segunda-feira, 24 de novembro de 2014

CLAUDIO WILLER | Sobre surrealismo e filosofia






Não sou filósofo e falo como poeta ao comentar alguns tópicos da filosofia que podem ser destacados no surrealismo. Começo por aquele do sujeito. E por esta frase de André Breton, de seu prefácio de 1962 para Nadja, sua narrativa de maior repercussão e circulação, de 1928: “Subjetividade e objetividade travam, ao longo de uma vida humana, uma série de combates, nos quais a primeira costuma sair-se inteiramente mal”. [1] A frase me persegue: ultimamente; lembro-me dela a toda hora e já iniciei outro texto (um comentário sobre Raymond Roussel) citando-a.
Relaciono-a a uma passagem de Baudelaire em um texto de 1859, inacabado e publicado postumamente, A Arte Filosófica: “O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista”. [2] Vê-se, nesse e em outros de seus enunciados, o leitor de Hegel e da filosofia romântica. Há um equívoco a propósito do poeta, atribuindo-lhe ignorância de filosofia. Ao tratar da superação da contradição de sujeito e objeto, sabia do que estava falando.
Sujeito e subjetividade são, me parece, categorias filosóficas modernas, historicamente recentes. Nos clássicos e antigos, encontramos o “eu”; em neo-platônicos, gnósticos e místicos, um “eu” falso, circunstancial, lugar de percepções ilusórias, contraposto a outro verdadeiro, de natureza divina. O sujeito ganha vulto com a crítica filosófica dos séculos XVII a XVIII; mais precisamente, a crítica a Descartes empreendida por Locke, em seguida por Berkeley e Hume; nesses, mostrando como a relação entre o percebido e o real, o “esse” e “percipi”, nada tem de pacífico. E com o “eu” absoluto de Fichte; ou seja, o real exterior como função do sujeito. Foi o que Novalis sintetizou, em um de seus fragmentos: “O que é a natureza? Um índice enciclopédico sistemático ou plano do nosso espírito”. E, ainda: “O mundo é um tropo universal do espírito – seu retrato simbólico”. Repetindo os místicos, proclamou que conhecer o “eu” é conhecer o universo: “Uma pessoa conseguiu – levantou o véu da deusa de Saïs – Mas o que viu? viu – milagre dos milagres – a si mesmo”. [3]
Novalis tratou do “espírito”; não do sujeito. Contudo, justifica a observação de Margaret Mahony Stoljar, organizadora de Philosophical Writings, sobre a “rejeição de uma noção de verdade extrínseca”, exterior ao sujeito. O poeta-filósofo “propõe um modelo auto-referente para a filosofia, que não procura explicar o mundo, porém, antes, explicar-se a si mesma”.
Breton foi um continuador da geração romântica alemã, dos poetas-filósofos, incluindo Schelling, Novalis, os irmãos Schlegel, Tiek, acrescidos de Achim Von Arnim, pelo qual manifestou especial admiração. A observar, como um dos componentes da sua contribuição, o elogio à atração daqueles românticos por uma paraciência ou pseudociência, incluindo os postulados da origem aquática do planeta e do magnetismo animal, e assim incorporando esoterismo e magia. Justamente, algo tão criticado no romantismo por outros autores. Breton tomou partido no confronto entre filosofia da natureza e ciências naturais; na verdade, como detalharei a seguir, entre logos e mythos. O que lhe parecesse restauração do mundo mítico, era a favor.
Já se falou em poetas-filósofos a propósito do romantismo alemão; em poetas-pensadores e poetas-críticos a propósito de Baudelaire, T. S. Eliot e Ezra Pound. Essas designações se aplicam a Breton, especialmente, e a outros surrealistas. Dimensão importante da produção surrealista, o debate político: um debate passional e pendular, de aproximações e afastamentos, adesões e rupturas. Tal politização, marcada pela adesão ao pensamento de Marx, é, não obstante, conseqüência de um projeto fundamentalmente romântico, de confundir poesia e vida; e mais, de romper barreiras entre a esfera simbólica e das coisas; de superar a contradição entre sujeito e o objeto.
É o programa político resumido nesta frase de Novalis: “O mundo deve ser tornado romântico”Ou por Friedrich Schlegel, seu companheiro no grupo de Jena:

“A poesia romântica não é só uma filosofia universal, progressista. Seu fim não consiste apenas em reunir todas as formas de poesia e restabelecer a comunicação entre poesia, filosofia e retórica. Também deve misturar e fundir poesia e prosa, inspiração e crítica, poesia natural e poesia artificial, vivificar e socializar a poesia, tornar poética a vida e a sociedade, poetizar o espírito, encher e saturar as formas artísticas de uma substância própria e diversa, e animar o todo com a ironia.” [4]

Nenhuma dessas sínteses seria rejeitada por um surrealista. Por isso, concordo com a caracterização, por Jacqueline Chénieux-Gendron, do surrealismo como “pensamento totalizante” [5] – e até, permito-me afirmar, de um holismo, assim como aquele dos românticos, dos polímatas renascentistas e iluministas que tiveram a ambição de alcançar o conhecimento total. É o que diz Sarane Alexandrian, em um livro sobremodo recomendável, Le Surréalisme et Le Rêve: “O surrealismo não é uma escola, como o romantismo ou o simbolismo, mas um método sempre viável, como a psicanálise”. [6] Caracterizá-lo como método necessariamente acrescenta um debate epistemológico àquele de uma poética.
A continuidade de surrealismo e romantismo foi proclamada por Breton; de modo enfático, no Segundo Manifesto do Surrealismo:

“Mas, no momento em que os poderes constituídos em França grotescamente se preparam para celebrar com festas o centenário do romantismo, nós, pelo que nos respeita, dizemos que esse romantismo, do qual estamos prontos a passar, hoje em dia, por causa, desde que causa em alto grau preênsil, [7] por sua própria essência, em 1930, reside inteiramente na negação desses poderes e dessas festas; que, para ele, cem anos de existência equivalem à sua juventude, que a sua chamada época heróica já não pode ser honestamente considerada mais que o vagido de um ser que mal começou, por nosso intermédio, a dar a conhecer seu desejo; e que, a admitirmos que o que antes dele foi pensado - “classicamente” - era o bem, quer, sem sombra de dúvida, todo o mal.” [8]

Como se vê, dialetizou o romantismo: interpretou-o como manifestação ou expressão da negatividade, da destruição criadora, antecipando o que Octavio Paz, em Os filhos do barro, designaria como “tradição da ruptura”. Nessa perspectiva, deixa de ser mais um período da história da literatura e artes, do final do século XVIII até meados do XIX. Passa a ser uma rebelião que se renova ao prosseguir, da qual o surrealista se declarou porta-voz e continuador.


Há retomada de programas românticos em Breton, como ao final de Arcano 17, [9] em favor da “única revolta criadora de luz” – com a referência explícita a Lúcifer, atualizando o satanismo romântico – que “só pode passar por três vias: a poesia, a liberdade e o amor”. As três vias, prossegue, “devem inspirar o mesmo zelo e convergir para traçar o próprio perfil da eterna juventude, no ponto menos descoberto e mais iluminante do coração humano”.
O mesmo vale para outra de suas frases famosas: “’Transformar o mundo’, disse Marx; ‘mudar a vida’, disse Rimbaud: para nós, estas duas palavras de ordem não são mais que uma só.” [10] É a busca da unidade proclamada no Segundo Manifesto do Surrealismo, ao denunciar “as velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda agitação insólita por parte do homem” e afirmar que: “Tudo indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios”.
Muito já foi escrito sobre esse “ponto do espírito”; inclusive as interpretações esotéricas em André Breton et les données fondamentales du surréalisme, de Michel Carrouges. [11] Mas penso que, em acréscimo, pode ser feita a identificação à “arte filosófica” de Baudelaire, bem como ao “espírito”, tal como aparece em Hegel – diga-se de passagem, contrariando o marxismo tão enfaticamente afirmado nesse manifesto, ao introduzir uma categoria tipicamente metafísica.
Breton foi um romântico que incorporou contribuições subseqüentes. A de Hegel, refinando a categoria “sujeito” e incorporando a negação, entendida como destruição criadora; de Marx; e de Freud, que promoveu um novo ataque ao “cogito” cartesiano.
Minha intenção é mostrar respostas de Breton à questão do sujeito; do antagonismo ou contradição de subjetividade e objetividade; e sua tentativa de superar essa contradição através de uma poética do delírio e da alucinação. Para tal, citarei algumas de suas obras. Em primeiro lugar, em uma série não-cronológica, O amor louco, de 1937. [12] Como etapa de uma viagem a lugares onde havia manifestações surrealistas, Breton e Jacqueline Lamba, por quem se apaixonara e com quem se havia casado, chegam às Ilhas Canárias em abril de 1935. Lá, “em plena natureza reconciliada”, possuído pelo “delírio da presença absoluta”, vê no Pico de Teide, ponto culminante da ilha de Orotava, seu Jardim do Éden. Tem uma experiência de encontro do macrocosmo e microcosmo: “o contato involuntário com um só ramo de sensitiva é o bastante para agitar, tanto fora quanto dentro de nós, o prado inteiro”. Transcreve a “música sobreposta aos nossos passos” sobre praias de areia branca e de areia negra, passando por matizes e gradações da água do mar, por uma vegetação de figueiras de raízes que mergulham na pré-história, sempre-vivas com folhas refletindo a Unidade, eufórbias e pitangas, cactos de muitas formas. Aparentemente, abdicava de sua postura anti-realista, contrária à descrição. Mas o lugar é concretização do sonho, surrealidade realizada.
As flores de Orotava ocupam tudo, até que os amantes se confundam com elas: “A um sinal, que, por maravilha, tarda a aparecer, irei juntar-me a ti no seio da flor fascinante e fatal”. No interior da flor, “no seio da oblíqua claridade”, experimenta a plenitude: “a suficiência total que, naturalmente, reina entre dois seres que se amam, deixa de enfrentar, neste momento, o mínimo obstáculo”. Dentro da flor e dentro da nuvem: “do puro informe: quando Orotava desapareceu, foi-se perdendo pouco a pouco sobre nossas cabeças, até acabar por ser tragada; ou então fomos nós que, a esses mil e quinhentos metros de altitude, fomos de repente sorvidos por alguma nuvem”.
Nuvens são o lugar do encontro do desejo e da realidade: “levantar os olhos daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, é a melhor forma de interrogar nossos mais íntimos desejos”. Assim –e aqui grifo – “toda a questão da passagem da subjetividade à objetividade se encontra aqui implicitamente solucionada”. Comenta que Leonardo da Vinci pedia a seus alunos que olhassem as manchas em uma parede e copiassem as formas que viam desenhar-se nelas. Nuvens de Orotava ou manchas na parede são telas em que se projetam imagens: “O homem só poderá ser senhor dos seus atos no dia em que, como o pintor, aceitar reproduzir, com a máxima fidelidade, aquilo que uma tela apropriada tiver sabido mostrar antecipadamente a esses mesmos atos. Ora, essa tela existe. Qualquer existência comporta um todo homogêneo de fatos aparentemente escalavrados e nebulosos, que bastaria encararmos mais fixamente para que eles nos desvendassem o futuro.”
Ainda cita Baudelaire, que, no poema “A Viagem”, final da primeira versão de As Flores do Mal, também associou nuvens ao desejo e ao acaso: “As maiores regiões, a mais pujante aldeia,/ Não continham jamais os encantos secretos/ Dessas que o acaso com as nuvens delineia./ E eis que o desejo nos fazia mais inquietos! [13]
Traz para o relato o acaso objetivo, categoria que havia criado em um livro precedente, Les vases communicants: “Uma vez vencidos todos os princípios lógicos, virão então a nosso encontro – se tiver valido a pena interrogá-las – as forças do acaso objetivo, que nada querem saber de verossimilhanças. Tudo o que o homem pretende saber se encontra escrito nessa tela em letras fosforescentes, em letras de desejo. [14] […] Onde poderei eu estar melhor que no seio de uma nuvem, para adorar o desejo, único impulsionador do mundo, o desejo, único rigor que o homem deve se impor?” Às categorias do sujeito e objeto é acrescentado um terceiro termo: o desejo. Freud e a psicanálise, portanto, adicionados à reflexão filosófica.
Vejam como é simples resolver dialeticamente a contradição de subjetividade e objetividade, mantendo os dois termos. Basta olhar para as nuvens, realizando essa metáfora imemorial da poesia. Mas com o apoio de uma experiência do sublime, de encantamento amoroso, e em um lugar como o topo do Pico de Teide. Não obstante, essa experiência, a projeção da subjetividade nos objetos, tenho-a recomendado em cursos de surrealismo. Veremos sempre a nuvem, algo fisicamente objetivo, exterior– e montanhas, animais, fisionomias, corpos, assombrações, astronaves; tudo aquilo que se enxerga ao contemplar nuvens.
Mas quem vê formas em nuvens? O desocupado, que não tiver outras coisas para fazer. Quem não rumar apressadamente para algum compromisso ou estiver mergulhado no trabalho; quem se encontrar em estado de disponibilidade. Essa é outra categoria fundamental no surrealismo, erigida em valor desde “La conféssion dédaigneuse”, proto-manifesto de 1921, texto de abertura de Les pas perdus, sua primeira coletânea de textos. [15] Um dos modos da disponibilidade: a flânerie baudelairiana, a errância, a caminhada ao acaso, tão bem interpretada por Walter Benjamin – em outra ocasião, cheguei a comentar que Benjamin, a meu ver, entendeu mais de surrealismo que o próprio Breton; e a lamentar que surrealistas não o houvessem achado naquela época – o movimento teria ganho em substância.
Familiarizados com psicologia observarão que ver coisas nas nuvens se assemelha a um teste projetivo conhecidíssimo, o Teste de Rorschach. E não só. Pierre Mabille, importante pensador do surrealismo, autor deLe Miroir du Merveilleux, [16] também criou um teste projetivo, o “Test du village”, reconhecido e que continua a ser aplicado. Mabille foi tipicamente holista, da espécie mais consistente; um polímata, realizando o ideal do conhecimento total, e não só de conhecer tudo: médico, antropólogo, psicólogo, esoterista, historiador, artista plástico, chegou a estudar a língua suméria para avançar em seus estudos. Empreendeu “uma longa viagem orientada rumo à conquista de um reino maravilhoso”, afirmou Breton.
Le Miroir du Merveilleux, coletânea de relatos tribais, livros sagrados de diversos povos, lendas de várias épocas, trechos de literatura desde os clássicos aos contemporâneos, mostra a transversalidade ou trans-historicidade do maravilhoso. Retoma e refina essa categoria surrealista, proclamada por Breton no primeiro Manifesto do Surrealismo: “Digamo-lo claramente, e de uma vez por todas: o maravilhoso é sempre belo, qualquer tipo de maravilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo”. Isso foi reiterado por Breton no prefácio para o livro de Mabille e no artigo intitulado “Le merveilleux contre le mysthère”. [17]
Para os românticos, o lugar da solução das antinomias e superação da contradição de subjetividade e objetividade seria o espírito; e também para Breton no trecho já citado, sobre o “ponto do espírito”. Para Hegel, o absoluto. Para o surrealismo, o maravilhoso – e assim esse termo da linguagem corrente adquire peso filosófico.
Há mais exemplos de encontros de subjetividade e objetividade em Breton. Em “Le méssage automatique”, [18] de 1933, examina, como anuncia no título, um dos tópicos mais controversos associados ao surrealismo, a escrita automática. É, por ser desenfreadamente visionário, um de seus artigos que mais aprecio. Trata de alucinações, visões e fenômenos correlatos. Começa por mencionar cientistas: Herschel, o astrônomo, e seu relato de “produção involuntária de imagens visuais”. Watt, inventor da máquina a vapor, que, “em um quarto escuro, contempla a futura, a próxima máquina a vapor”. Para Breton, “O que ainda não é, será”; pois, “No interior de uma simples bola de cristal, como aquela que utilizam os videntes”, alguns, desde que “se mantenham em um estado de passividade mental”, ou seja, de disponibilidade, enxergarão objetos perturbadores, cenas a se desenrolar etc. A lágrima, para o surrealista, é “essa obra-prima da cristaloscopia” – justamente por embaçar a visão. Na página em branco, “tudo já está escrito”. A criação literária equivale à revelação fotográfica, mostrando o que já está na página. Comenta, antecipando O amor louco, Leonardo da Vinci e as manchas na parede. Celebra Charcot, por haver originado “esse magnífico debate sobre a histeria”, e Schrenck-Notzing por haver chamado a atenção em 1889 para “o valor artístico dos movimentos de expressão da histeria e da hipnose”. Chega ao que William James denominou “psicologia gótica”, a propósito de Myers e Flournoy, iniciadores da parapsicologia.
Mostra a diferença entre as manifestações de mediunidade, estudadas por Myers e Flournoy, e a escrita automática: “Ao contrário do que propõe o espiritismo, dissociar a personalidade psicológica do médium, o surrealismo se propõe a nada menos que unificar essa personalidade”. Há mais relatos e observações em “Le méssage automatique”; um desfile de paranormalidades, alucinações visuais e auditivas, até chegar á questão propriamente filosófica: “Não posso, aqui, e lamento por isso, fazer outra coisa a não ser esboçar a história da crise que, nessas condições, a atitude surrealista, no que concerne ao grau de realidade a ser conferido a um objeto, não pode deixar de fazer que a sofra o pensamento puramente especulativo”. Isso, “pela impossibilidade de uma demarcação válida, que permita isolar o objeto imaginário do objeto real”. Volta a Myers, por sua pesquisa das imagens eidéticas, os pós-efeitos visuais: por exemplo, quando olhamos fixamente para uma fonte de luz, e essa, alterada, permanece ao fecharmos os olhos. Conclui com uma afirmação ousada: “Toda a experimentação em curso seria de natureza a demonstrar que a percepção e a representação – que para o adulto ordinário parecem opor-se de uma maneira tão radical – não devem ser tidos senão como produtos da dissociação de uma faculdade única, original, da qual a imagem eidética dá conta e da qual se reencontram traços entre os primitivos e as crianças”. Em Platão e nos mitos que o precederam, havia um andrógino, dividido pelos deuses; em Breton, unidade de percepção e representação; de sujeito e objeto, em um mundo evidentemente mágico.
Por isso eu havia falado em poética da alucinação, como solução da contradição de sujeito e objeto. Visões e alucinações ganham o estatuto de percepções íntegras: o visionário alucinado efetivamente vê; no automatismo verbal, de fato ouve. Breton termina exemplificando com Santa Tereza d’Ávila, ao ver sua cruz de madeira transformar-se em crucifixo de pedras preciosas. Considera essa visão ao mesmo tempo imaginada e sensorial. O exemplo o leva a uma tirada de humor, a meu ver injusta: “Tereza d’Ávila pode passar como alguém que comanda essa linha na qual se situam os médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda não passa de uma santa”.
Aprecio “Le méssage automatique” pelo desfile de fenômenos, mais extenso do que os citados aqui; pelos desafios ao senso comum. Gostaria que fosse traduzido. Temos, traduzido, outro texto, reafirmando-o; porém, desta vez, sob uma perspectiva propriamente filosófica. É “Situação surrealista do objeto”, parte da série Posição política do surrealismo de 1935, [19] que anuncia “uma crise fundamental do objeto”. Comenta a Estética de Hegel ao longo de algumas páginas: “Declaro que, ainda hoje, é a Hegel que se há de interrogar sobre os bons e os maus fundamentos da atividade surrealista nas artes”. Esse texto poderia substituir minha palestra. Cito-o para que fique evidente de onde vêm as categorias “objeto”, “sujeito” e “espírito” em Breton. O que chamei de poética da alucinação é, desta vez, exemplificada por poemas de Benjamin Péret, Paul Éluard e Apollinaire; no campo visual, por relógios moles de Salvador Dalí; pelasfrottages de Max Ernst, ao esfregar um lápis sobre um papel, por sua vez sobre um assoalho com ranhuras: equivalem às manchas na parede de Leonardo da Vinci, também citadas. E trata de objetos encontrados, tema forte em O amor louco, e, descontextualizados ou ressignificados, nos famosos procedimentos de Marcel Duchamp.
Dos médiuns aos artistas invocados por Breton, todos esses casos mostram a projeção do sujeito sobre o objeto, colocando-o em situação de crise. Há, porém, uma recíproca; outro modo de relação, mostrado, de modo insistente, em Nadja, de 1928: o sujeito atacado pelo objeto. Deixando de lado um exame mais atento dessa narrativa, observo a relação sensorial de Breton com lugares de Paris. Por exemplo, a estátua de Étienne Dolet, situada na Praça Maubert (Dolet, personagem respeitável, editor estrangulado e queimado naquela praça em 1546, acusado de ateísmo), que ao mesmo tempo o atrai e lhe provoca mal-estar. E a Praça Dauphine, na Ilha da Cité, cenário de um episódio especialmente importante do relato, que o faz sentir langor e opressão. Nadja começa pela lembrança de episódios significativos, dos quais sua protagonista poderia ter sido participante; avisos de que o maravilhoso iria manifestar-se. Entre outros, a busca de lojas que vendiam carvão de lenha, bois-charbon, par de palavras, símbolo da destruição ou consumação,  que encerram, isoladas e emolduradas como um letreiro, o livro de escrita automática de Breton e Philippe Soupault, Les champs magnétiquesseus autores, perambulando pela cidade, atingiram o nível de alucinação que lhes permitia dizer antecipadamente em qual trecho de rua apareceria a loja ostentando o letreiro, bois-charbon.
Principalmente, o episódio da Praça Dauphine, na Ilha da Cité, onde ficam a Catedral de Notre-Dame e outras edificações históricas. Ao chegarem lá e se instalarem em um café, inicia-se a noite marcada por qualquer coisa de mal-assombrado, Nadja a ver mortos circulando pela vizinhança, com o rumor do vento – “o vento e o azul, o vento azul”, dizia – transformado em vozes anunciando a morte, enquanto um bêbado os cobria de impropérios. Afirma que lá, vindo do Palácio da Justiça, passava um túnel secreto que se comunicava com outro palácio: segundo Henri Béhar em sua biografia de Breton, [20] escavações arqueológicas de 1963 revelaram que o subterrâneo existe. Apontando para a janela de uma das casas da praça, negra na escuridão, Nadja afirmou que em um minuto se iluminaria e sua cor seria vermelha: em um minuto, a luz do quarto da janela acendeu, exibindo cortinas vermelhas. Em seguida, alucinada, agarrou-se à grade do Palácio da Justiça e insistiu que havia estado lá em outra vida, como acompanhante de Maria Antonieta. Prosseguindo a caminhada, na ponte que liga a Ilha da Cité à margem direita do Sena, a Pont Neuf, ela enxerga uma mão em chamas, “mão que arde sobre as águas”, pairando no rio. Perguntou: “O que isso significa para você: o fogo sobre a água, a mão de fogo sobre a água?” A mão, a “main de gloire” e pentagrama dos magos, é um símbolo recorrente emNadja. A noite culminou com a chegada deles ao Jardim das Tuileries, onde pararam diante de um chafariz. Nadja observou que suas águas, elevando-se, separando-se em dois jorros, desfazendo-se ao cair, retornando com a mesma força, e assim indefinidamente, simbolizavam os pensamentos de ambos. Breton espantou-se com o comentário, pois citava, sem saber, um trecho do que lia naqueles dias, uma vinheta da edição de 1750 do terceiro dos Três Diálogos entre Hilas e Filônio de Berkeley, com a seguinte legenda: Urget aquas vis sursum eadem flectit que deorsum, ilustrada por um chafariz idêntico ao das Tuileries.
Fazem parte de um maravilhoso imanente que surpreende os registros de diálogos, objetos encontrados, textos, desenhos, esboços a traço e colagens feitos por Nadja, a torrente de símbolos citados ou graficamente reproduzidos no livro – mãos negras e vermelhas, serpentes, máscaras, estrelas, cometas, flores, sereias, esfinges, duendes, o diabo, torres e subterrâneos de castelos, lâmpadas, amuletos, as chamas de uma fogueira, as cores do ar. Invasão de símbolos, levando Breton a vê-los, “nos curtos intervalos que o nosso maravilhoso estupor permitia”, a contemplar “os escombros fumegantes do velho pensamento e da vida sempiterna”; e a perguntar: “Em que latitude nós poderíamos estar bem, assim entregues ao furor dos símbolos, presas do demônio da analogia, nós que nos víamos como objetos de instâncias últimas, de atenções singulares, especiais?” Breton e Nadja foram, naqueles episódios, sujeitos de uma narrativa, protagonistas; e, ao mesmo tempo, objeto dos símbolos.
Nadja é o relato de una catástrofe, justificando a observação no prefácio, já citada, sobre as derrotas do sujeito frente à implacável objetividade. Após separarem-se, Breton é informado que havia sido internada, em surto, em um hospício do qual nunca mais sairia.  As respostas de Breton são o alheamento, a abstração do real objetivo, o isolamento. Prosseguindo o elogio da distração no Manifesto do Surrealismo, relata o caso do hóspede de um hotel que, toda vez, tem que perguntar ao atendente quem ele é. E, nas passagens finais do livro, contra psiquiatras e manicômios, afirma que, se fosse internado, mataria alguém, de preferência um de seus médicos, para que o deixassem em paz, confinado no isolamento.
Sair do impasse moveu-o a escrever o complexo Les vases communicants. [21] Seguindo Freud em A Interpretação dos Sonhos, tenta dar um passo além, através do que chama de “psicanálise da realidade”. Sonhos, afirma, não apenas reaproveitam o que Freud denominou “restos do cotidiano”, mas se projetam na vigília. Faz, portanto, não apenas de interpretação do sonho, mas do real no sentido mais amplo, compreendendo vigília e sonho, defendendo o mesmo estatuto para ambos.
É o livro sobre a perda, de uma intensa racionalização; elaboração do luto, diriam psicanalistas. Enfrentava dificuldades financeiras, e um drama amoroso. Nesse livro da busca para não chegar a lugar algum, de encontros que não se realizam, multiplica o encontro com Nadja. Para sua crise, microcosmo de uma crise da sociedade, do mundo da desigualdade e exploração, só havia uma saída: a equiparação de vigília e sonho. Vê o sonho como crítica do real: “assim fazendo, por meio do sonho, o processo do conhecimento materialista, […] sendo, penso, admitido que o mundo do sonho e o mundo da realidade não fazem senão um, ou, dito de outro modo, que o segundo não faz outra coisa, para constituir-se, que verter-se na ‘torrente do dado’”. Indaga se a distinção entre realidade e sonho “é fundamentada em todos os pontos, e de onde vem ao homem, a esse respeito, a faculdade de discriminação que permite seu comportamento social normal”.
Critica Freud pelo dualismo, a seu ver um platonismo, ao separar dois mundos, sonho e realidade, que, sob o ponto de vista materialista, deveriam ser um só. E questiona o criador da psicanálise por considerar o sonho exclusivamente a satisfação de um desejo. Isso equivaleria “à falta quase completa de concepção dialética”, pois o “real” da vigília está submetido à censura, enquanto o sonho não; por isso, é o território da liberdade, do possível: “uma parte do sonho, considerada eminentemente não-sonhável, tem por objeto fazer de uma coisa que não foi – mas que foi sentida violentamente como podendo ter sido, em seguida como podendo e devendo ser  - uma coisa que foi, que é portanto em todos os pontos possível e que deve passar, sem choque, à vida real comotoda-possibilidade.” [22] Daí que “Freud ainda se engana, muito certamente, ao concluir pela não-existência do sonho profético”.
Argumenta que acontecimentos do dia-a-dia obedecem aos mecanismos do sonho. Por exemplo, na série de mulheres que vai encontrando, para depois perdê-las. Trata-se de deslocamentos: “Um personagem, assim que é dado, é abandonado por um outro, - e, quem sabe, esse mesmo, por um outro? Para quê, então, esse trabalho de expor? Mas o autor, que parecia haver-se disposto a nos apresentar algo de sua vida, fala em um sonho! – Como em um sonho.”
Há uma interpretação do Omega do poema As Vogais de Rimbaud, remetendo por cabala fonética a uma atraente Olga que acabara de conhecer. O autor de uma carta com observações sobre o Segundo Manifesto do Surrealismo é Sanson, Sansão (Georges Sanson, pacifista a quem conhecera durante a guerra e que reaparecia, enviando-lhe a carta), e isso o remete à moça com quem havia marcado encontro aquele dia, cujo olhar lhe havia lembrado a Dalila de Gustave Moureau, um de seus pintores prediletos. Ainda por associação, lembra um episódio burlesco ocorrido no mesmo dia, no cabeleireiro. Admite: “Que isso possa, para alguns, frisar o delírio de interpretação, não vejo inconveniente nisso, tendo insistido, como o fiz, sobre as razões do meu pouco equilíbrio de então.
Mais que delírio interpretativo, há pensamento analógico, associação de coisas e símbolos distintos por contigüidade ou afinidade. O mecanismo do sonho pode não ter tomado conta da realidade, mas dirigiu seu modo de pensar: “Deve ser impossível, considerando o que precede, não se chocar com a analogia entre o estado que acabo de descrever como tendo sido o meu naquela época e o estado de sonho, tal como concebido geralmente”. Como observa J. B. Pontalis, “a percepção onírica, o estado de sonho e suas equivalentes vigílias têm, antes, função de paradigma”. [23]
A carta de Sanson podia ser um comentário à discussão da noite anterior sobre misticismo no Segundo Manifesto do Surrealismo e uma religiosidade disfarçada no surrealismo: “repito que entre nós essa discussão havia acontecido na véspera, à noite. Vê-se como os fatos dessa ordem podiam encadear-se em meu espírito. E é isso que é taxado de misticismo em mim. A relação causal, vêm me dizer, não poderia se estabelecer nesse sentido. Não há nenhuma relação sensível entre aquela carta que lhe chega da Suíça e tal preocupação que poderia ser a sua nas vizinhanças do momento em que essa carta foi escrita. Mas isso não é, pergunto, absolutizar de uma maneira lamentável a noção de causalidade? Não é deixar passar a palavra de Engels: ‘A causalidade não deve ser compreendida senão em ligação com a categoria do acaso objetivo, forma de manifestação da necessidade’?”
Assim aparece na obra bretoniana a expressão acaso objetivo, associada a um Sansão, seu duplo, mas atribuída a Engels. No entanto, mostrou Marguerite Bonnet, [24] ela não se encontra em lugar algum na obra de Engels. Em “Situação surrealista do objeto”, Breton voltaria a falar do acaso objetivo, mas sem remetê-lo a Engels, porém apenas ao “humor objetivo” de Hegel.
Mas o que faz que realidade e consciência se subordinem ao sonho? É o desejo, responde Breton em Les vases communicants: “Muito mais significativo é observar como a exigência do desejo em busca do objeto de sua realização dispõe estranhamente dos dados exteriores, tendendo egoisticamente a só reter deles aquilo que pode servir a sua causa. A vã agitação da rua tornou-se pouco mais incômoda que o movimento das cortinas. O desejo está lá, cortando o tecido que não muda com rapidez suficiente, depois deixando correr seu fio seguro e frágil entre os pedaços. Ele não cederá a nenhum regulador objetivo da conduta humana”.
Breton faz crítica marxista à psicanálise freudiana, ao questionar seu dualismo? Ou procede à freudização do marxismo, ao colocar não só o comportamento humano mas o mundo todo sob a regência de Eros? Introduzir o acaso objetivo, por mais que essa categoria receba fundamentação, marxista inclusive, e freudiana, é apresentar uma solução mágica para a contradição de sujeito e objeto; ou resolvê-la magicamente. Algo que não é contraditório com as ligações de Breton com esoterismo, alquimia e demais disciplinas herméticas, a ponto de alternar, no Segundo Manifesto do Surrealismo, páginas de discussão política, de orientação marxista, e extensas notas de rodapé sobre astrologia e alquimia; ou, em Les Vases Communicants, de propor astrologia como ciência marxista, “desde que aquilo que é postulado seja tomado como postulado” – afirmação estranhamente circular. E com sua atração por médiuns e videntes, levando-o a freqüentá-las. Uma delas, Madame Sacco, com sua foto, paramentada como cigana, em Nadja. Em um texto de 1925, “Carta às videntes”, depois agregado aos Manifestos do Surrealismo, comenta uma previsão de Madame Sacco: “Ao que parece, devo ir à China por volta de 1931, e lá correr, durante vinte anos, grandes perigos. Duas vezes em duas ocasiões diferentes deixei que me dissessem isso, o que é bastante perturbador”.
Seu interesse não decorre da “realidade” da profecia, da objetividade como realização empírica. Está na China: “Indiretamente, soube também que, antes disso, haveria de morrer. Mas eu não penso que ‘das duas, uma’. Tenho fé em tudo o que me disseram. Por nada nesse mundo resistiria à tentação que provocaram em mim, digamos: de aguardar-me na China. Tanto mais que, graças a vós, já estou lá.” O valor não está na exatidão das profecias, mas no efeito sobre a imaginação; sobre o sujeito: esse está na China.
O acaso objetivo passaria a realizar-se e multiplicar-se, uma vez formulado. O amor louco é uma sucessão de episódios propiciatórios: poemas anteriores que são lembrados, conversas entreouvidas em um restaurante, encontros improváveis.
Tudo isso – conferir estatuto de realidade ao acaso objetivo, valor às alucinações e ilusões de ótica, defender o alheamento – daria razão a críticas ao surrealismo como aquela de Sartre, em Situations, pelo afastamento do real e, conseqüentemente, de um compromisso. Cabe citar a observação de Ferdinand Alquié, em Philosophie du Surréalisme: “O surreal não é, portanto, o sobrenatural, e por isso, apesar da inquietude metafísica da consciência surrealista, não deve ser considerado como o correlato de uma consciência religiosa, ou de uma consciência mística, mas apenas de uma consciência artística. E sem dúvida a concepção que os surrealistas têm da arte, cujo poder emancipador nunca é esquecido, torna essa consciência indissoluvelmente estética e moral.” [25] Ademais, como observou Carrouges, a percepção da objetividade nunca é neutra, porém, inclusive para Marx, função de quem percebe. Exemplifico: quando, ao visitar o parque do Xingu, caminhei alguns quilômetros em companhia de Tacumã, chefe Camaiurá, ele via outras coisas na mata, e muito mais coisas que eu.
Mas a melhor interpretação filosófica, penso, da relação surrealista de sujeito e objeto é aquela de Octavio Paz em La búsqueda del comienzo:

“Para nós, o mundo real é um conjunto de objetos ou entes. Antes da idade moderna, esse mundo estava dotado de uma certa intencionalidade, atravessado, por assim dizê-lo, pela vontade de Deus. Os homens, a natureza e as próprias coisas estavam impregnadas de algo que as transcendia; possuíam valor; era boas ou más. A idéia de utilidade – que nada mais é senão a degradação moderna da noção de bem – impregnou depois nossa idéia de realidade. Os entes e objetos que constituem a realidade se tornaram, para nós, coisas úteis, inaproveitáveis ou nocivas. Nada escapa a essa idéia do mundo como um vasto utensílio: nem a natureza, nem os homens, nem a própria mulher; tudo é um para… todos somos instrumentos. E aqueles que, do alto da pirâmide social, manejam essa enorme e ruidosa maquinaria, também são utensílios, também são ferramentas que se movem maquinalmente. O mundo se converteu em uma gigantesca máquina que gira no vazio, alimentando-se sem cessar de seus detritos. Pois bem: o surrealismo se recusa a ver o mundo como um conjunto de coisas boas e más, umas preenchidas pelo ser divino, outras roídas pelo nada; daí seu anticristianismo. Igualmente, nega-se a ver o mundo como um conglomerado de coisas úteis ou nocivas; daí seu anticapitalismo. As idéias de moral e utilidade lhe são estrangeiras. Finalmente, tampouco considera o mundo à maneira do homem de ciência puro, ou seja, como um objeto ou grupo de objetos desnudados de todo valor, desprendido do observador. Nunca é possível o objeto em si; sempre está iluminado pelo olho que o mira, sempre está moldado pela mão que o acaricia, o oprime ou empunha. O objeto, instalado em sua realidade irrisória como um rei em um vulcão, prontamente muda de forma e se transforma em outra coisa. O olho que o mira o amacia como cera; a mão que o toca o modela como argila. O objeto se subjetiviza. [26] Ou, como diz um herói de Arnim: “Posso discernir com dificuldade o que vejo com os olhos da realidade do que vejo com os olhos da imaginação.” Evidentemente, trata-se dos mesmos olhos, porém servindo a poderes distintos. E assim se inicia uma vasta transformação da realidade. Filho do desejo, nasce o objeto surrealista: a reunião de montanhas é outra vez cena de gigantes, as manchas na parede ganham vida, põem-se a voar e são um exército de aves que, com seus bicos terríveis rasgam o ventre da formosa acorrentada.” [27]

Deslocamentos de objetos, o método paranóico-crítico, registros de sonhos, escrita automática, segue Paz, não são “exercícios gratuitos de caráter estético”, pois “Seu propósito é subversivo: abolir esta realidade que uma civilização vacilante nos impôs como a só e única verdadeira”. A destruição da falsa realidade revela outra, que “se levanta de sua tumba de lugares comuns e coincide com o homem”, na qual “somos de verdade”.  Nela, “o mundo já não se apresenta como um ‘horizonte de utensílios’, mas como um campo magnético.” Mas, “se o objeto se subjetiviza, o eu se desagrega”, realizando a máxima de Rimbaud, “Eu é um outro”. Assim ocorre a “sistemática destruição do eu – ou, melhor dizendo: a objetivização do sujeito”.
O par de categorias proposto por Paz, subjetivização do objeto e objetivização do sujeito, dá conta, filosoficamente, do debate sobre a questão do sujeito – e correlatamente do objeto – no âmbito do surrealismo. O que havia exposto, citando Breton, é uma justificativa desses termos.
Ainda teria outros tópicos e questões da filosofia a examinar, marginalmente. Um deles, clássico, aquele da natureza da linguagem e sua relação com a realidade, importante desde Platão e Aristóteles; e, especialmente, no confronto medieval de realistas e nominalistas. O surrealismo parece adotar a posição realista; por exemplo, quando Breton, em um texto contemporâneo do primeiro Manifesto, intitulado “Discours sur le peu de realité”, [28] afirma que “enunciados medíocres produzem uma realidade medíocre”; e, reciprocamente, que a poesia instaura o maravilhoso. O realismo será adotado por Mabille, emLe miroir du Merveilleux: “Para mim, como para os realistas da Idade Média, nenhuma diferença fundamental existe entre os elementos do pensamento e os fenômenos do mundo, entre o visível e o compreensível, entre o perceptível e o imaginável”. Isso porque, parafraseando Hermes (e Novalis e os demais românticos de Jena), “tudo está em nós assim como aquilo que está fora de nós, para constituir uma só realidade”. De modo conseqüente, “o conhecimento do signo leva ao conhecimento da coisa” e “a ciência da linguagem resume todas as outras ciências”; deixando claro, porém, que essa “ciência” não é aquela da “deplorável atmosfera de secura abstrata na qual os gramáticos e os intelectuais especializados situaram o estudo das palavras” (“gramáticos”… – Mabille não chegou a presenciar os empreendimentos formalistas). Para alcançar o Verbo, um caminho: “Nas iniciações antigas, o primeiro e mais longo trabalho consistia em aprender a ler”.


Mais que retorno a um debate arcaico, são afirmações precursoras de um debate contemporâneo: aquele suscitado pelo relativismo lingüístico, as teses de Whorf-Sapir. Fundadas em estudos antropológicos, mostram que a percepção do mundo é função da organização da linguagem. Nesse sentido, a linguagem produz realidade. “Pouca realidade”, no dizer de Breton, quando prosaica; “mais realidade”, surrealidade, quando poética. Como sintetizado por Octavio Paz: “as línguas são mais inteligentes do que os homens que as falam”. A citação é de seu ensaio sobre haicais. [29] Em outro ensaio, “Leitura e contemplação”, examinaria questões suscitadas por Whorf e Sapir: “Cada idioma é uma interpretação do universo, um prisma através do qual vemos o universo não-linguístico. Cassirer o disse de maneira ao mesmo tempo sucinta e clara: ‘O homem não somente pensa o mundo por meio da linguagem: sua visão de mundo já está determinada por sua linguagem.’ A origem dessas idéias, na Idade Moderna, remonta provavelmente a Vico e a Herder, os dois primeiros a oferecer de modo coerente uma visão pluralista da história.” [30]
Esse é o sentido da caracterização do surrealismo por Breton, no último de seus manifestos, Do surrealismo em suas obras vivas, de 1953, como “operação que tendia a restituir a linguagem à sua verdadeira vida” e movimento que “nasceu numa operação de grande envergadura que tinha por objeto a linguagem”, para “descobrir o segredo de uma linguagem cujos elementos deixassem de se comportar como restos do naufrágio à flor das águas de um mar morto”. Para tal, importava “subtraí-las a seu uso cada vez mais utilitário”. Tais afirmações devem ser lidas como completando do que havia afirmado sobre a “crise do objeto”.
O alvo dos ataques surrealistas é, evidentemente, a ordem estabelecida; em filosofia, especialmente, o “cogito” cartesiano. De modo mais explícito, por Louis Aragon na abertura de O camponês de Paris, de 1928, intitulada “Prefácio para uma mitologia moderna”. [31] Sobre o “certo”, a “certeza” e a “verdade”, diz: “A certeza é realidade. Dessa crença fundamental procede o sucesso da famosa doutrina cartesiana da evidência. Ainda não terminamos de descobrir os estragos dessa ilusão”. Não apenas contrapõe-lhe o erro, mas afirma que ambos, certeza e erro, constituem-se em unidade, em uma relação semelhante àquela de luz e sombra. Interdependentes, uma não existe sem a outra: “Essa sombra, da qual ele pretende se abster para descrever a luz, é o erro com seus caracteres desconhecidos, o erro que, sozinho, poderia revelar, àquele que o tivesse encarado de frente, a fugitiva realidade. Mas quem não compreende que a imagem do erro e a imagem da verdade não poderiam ter traços diferentes?” Dialetiza. E contrapõe o pensamento analógico à lógica cartesiana. Nesse livro, a passagem da Ópera e o parque das Buttes Chaumont são pórticos para “iluminações profanas”, como as designou Benjamin, através do “erro” e da errância em lugares eleitos. Conforme a tradutora Flávia Nascimento, “Errar pelo jardim em plena noite funciona como técnica alucinógena cujo objetivo é fazer aflorar o que há de mais primitivo no homem; e percorrer esta topografia equivale a percorrer os caminhos sinuosos do inconsciente”. Por isso,Aragon  anuncia o retorno de divindades arcaicas e novos mitos urbanos.
O retorno ao mito foi reivindicado por surrealistas em geral e Breton em especial. “Flagrant délit, [32] o ensaio em que denunciou a publicação de uma falsificação de Rimbaud intitulada La chasse spirituelle, é aberto com a defesa da alegada mitificação surrealista de Rimbaud (e de Lautréamont, entre outros). A propósito de uma mostra sobre a civilização maia no Louvre, argumenta que, assim como as obras dos maias são a expressão de mitos, a de Rimbaud propunha novos mitos. Citando, de Apollinaire, “Você nunca conhecerá bem/ os/ Maias”, advertiu: “Você nunca conhecerá bem Rimbaud”. O cerne de sua argumentação, repetindo Schelling: o surrealismo situa-se no campo do mito; e o mito é meio de conhecimento, mais efetivo que a lógica.
Um passo adiante é sua crítica ao antropocentrismo, à idéia do homem como centro do universo, passando a pensá-lo como parte de um todo. De fato, uma vez admitida a unidade, não se sustenta a atribuição de um estatuto ontológico à separação do homem – ou o espírito, ou a alma – e do mundo das coisas, como nas teologias judaico-cristãs e em sistemas como o de Descartes. Na mesma medida, passam a valer panteísmos, vitalismos, idéias da alma universal. Por isso, nos dois últimos manifestos – Prolegômenos a um terceiro manifesto do Surrealismo ou não de 1942, e Do Surrealismo e de suas obras vivas de 1953 – é proposto um novo mito, dos “grandes transparentes”. Nem é preciso observar que, com tais proposições, Breton toma distância do pensamento marxista.
A gênese da filosofia já foi interpretada como revolta do logos contra o mito. Por exemplo, por Mircea Eliade: “a cultura grega foi a única a submeter o mito a uma longa e penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente ‘desmitificado’. A ascensão do racionalismo jônico coincide com uma crítica cada vez mais corrosiva da mitologia ‘clássica’, tal como é expressa nos obras de Homero e de Hesíodo. Se em todas as línguas européias o vocábulo ‘mito’ denota uma ‘ficção’, é porque os gregos o proclamaram há vinte e cinco séculos.” [33] Ou por E. R. Curtius: “O pensamento de Hesíodo era mítico. Opôs-se-lhe, desde o século VI, o pensamento da filosofia natural jônica. É um espetáculo maravilhoso a irrupção da filosofia no espírito grego, tomando de assalto todas as posições do inimigo. É a revolta do logos contra o mito… e também contra a poesia.” [34]
A resposta do mito ao ataque do logos tem um nome, conforme Paz. Chama-se rebelião: “O rebelde, anjo caído ou titã, é o eterno inconformado. Sua ação não se inscreve no tempo retilíneo da história, domínio do revolucionário ou do reformista, mas no tempo circular do mito: Júpiter será destronado. Quetzalcoatl voltará, Luzbel regressará ao céu. Durante todo o século XIX o rebelde viveu à margem. Os revolucionários e os reformistas o vêem com a mesma desconfiança com que Platão vira o poeta, e pela mesma razão: o rebelde prolonga os prestígios nefastos do mito.” [35]
O surrealismo, sendo rebelião em favor do mito e contra o logos, promoveu-a, a exemplo dos românticos aqui citados, sem descartar a reflexão filosófica. Sendo um pensar totalizante, em busca da unidade, incorporou-a e reinterpretou-a. E o fez de modo instigante e produtivo, como sugerido, espero, através deste exame.

NOTAS
1. Breton, André, Nadja, collection Folio, Gallimard, Paris, 1964; Nadja, tradução de Ivo Barroso, Cosac Naify, Rio de Janeiro, 2006.
2. Baudelaire, Charles, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos tradutores, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995, pg. 789.
3. As citações são de NovalisPhilosophical Writings, organizado e traduzido por Margaret Mahony Stoljar, State University of New York Press, Albany, NY, 1997.Sempre que o tradutor não estiver indicado, a tradução é minha.
4. Citado por Octavio Paz em Signos em Rotação, tradução de Sebastião Uchoa Leite, São Paulo, Perspectiva, 1972.
5. Chénieux-Gendron, Jacqueline, O Surrealismo, tradução de Mário Laranjeira, São Paulo, Martins Fontes, 1992
6. Alexandrian, Sarane, Le Surréalisme et le réve, Paris, Gallimard, 1974.
7. Em itálico no original.
8. Breton, André, Manifestos do Surrealismo, tradução de Sérgio Pachá, Nau Editora, Rio de Janeiro, 2001.
9. Breton, André, Arcano 17, tradução de Maria Teresa de Freitas e Rosa Maria Boaventura, São Paulo, Brasiliense, 1985.
10. É o final de Discurso no Congresso de Escritores, em Posição Política do Surrealismo, conjunto de textos agregado às edições dos Manifestos do Surrealismo.
11. Carrouges, Michel,  André Breton et les données fondamentales du Surréalisme, Paris, Gallimard, 1971.
12. Breton, André, O Amor Louco, tradução de Luiza Neto Jorge, Lisboa, Editorial Estampa, 1971. Nos comentários sobre essa e outras obras de Breton, retomo o que havia publicado em “Magia, Poesia e Realidade: O Acaso Objetivo em André Breton” em O Surrealismo, organizado por J. Guinsburg e Sheila Leirner, São Paulo, Perspectiva, coleção Signos, 2008
13. Na tradução de Ivan Junqueira no já citado Charles Baudelaire: poesia e prosa.
14. Os grifos são do próprio Breton.
15. Breton, Les pas perdus, Paris, Gallimard – Idées, 1974.
16. Mabille, Pierre, Le miroir du merveilleux, Paris, Les Éditions du Minuit, 1962.
17. Breton, La clé des champs, Paris, Societé Nouvelle des Éditions Pauvert – Le livre de Poche, 1979
18. Breton, Point du jour, Paris, Gallimard - Folio, 1970
19. Também na edição já citada de Manifestos do Surrealismo.
20. Béhar, Henry, André Breton, Le grand indésirableParis, Calmann-Lévy, 1990.
21. Breton, André, Les vases communicants, Idées, Gallimard, Paris, 1985.
22. Grifo de Breton, assim como na citação seguinte.
23. No prefácio do já citado Le Surréalisme et le Réve de Alexandrian.
24. Em Oeuvres complètes de Breton, organizadas por Marguerite Bonnet, Éditions Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, vol. II, 1992, nas notas para Les vases communicants.
25. Alquié, Ferdinand, Philosophie du surréalisme, Paris, Flammarion, 1977
26. Grifo meu.
27. Paz, La búsqueda del comienzo, Madri, Editorial Fundamentos/ Espiral, 1974
28. Breton, Point du Jour, Paris, Gallimard – Folio, 1970.
29. Integra o já citado Signos em Rotação.
30. Está na coletânea Convergências – Ensaios sobre arte e literatura, tradução de Moacyr Werneck de Castro, Rio de Janeiro, Rocco, 1991.
31. Aragon, Louis, O Camponês de Paris, tradução de Flavia Nascimento, São Paulo: Imago, 1998.
32. Publicado na coletânea La clé des champs, já citada aqui.
33. Eliade, Mircea, Mito e realidade, tradução de Pola Civelli, São Paulo, Perspectiva, 1972
34. Curtius, Ernst Robert, Literatura Européia e Idade Média Latina, tradução de Teodoro Cabral e Paulo Rónai, Hucitec – EDUSP, São Paulo, 1996.
35. “Revolta, revolução e rebelião”, também na coletânea Signos em rotação.


Claudio Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta, tradutor. Foi co-editor da Agulha Revista de Cultura no período 2000-2009. O texto que aqui publicamos é uma atualização ampliada da palestra A crítica filosófica e a questão do sujeito no surrealismo (II Jornada de Filosofia e Literatura do Depto. de Filosofia da Unifesp, 09/12/2013. Contatocjwiller@uol.com.br. Visite também seu bloghttp://claudiowiller.wordpress.com/. Página ilustrada com obras de Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC.


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