendo, de maneira desonesta, o quão perdidos se sentem.
Enquanto eles não se lançarem de peito aberto contra os dilemas invisíveis, mas
extremamente reais, permanecerão criticamente desamparados em relação à
realidade em que sua arte se insere. Mas não devemos mistificar essa
negociação. Isso seria decadência e corrupção.
Devemos
olhar a espiritualidade não espiritual da arte jōmon
nos olhos – uma espiritualidade extremamente material que correspondia
dinamicamente à realidade e não prometia nenhuma conveniência conceitual.
Devemos agarrar esse propósito sem propósito, esse significado sem sentido e
tomá-lo como nosso método.
Virem
seus olhos para olhar para o mundo amplo. Ou dê uma olhada em uma realidade
extremamente familiar, se preferir. A situação material ao seu redor terá
mudado completamente. O sentimentalismo desonesto, delicado e chapado e o formalismo
da dita “tradição japonesa” já se foram há muito tempo e não têm nenhuma
relação com a realidade. Os artistas do amanhã devem romper o impasse com a
sabedoria da força vital primitiva e, efetivamente, compreender o mundo de
forma realista.
NOTAS
Traduzido
diretamente do japonês por Daniel Aleixo. Todas as notas em seguida são do
tradutor.
1.
Estátuas e estatuetas de terracota marrom-avermelhado e ocas, datadas do
período kofun (300dC – 538 dC), que compreende o desenvolvimento do
budismo no Japão. Normalmente relacionadas a ritos fúnebres e proteção de
território.
2.
Aceitação das vicissitudes estéticas e a beleza encontrada nas coisas simples e
parcas.
3.
Austeridade e a beleza nas contenções.
4. O
período nara (710 dC – 794 dC), compreende a sistematização dos
privilégios imperiais e expansão agrária.
5. A
caverna de Altamira, localizada na Espanha, até o momento, é um dos sítios
arqueológicos mais importantes do mundo. As artes rupestres lá preservadas
datam do Paleolítico Superior ( 14.500 aC – 12.000 aC).
6.
Em resumo, trata-se de um conjunto de regras perceptivas que mantém a
integridade de um objeto, apesar de ele poder ser percebido de várias maneiras
diferentes, a depender da distância, luminosidade, angulação, etc. A Teoria da
Constância Perceptual é a camada de estabilidade que nos faz reconhecer aquilo
que nos cerca, apesar das variações de estado de presença.
7.
Festival japonês, comumente frequentado por mulheres, onde dedica-se um
memorial a todas as agulhas de costura quebradas em seu serviço durante o ano
anterior como uma oportunidade de orar por habilidades aprimoradas.
8.
Estatuetas humanoides de argila do período jōmon. Embora
não se saiba ao certo a sua funcionalidade, costuma-se associá-las a rituais
religiosos e de proteção contra doenças.
9.
Em resumo, situação onde o sujeito não pode se distingue do objeto, mas está
ligado a ele por uma relação direta e subjetiva que equivale a uma identidade
parcial.
DANIEL ALEIXO (Brasil, 1997). Ator, dançarino e pesquisador. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo (USP). Realizou intercâmbio universitário em Estudos Globais pela Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio (TUFS) e em Estudos de Documentos Não Escritos pela Universidade de Kanagawa (KU). É dançarino e pesquisador do Núcleo Experimental de Butô e da Fujima Ryu Escola de Dança Kabuki. Além disso, integra o Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) e o grupo Kinyōkai. Dentre as principais ações performáticas das quais já participou envolvendo a dança butô, estão: Transmarginais (2017), Vento Daruma (2018), Encanteria (2021-2022), Domina et Homunculus (2023) e Breu (2023). Em seu repertório de coreografias clássicas de kabuki buyō, estão: Yari Yakko (2018), Tomo Yakko (2019), Echigo Jishi (2020), Urashima Tarō (2022), Matsu (2023) e Kanda Matsuri (2024).
TARŌ OKAMOTO (Japão, 1911-1996). Filho do cartunista Ippei Okamoto e da escritora Kanoko Okamoto. Estudou na Sorbonne nos anos 1930 e criou muitas obras de arte, após a II Guerra Mundial. Foi um artista e escritor prolífico até sua morte. Entre os artistas com os quais Okamoto se associou durante a sua estadia em Paris estiveram André Breton e Kurt Seligmann, este último uma autoridade surrealista em magia e que conheceu os pais de Okamoto durante uma viagem ao Japão, em 1936. Okamoto também se associou com Pablo Picasso, Man Ray, Robert Capa e sua parceira, Gerda Tarō, que adotou o primeiro nome de Okamoto como seu próprio sobrenome. Em 1964, Tarō Okamoto publicou um livro intitulado Shinpi Nihon (Mistérios no Japão). Seu interesse em mistérios japoneses foi provocado por uma visita feita ao Museu Nacional de Tóquio. Depois de ficar intrigado com a cerâmica Jōmon que encontrou lá, ele viajou por todo o Japão para investigar o que entendia como o mistério que se encontra sob a cultura japonesa e, em seguida, publicou Nihon Sai hakken – Geijutsu Fudoki (Redescoberta do Japão – Topografia de Arte). Tarō Okamoto é o artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura, e sua presença entre nós se deu graças à generosidade do bailarino e tradutor Daniel Aleixo. Sugerimos visitar o Museu de Arte Tarō Okamoto: https://taro-okamoto.or.jp.
Agulha Revista de Cultura
Número 259 | janeiro de 2025
Artista convidado: Tarō Okamoto (Japão, 1911-1996)
Editores:
Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com
Elys Regina Zils | elysre@gmail.com
ARC Edições © 2025
∞ contatos
https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com
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