quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

TARŌ OKAMOTO | Sobre a cerâmica jōmon: um diálogo com a quarta dimensão

 

INTRODUÇÃO DO TRADUTOR, DANIEL ALEIXOO texto original foi publicado com o título Yojigen to no taiwa: Jōmon doki ron no 558° número da revista Aquarela (Mizue), em fevereiro de 1952. A presente tradução direta do idioma japonês foi realizada da versão reimpressa no livro Tradições do Japão (Nihon no dentō), de 2005.

Okamoto já havia morado na França, dos anos 1920 aos anos 1940, e teve contado com o movimento surrealista nas frentes bretoniana e batailleana. Para ele, as tendências de colecionismo e primitivismo dos franceses lhe eram familiares e foram fundamentais para elaborar textos reflexivos sobre a história da arte em seu próprio país.

Em 1951, Tarō Okamoto visitou uma exposição de vasos do Japão neolítico no Museu Nacional de Tóquio e se encantou com a desarmonia estética e com a total falta de compatibilidade com a graciosidade dos vasos, se comparados com os dos períodos posteriores, que definiram a tradição nipônica, mais polida e requintada. Por conta disso, considerou que havia um lapso temporal, um vazio entre a arte rústica primitiva e a arte formal clássica e concluiu que aquela arte interrompida, se tivesse continuado a se desenvolver, teria atingido a um padrão de arte próximo das vanguardas do Ocidente, como o Surrealismo, muito antes do século XX.

Quando falamos sobre Japão paleolítico e neolítico, aludimos diretamente ao período jōmon (14.000 aC - 1000 aC), que compreende do início da empreitada humana no arquipélago japonês à formação das sociedades nômades e sociedades de caça. Aqui, temos uma cerâmica mais rústica e ostensivamente ornamentada. Subsequente, temos período yayoi (1000 aC - 300 dC), que é demarcado pela consolidação das sociedades agrícolas no Japão, graças à domesticação do arroz, pela padronização da cerâmica e a criação da profissão de ceramista.

No texto que se segue, Okamoto equipara dois períodos distintos da história do Japão, jōmon e yayoi, em defesa da arte praticada pelos ancestrais nipônicos em detrimento das ambições vazias e cooptadas da contemporaneidade, tendo em vista o que ele considera a decadência do projeto moderno. Ele entende que a salvação para a arte de seu tempo está em resgatar a maneira como esses ancestrais lidavam com a espacialidade – quarta dimensão repercutida – e como a arte deles se correlacionava com o natural-sobrenatural/realidade-surrealidade.   



SOBRE A CERÂMICA JŌMON, TARŌ OKAMOTO |  As formas selvagens e tumultuadas da cerâmica jomon farão qualquer um que as encontre desprevenido prender a respiração. O tremendo poder da cerâmica feita em meados desse período, e sua total sofisticação, deixa qualquer um sem palavras.

Os padrões das linhas estriadas sobem, descem e rodopiam, sobrepondo-se e entrelaçando-se febrilmente. Uma sensação de tensão pressiona implacavelmente em abundância, mas há uma sensibilidade aguçada que é pura e lúcida. Há uma aura que deixa até mesmo a mim – e eu já sou alguém que argumenta que a essência da arte é sua intensidade sobrenatural – com vontade de esganiçar.

É o completo oposto do que é normalmente pensado como suave e elegante na tradição japonesa. Portanto, pode ser muito difícil para amadores e aficionados da tradição aceitá-la com equanimidade. Certamente, representa uma ruptura com esse conceito de beleza. Aquilo foi realmente criado por nossos ancestrais? Não se pode descartar completamente tais questões que surgem. Podemos facilmente ver a cerâmica no estilo yayoi e as haniwa [1] se conectando com uma suposta sensibilidade japonesa. A opinião geral parece ser a de que o estilo jōmon é algo totalmente estranho, que não pode ser imaginado como tendo uma conexão direta com a tradição japonesa.

Eu acredito que o senso estético do estilo jōmon, seu teor, complexidade e vitalidade quase indecorosa, era basicamente demais para o espírito do povo japonês contemporâneo lidar. Não poderíamos tolerá-lo. Nós o excluímos de nosso reino espiritual e, automaticamente, pensamos nele como estando além do âmbito de nossas tradições.

Certamente, da perspectiva da história cultural ou morfológica, há uma ruptura entre o estilo jōmon e o que veio depois dele. E o estilo, subsequente, denominado yayoi, tem uma linhagem que o conecta com o Japão contemporâneo. Mas pensar na tradição como sendo simplesmente uma sucessão analógica, e que o estilo jōmon que rompe com isso não tem, portanto, relação com a tradição, é muito mecanicista e ingênuo.

O que é a tradição de fato? Essa questão nos levará por um desvio, pois até que a entendamos claramente toda investigação, será um caminho sem propósito, não importa quão preciso seja; assim os japoneses contemporâneos nunca serão capazes de apreender a cultura do estilo jōmon com agência. Antes de entrar no argumento principal, gostaria de considerar brevemente este ponto.

O que pensamos como tradição não é algo fora de nós mesmos. É invariavelmente o Eu multiplicado pelo passado. Nós sempre nos colocamos como a sustentáculo e olhamos para o passado a partir daí. Nunca olhamos para as coisas honestamente. Nós as fazemos corresponder ao nosso temperamento, pegando apenas os aspectos que são convenientes para nós. Nosso empenho para justificar a posição em que nos encontramos funciona através de todo um esforço, que pode ser consciente ou inconscientemente. Eu não diria que isso é algo ruim. Na verdade, a tradição não é viável fora do Eu.

A tradição, em qualquer forma que possa assumir, é onde o Eu está em jogo a todo o momento. É a mais ativa motriz. Quanto mais afiado o Eu se torna, mais ele assume a aparência de ruptura, e a tradição é transmitida de forma mais tumultuada e com uma dialética mais rica. Porém, o tradicionalista padrão, geralmente, não se arrisca. Ele toma a tradição como ideia pré-estabelecida, pela qual se torna dependente e, portanto, perde seu Eu. Se comporta como se houvesse alguma autoridade na tradição, que se apresenta imóvel e imutável. Um grande estratagema ocorre aí. A verdade da tradição está em sua utilidade específica, em ação até mesmo entre os tradicionalistas, embora eles estejam completamente confusos sobre isso. Eles hasteiam a bandeira da tradição, mas a usam astutamente para lutar em reação contra aqueles que estão realmente empurrando a tradição para a frente. É exatamente o que vemos acontecer quando eles defendem um mundo de constructos de requinte como wabi-sabi, [2] shibumi, [3] entre outros sentimentos de resignação feudal e servil como tradição válida, enquanto se opõem, como filisteus, a novas tendências nas artes.

Para reforçar, a tradição não é simplesmente o passado, de forma alguma. Ela faz parte do presente. E não é inerte e imutável. Ao contrário, ela está sempre se transformando e não se consolida em nenhum momento. Enquanto não conseguirmos apreendê-la dinamicamente, não seremos capazes de trazê-la à vida ativamente e empurrá-la para frente.


Não há nada que nos obrigue a nos apegarmos a entendimentos ultrapassados ​​de tradição e pensar no estilo jōmon como estranho e sem relação conosco. Se foi feito ou não por nossos ancestrais diretos, isso não tem importância. É um completo absurdo acreditar que as relações consanguíneas são um fator decisivo simplesmente porque o pensamento e os costumes feudais as santificaram. Nosso sangue é um híbrido complexo, tornando impossível desejar algo como um ancestral direto.

Faríamos melhor se assumíssemos a vitalidade e franqueza primitivas, ou seja, a paixão básica possuída por todos os seres humanos, e usá-la para construir uma nova tradição que expresse ousadia e glória. Não é esse também precisamente o maior desafio da vanguarda japonesa?

Depois de viver por um longo tempo na Europa e me acostumar com as tradições duras e nada sentimentais que existem por lá, não pude deixar de me sentir desanimado com o fato de que, depois de voltar para casa, tudo que encontrei lacrado com o rótulo de cultura ou tradição era tão terrivelmente fraco e retraído. O sentimentalismo monótono e mesquinho do Japão moderno que não vale a pena mencionar. Mesmo a linda e magnífica arte budista nara, [4] que as pessoas consideram a maior antiguidade do nosso país, foi importada diretamente do continente asiático e instalada, e olhando para ela, sinto um gosto ruim, um ar de arrogância em uma cultura continental madura e decadente que era completamente inadequada para o estado rústico do Japão na época. Voltando mais atrás, há a cultura insular indolente e otimista da estética das haniwa. Eu me desesperei com a forma como pude ver isso totalmente refletido no formalismo do povo japonês contemporâneo. Fui assolado por um sentimento insuportável de aversão a mim mesmo enquanto ponderava sobre o difícil destino deixado ao país por esse otimismo pessimista. Mas depois de encontrar a cerâmica jōmon, senti-me revitalizado. Percebi que nosso país também tinha camadas profundamente ocultas de cultura que precisavam ser escavadas e com isso uma nova perspectiva sobre a tradição se abriu diante de mim. Não apenas em relação a uma etnia específica. Fui movido por um sentimento fundamental de fé na humanidade.

Mas é claro que ser simplesmente dominado pela aura japonesa hiper contemporânea da cultura jōmon não significa nada. Devemos torná-la nossa, avaliando-a de fato e investigando suas profundezas. Para ser claro, no entanto, tenho ainda menos intenção de dar um relato arqueológico. O estudo arqueológico empírico de artefatos de cerâmica em nosso país é incomparável no mundo todo por sua escrupulosidade. Mas ele se limita onde começa a compilação de classificações detalhadas baseadas em forma e técnica, sem ter os meios para rasgar sua substância por uma ampla perspectiva cultural ou sociológica. Parece torná-lo um objeto de curiosidade estranha, como uma típica dicionarização ambulante. Devemos buscar lampejos sobre a substância da cerâmica em si por meio da observação direta e confrontá-la às claras, sem nos prendermos ao estudo acadêmico.

Tendo isso em mente, a primeira coisa que notamos são as características hiper japonesas totalmente únicas dos padrões e formas as quais aludi antes. O que poderia ter sido responsável por sustentar esse senso estético ferozmente resistente? Por que a sede robusta e transbordante pela vida nesse tempo morreu subitamente, para ser substituída pela monotonia do que passa como tradição japonesa e que atravessa os estilos posteriores? Essas perguntas são precisamente os pontos importantes que devemos investigar. Naturalmente, a tarefa que me propus é comparar as características contrastantes das cerâmicas jōmon e yayoi e considerar as condições básicas que as governavam. Primeiro, vamos considerar os estilos de vida de cada um.

O período jōmon foi marcado pela atividade de caça, enquanto o período yayoi se estabeleceu com a atividade agrícola. Esses modos de produção, decisivamente, colorem cada visão de mundo. Em uma sociedade de caça, a comida deve ser disputada. Rastreamento, ataque e batalha são as bases de seu feitio. É extremamente feroz e dinâmica. Quase todos os aspectos são brutais. Na caça, nem sempre se pode capturar a presa desejada. Caçadas fracassadas representam um perigo para a vida, enquanto grandes capturas são eventos alegres, verdadeiros festivais. Há mistério e instabilidade sem fim. Os campos de caça não são fixos. Se não estiver constantemente se movendo em busca de presas, a tribo não sobreviverá por muito tempo. O movimento é uma exploração em um mundo desconhecido que se estende sem fim. Os fracos morrem, apenas os fortes têm o direito de viver. Solidão e acaso formam a base dessa visão de mundo.

Isso nos dá um esboço do impacto decisivo que o modo de produção tem sobre dois mundos diferentes. Agora, vamos examinar as formas e padrões do ponto de vista da cerâmica. Lá, podemos ver claramente a expressão simbólica de ambos.

As linhas de cume, que são a característica mais distintiva da cerâmica jomon, se estendem vertical e horizontalmente, ferozes e espessas, com energia pulsante e selvagem. Traçando a jornada dessas linhas, elas se emaranham e depois se soltam, afundam no caos para reaparecer repentinamente e passam por todo tipo de acidente. Elas retornam infinitamente apenas para irromper novamente. Contrastado ao equilíbrio calmo que circunscreve os padrões da cerâmica yayoi, é claramente a vida desventurada de um povo nômade.

Além disso, um choque estranho pode ser causado por sua assimetria, que parece tornar impossível ter plena confiança na forma como um todo. Ela é quebrada, tem dinamismo. Sua expressão constantemente perfura quaisquer limites. Começando com sua assimetria, o espectador percebe que deve andar ao redor da peça inteira para vê-la corretamente. Mas, à medida que muda de perspectiva, uma imagem que desafia a imaginação se desenrola.

Há uma crista que parece se erguer sobre seus arredores. Seguindo a crista espessa e arredondada com o olhar, ela sobe até onde pode sustentar antes de mergulhar repentinamente em um redemoinho, enrolando-se confortavelmente duas ou três vezes e então caindo ainda mais para baixo. Aí ela vira para cima novamente em um ângulo inesperado, traçando um arco estranho enquanto rasteja de volta para cima. Ela cava profunda e desequilibradamente em direção à superfície antes de retornar calmamente ao seu curso.

Ao longo da história da arte mundial, alguém já viu esse tipo de antiestética sem sentido, uma estética que arranca a consciência do observador de suas raízes e a subverte?


Tendo seguido até aqui, perco as palavras para descrever essa peça. Seguindo as linhas horizontais que se conectam a esse padrão de crista, de repente nos deparamos com uma decoração selvagem em forma de alça que pende com uma torção. Dado o tamanho e o peso do recipiente como um todo, é desproporcionalmente pequena para ser uma alça. No entanto, ela salta para fora com um tamanho que é completamente dissonante, como uma decoração simples. E parece haver uma silhueta estranha espreitando das lacunas entre as camadas. As protuberâncias ao longo da borda superior se sobrepõem de uma maneira estranha, fazendo-as parecer os chifres de um monstro.

Os vasos perturbam o observador até suas profundezas com sua aura, criando uma ressonância simpática dentro de seus corpos. Eles têm uma força pulsante e equilíbrio firme, sobre o qual uma sensibilidade estética típica nunca poderia registrar. Acredito que a assimetria inflexível e o equilíbrio criado a partir da dissonância ousada são questões sobre as quais podemos aprender mais com a cerâmica jōmon.

Há um fato ainda mais surpreendente que pude, efetivamente, descobrir depois de interagir com os objetos do museu.

É uma pena que não se possa ter a mesma sensação a partir de fotografias; a maneira como os vasos lidam com o espaço é espantosa. É maravilhoso que no paleolítico, com conhecimento e tecnologia tão imaturos, o espaço seja tão habilmente, intensamente e perfeitamente apreendido.

Na história da arte, a escultura sempre foi tratada como uma massa que ocupa um certo espaço. Foi somente com as vanguardas do século XX, em especial, as magníficas realizações dos escultores abstratos, que o espaço ao redor da escultura foi finalmente incorporado e transformado em um elemento escultural. Lipchitz, González, Giacometti e outros organizaram o espaço espetacularmente e impulsionaram a escultura para novas dimensões. Comparada a essas obras de arte de vanguarda, a cerâmica jōmon não apenas se mantém na forma como lida com o espaço, mas é ainda mais extrema.

Como podemos dar sentido a essa verdade maravilhosa? Não obstante, depois de pensar sobre o assunto, percebi que, na verdade, não há acidentes.

O sensório da era da caça deve ter sido organizado espacialmente. Identificar os sinais da presa e apreender sua localização exata deve ter exigido um senso extremamente aguçado do espaço tridimensional. Capturar uma presa exige lançar-se de corpo e alma no espaço. Dessa forma, é natural que os povos caçadores fossem equipados com uma afiada percepção espacial que ultrapassa nossa imaginação. Sem ela, nunca teriam sido capazes de compreender o espaço de uma maneira tão precisa e refinada.

Tendo isso em mente, somos imediatamente lembrados das pinturas mais antigas do mundo, as pinturas rupestres de Altamira, pintadas pelos Cro-Magnons da Europa. [5] Podemos então entender a tridimensionalidade convincente dessas pinturas, há muito consideradas um mistério. A ideia de que a arte dos povos primitivos era leviana e simplória porque eles tinham conhecimento e tecnologia limitadas não passa de uma suposição completamente imprecisa das pessoas contemporâneas. A maneira como os psicólogos da Gestalt Köhler e Katz mostraram, na Teoria da Constância Perceptual, [6] que a apreensão do espaço não se desenvolve com base no conhecimento e na experiência, no caso de recém-nascidos e chimpanzés, também confirma minha ideia.

Vamos comparar o período yayoi, cuja cultura tornou-se agrícola. Naquele período, embora muito mais avançado tecnologicamente e controlado na forma, o manuseio ousado do espaço desapareceu, e seu aspecto e padrão mostram-se extremamente geométricos, estáticos e achatados. É um resultado natural da vida dessas pessoas ao se estabelecerem e dividirem terras planas para cuidar. Enquanto a sensibilidade bidimensional permanece, elas perdem a sensibilidade tridimensional. Como as raízes gregas da geometria indicam, a etimologia parte de medir (metry) e terra (geo). Nesse sentido, demonstram habilidades técnicas elaboradas, mas a sensibilidade à tridimensionalidade e ao espaço decai. Naquele tempo, a roda de oleiro já existia e a cerâmica começara a ser produzida em massa, sendo o ceramista um ofício. Devemos manter essas condições em mente, é claro, mas a planura e o formalismo simétrico que surgiram na cerâmica yayoi deixaram uma marca decisiva na cultura japonesa como o produto de uma sociedade agrícola feudal que continuou durante o período medieval posterior.

Voltemos, então, à cerâmica jōmon.

Tenho enfatizado características espaciais. Mas a simples apreciação estética e escultural de objetos tridimensionais também é uma noção contemporânea ingênua. Não podemos entender essa cultura adequadamente a menos que atendamos ao misticismo peculiar dessa cerâmica e nos esforcemos para considerar as características quadridimensionais, que transcendem a realidade do nível da superfície. É aí que a verdadeira face da cerâmica jōmon surge mais vividamente.

O fato de que, nas sociedades primitivas, tudo é religioso e mágico foi bem estabelecido por sociólogos, começando com a escola de Durkheim. Como abordado anteriormente, a vida dos caçadores está completamente à mercê do acaso. Para construir convicção no funcionamento da vontade sobrenatural na mente incivilizada, tudo é imbuído de um espírito que a controla. Magia é o que invoca essas forças invisíveis.

Na caça, por exemplo, capturar a presa não é, particularmente, uma operação importante. O que é muito mais importante, por outro lado, é a cerimônia que a precede. Os encantamentos que lançam magia sobre a presa para atraí-la para o campo de caça. Se o encantamento não for bem-sucedido, a presa pode não ser localizada ou as flechas podem errar o alvo. Todo e qualquer esforço equivale a nada. Então, quando a caça não é bem-sucedida, eles imediatamente pensam que foi porque alguém na tribo quebrou as regras do encantamento. A magia é fator decisivo; é a caça em si. Encantamentos para encerrar a caça depois que ela termina também são realizados. Eles aplacam a alma do animal que mataram e evitam a vingança. Embora esse estilo primitivo de pensamento pareça ignorar as leis de causa e efeito, ele persiste até hoje. Serviços memoriais como o Hari Kuyō, [7] para enguias e até para galinhas; vi no jornal esses dias.

A vida material e mental é sustentada inteiramente pela religião primitiva. É como na contemporaneidade, a concepção de belo é inteiramente governada pelo modo de produção capitalista, só que lá ela tem significado religioso. Devemos apreciá-la como uma ideologia profunda e inabalável que foi sustentada em todos os sentidos, desde as óbvias figuras de barro dogū [8] e tábuas de argila até os padrões e designs de itens cotidianos, como potes. O fato de que o uso prático por si só não era seu propósito principal fica claro em sua forma. No entanto, ao mesmo tempo, é certo que os padrões complexos e misteriosos do estilo jōmon não foram criados apenas por uma consciência estética da arte pela arte, como no presente em que vivemos. Tal estilo é adornado com um significado ferozmente religioso e mágico ou, para colocar de outra forma, apontar para uma quarta dimensão.

Esse mistério, no entanto, não necessariamente assume a mesma forma de mistério que pensamos hoje. Em sociedades primitivas, os mundos visíveis e invisíveis não são misticamente separados, mas são diretamente conectados, como Lévy-Bruhl argumenta na Lei da Participação Mística. [9] É um modo de pensamento pré-racional em que um ser humano pode acreditar que é, ao mesmo tempo, um canguru, sem qualquer senso de contradição. O urso que é caçado pode ser ao mesmo tempo uma pedra, uma figura de argila dogū, um ser humano – ou mesmo uma entidade abstrata, não importa. O humano primitivo não tem dúvidas sobre essas coisas. Para capturar o urso, trabalhar um encantamento em uma pedra ou dogū faz funcionar. Em nosso pensamento, a ideia do misterioso deve servir como um meio para um urso ser uma pedra. Mas eles não tinham essa visão do misterioso. As coisas estavam conectadas diretamente, sem um mediador. Para expandir a visão de mundo, os padrões da cerâmica jōmon provavelmente estavam muito mais concreta e realisticamente conectados a outras coisas das quais nem imaginamos. A que estavam concretamente conectados e de que maneira estavam é algo que não temos como perceber hoje.


Contudo, podemos claramente encontrar o momento espiritual na raiz de sua sensibilidade estética feroz, resistente e misteriosa. É a ambivalência, o espírito trágico e composto, imanente ao modo de vida do caçador.

Para os caçadores, a presa é simultaneamente uma divindade e um espírito sagrado, mas ao mesmo tempo, um rival em uma luta violenta, um inimigo. Ainda por cima, é o sustento do qual vivem. A ausência da presa é imediatamente uma ameaça às suas vidas. Eles matam uma divindade que não deveriam. E precisamente porque o fazem, assumem-na divindade. Este princípio de contradição é a condição trágica de sua existência. Como descrevi acima, eles não acreditam que podem caçar sem um ritual religioso estrito, mas a razão para isso não é puramente utilitária. É um ato solene empreendido para lidar com essa contradição.

Há preocupação e perigo. Sua vitalidade robusta e primitiva os supera. Não conheço nenhuma arte que exiba tão ricamente um aspecto tão feroz de pessoas que suportaram e superaram o fato de serem dilaceradas por uma contradição ardente.

Colocado dessa forma, alguém pode aludir a algo do drama humano moderno. Mas não é a mesma coisa. Aquilo é completamente diferente da tragédia e dos problemas que vivenciamos. Eles se conformavam muito mais diretamente com suas vidas reais e eram ligados às coisas. Eles concordavam com as coisas. Repito, a robustez primitiva e a riqueza do espírito foram percebidas por meio de negociações duras e práticas com um mundo sobrenatural. O equilíbrio da vida entre a natureza e os humanos é dinâmico e dialético. E está enterrado dentro de uma estética estranha, pesada e extremamente feroz. É, de fato, um diálogo com a quarta dimensão.

Agora temos um diagnóstico da forma da cultura jōmon e a visão de mundo que a sustenta. Mas esse não é meu objetivo final, pois o que nos é mais urgente, o que é de suma importância é o que levamos dessas obras de arte e o que surge da nossa relação com elas. Não importa quão esplêndida a cerâmica jōmon possa ser, ela é uma coisa do passado. Vivemos ainda mais ferozmente e corajosamente enfrentando a realidade atual, e precisamos refletir sobre tudo isso, fazer disso o cerne da arte.

Até agora, não houve diálogo algum com a quarta dimensão. Assim como os do passado negociaram com o mundo sobrenatural, também estamos envolvidos com problemas urgentes que são invisíveis, mas somos pressionados por uma extrema realidade prática. E isso não se resume à estética. Bombas nucleares explodem, dois mundos se confrontam, estranhos pânicos econômicos ocorrem. E enquanto os atribuímos a categorias de bom ou ruim, eles afetam nossas vidas com extrema realidade prática, assim como os espíritos faziam nas sociedades primitivas. O infortúnio da multidão dos dias de hoje, essa que clama a favor da arte pela arte, só nos leva ao sequestro da arte. A estética otimista baseada apenas no gosto e na preferência é o legado da era da manufatura, quando os artistas eram artesãos, separados da realidade social real.

Na realidade inescapável do nosso presente, aderir à consciência artística cai muito no espiritualismo. Quase todos os artistas sobrevivem encobrindo sua impotência e escondendo, de maneira desonesta, o quão perdidos se sentem. Enquanto eles não se lançarem de peito aberto contra os dilemas invisíveis, mas extremamente reais, permanecerão criticamente desamparados em relação à realidade em que sua arte se insere. Mas não devemos mistificar essa negociação. Isso seria decadência e corrupção.

Devemos olhar a espiritualidade não espiritual da arte jōmon nos olhos – uma espiritualidade extremamente material que correspondia dinamicamente à realidade e não prometia nenhuma conveniência conceitual. Devemos agarrar esse propósito sem propósito, esse significado sem sentido e tomá-lo como nosso método.

Virem seus olhos para olhar para o mundo amplo. Ou dê uma olhada em uma realidade extremamente familiar, se preferir. A situação material ao seu redor terá mudado completamente. O sentimentalismo desonesto, delicado e chapado e o formalismo da dita “tradição japonesa” já se foram há muito tempo e não têm nenhuma relação com a realidade. Os artistas do amanhã devem romper o impasse com a sabedoria da força vital primitiva e, efetivamente, compreender o mundo de forma realista.

 

NOTAS

Traduzido diretamente do japonês por Daniel Aleixo. Todas as notas em seguida são do tradutor.

1. Estátuas e estatuetas de terracota marrom-avermelhado e ocas, datadas do período kofun (300dC – 538 dC), que compreende o desenvolvimento do budismo no Japão. Normalmente relacionadas a ritos fúnebres e proteção de território.

2. Aceitação das vicissitudes estéticas e a beleza encontrada nas coisas simples e parcas.

3. Austeridade e a beleza nas contenções.

4. O período nara (710 dC – 794 dC), compreende a sistematização dos privilégios imperiais e expansão agrária.

5. A caverna de Altamira, localizada na Espanha, até o momento, é um dos sítios arqueológicos mais importantes do mundo. As artes rupestres lá preservadas datam do Paleolítico Superior ( 14.500 aC – 12.000 aC).

6. Em resumo, trata-se de um conjunto de regras perceptivas que mantém a integridade de um objeto, apesar de ele poder ser percebido de várias maneiras diferentes, a depender da distância, luminosidade, angulação, etc. A Teoria da Constância Perceptual é a camada de estabilidade que nos faz reconhecer aquilo que nos cerca, apesar das variações de estado de presença.

7. Festival japonês, comumente frequentado por mulheres, onde dedica-se um memorial a todas as agulhas de costura quebradas em seu serviço durante o ano anterior como uma oportunidade de orar por habilidades aprimoradas.

8. Estatuetas humanoides de argila do período jōmon. Embora não se saiba ao certo a sua funcionalidade, costuma-se associá-las a rituais religiosos e de proteção contra doenças.

9. Em resumo, situação onde o sujeito não pode se distingue do objeto, mas está ligado a ele por uma relação direta e subjetiva que equivale a uma identidade parcial.




DANIEL ALEIXO (Brasil, 1997). Ator, dançarino e pesquisador. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo (USP). Realizou intercâmbio universitário em Estudos Globais pela Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio (TUFS) e em Estudos de Documentos Não Escritos pela Universidade de Kanagawa (KU). É dançarino e pesquisador do Núcleo Experimental de Butô e da Fujima Ryu Escola de Dança Kabuki. Além disso, integra o Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) e o grupo Kinyōkai. Dentre as principais ações performáticas das quais já participou envolvendo a dança butô, estão: Transmarginais (2017), Vento Daruma (2018), Encanteria (2021-2022), Domina et Homunculus (2023) e Breu (2023). Em seu repertório de coreografias clássicas de kabuki buyō, estão: Yari Yakko (2018), Tomo Yakko (2019), Echigo Jishi (2020), Urashima Tarō (2022), Matsu (2023) e Kanda Matsuri (2024).




TARŌ OKAMOTO (Japão, 1911-1996). Filho do cartunista Ippei Okamoto e da escritora Kanoko Okamoto. Estudou na Sorbonne nos anos 1930 e criou muitas obras de arte, após a II Guerra Mundial. Foi um artista e escritor prolífico até sua morte. Entre os artistas com os quais Okamoto se associou durante a sua estadia em Paris estiveram André Breton e Kurt Seligmann, este último uma autoridade surrealista em magia e que conheceu os pais de Okamoto durante uma viagem ao Japão, em 1936. Okamoto também se associou com Pablo Picasso, Man Ray, Robert Capa e sua parceira, Gerda Tarō, que adotou o primeiro nome de Okamoto como seu próprio sobrenome. Em 1964, Tarō Okamoto publicou um livro intitulado Shinpi Nihon (Mistérios no Japão). Seu interesse em mistérios japoneses foi provocado por uma visita feita ao Museu Nacional de Tóquio. Depois de ficar intrigado com a cerâmica Jōmon que encontrou lá, ele viajou por todo o Japão para investigar o que entendia como o mistério que se encontra sob a cultura japonesa e, em seguida, publicou Nihon Sai hakkenGeijutsu Fudoki (Redescoberta do JapãoTopografia de Arte). Tarō Okamoto é o artista convidado desta edição de Agulha Revista de Cultura, e sua presença entre nós se deu graças à generosidade do bailarino e tradutor Daniel Aleixo. Sugerimos visitar o Museu de Arte Tarō Okamoto: https://taro-okamoto.or.jp.



Agulha Revista de Cultura

Número 259 | janeiro de 2025

Artista convidado: Tarō Okamoto  (Japão, 1911-1996)

Editores:

Floriano Martins | floriano.agulha@gmail.com

Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2025


∞ contatos

https://www.instagram.com/agulharevistadecultura/

http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

ELYS REGINA ZILS | elysre@gmail.com

 





  

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário