sábado, 22 de novembro de 2014

JOSÉ CASTELLO | Fernando Monteiro e sua lâmpada






Fernando MonteiroCom a intrusão do inútil no mundo da utilidade pura que a poesia nos agita

Um verso doloroso de Roberto Piva guia o poeta Fernando Monteiro em seu novo livro, “Mattinata”, que acaba de chegar ao mercado em uma corajosa coedição da Sol Negro, de Natal-RN, com as Edições Nephelibata, de São Pedro de Alcântara-SC. Diz o sofrido verso de Piva: “E para que ser poeta em tempos de penúria?” Se pensarmos bem, contudo, sempre foi assim. A poesia é justamente uma fratura na precariedade do mundo. Um talho, que faz sangrar aquilo — sol negro — que se deseja esconder.
Fazer poesia em tempos tão iluminados, remexer nas sombras quando todos se afogam nas luzes de um presente perpétuo e embriagante, parece ainda mais estranho. Pois a poesia é uma lâmpada que age ao contrário: em vez de lançar luz sobre o obscuro, ela risca traços de sombra sobre a luz insuportável. É assim, pelo menos, que Fernando Monteiro a manipula: como um perfurador, que talha e derrete a banalidade da existência.
“Mattinata”, na verdade, trata de três perfurações. Primeiro, fala do fim do amor no longo poema que empresta seu título ao livro. Em seguida, nos “Escritos no túmulo”, trata da morte e de seu poder de corrosão e empedramento. No poema final, “E para que ser poeta em tempos de penúria”, inspirado e dedicado ao falecido poeta Roberto Piva (São Paulo, 1931-2010), Fernando chega ao mais assombroso dos rombos: aquele aberto, na casca grossa do mediano, pela agulha fina da poesia.
Enrique de SantiagoComeço pelo fim: pelo diálogo poético com Roberto Piva, o autor de “Estranhos sinais de Saturno”. Referindo-se ao verso que ele toma como título de seu poema, escreve Fernando: “A inquirição, franca, fende a fina porcelana de cera dos ouvidos”. Para que serve a poesia — e, antes: quem se interessa em ouvir essa pergunta? Parece inútil, deslocada, torta, e de fato é. Mas esses atributos, que fingem desenhar o imprestável, na verdade lhe conferem vigor. É com a intrusão do inútil no mundo da utilidade pura que a poesia nos agita.
Somos seres contraditórios. Fernando reconhece isso: “Sabemos da penúria,/ porém não queremos saber dela”. Querer e não querer: posição típica do humano. Vacilação, inquietação: viver. O poeta insiste: “plantamos a flor carnívora/ mas desviamos a vista”. Não suportamos o que a poesia nos apresenta. O que ela desvela do lixo em que vegetamos. Para que serve a poesia? A pergunta deixada por Piva — “de dentro para fora de sua vida” — não é um jogo de palavras, não é um exercício intelectual, não é um pensamento nobre: é uma fome. Fome de poesia: eis o objeto da poesia.
A pergunta deixada por Piva, nos diz o poeta pernambucano, “é um dedo que nos acusa, trêmulo”. Sim: Roberto Piva sofria de Parkinson, mas não é de uma doença que se trata, e sim de uma atitude. A pergunta, lançada de dentro para fora, ultrapassa o corpo, os dados em cartório, a geografia, e atinge, em cheio, o coração do mundo. Diz Fernando: “progride em acusação, do patamar da pobreza/ para um geral mal estar na cultura”. Não se trata de “poesia marginal”, já que, não estivesse à margem, poesia não seria.

Enrique de Santiago

No rasto de Piva, ele chega aos versos assombrosos da norte-americana Marianne Moore, que devassam o espírito dos poetas: “Eu, também, não gosto dela./ Lendo-a, no entanto, com um/ perfeito desdém por ela,/ descobre-se na poesia/ um lugar, afinal, para as coisas/ autênticas”.
Não é de construção exterior que se trata, mas de algo que se arranca do peito. Foi esse rasgar que, nos propõe Fernando, fez de Piva “uma espécie de anjo”. Em nosso mundo de gelo, a poesia se torna absurda e sem sentido. No entanto: é aí que se guarda sua força. O bolso vazio e furado do poeta, através do qual ele toca não a moeda, mas o próprio corpo — “o corpo da noite ou da tua morte” — se oferece como outra metáfora ágil para o poema, através da qual avançamos, ouriçados pela oferta de ouro, para chegar a nossa própria miséria.

Enrique de Santiago

Não: Fernando nunca está satisfeito consigo. Avança, continua a escrever, mas pune-se: “Fui mal, nessa tentativa de síntese./ Sou ruim, quando se trata de ver de longe/ e de perto ao mesmo tempo”. É que entre o longe e o perto algo escapa. É desse algo que escapa que a poesia trata. Não de um objeto, ou de um valor, ou de uma consagração — mas de uma perfuração. Como, em nossos tempos de mercado voraz e luzes mercenárias, esse buraco escuro pode ter, porém, algum valor?
É a luz da manhã, atordoante luz do presente, que em “Mattinata”, poema que abre o livro, destrói a possibilidade do amor. Sim: a paixão necessidade da obscuridade. Mais ainda: dela se alimenta. O amor se alimenta do não saber, e talvez mais ainda, do não ser. No entanto, escreve Fernando, “cada instante conta: uma luz que avança”. A realidade se infiltra pela noite, impõe sua claridade cega e quebra ao meio a delicadeza dos sonhos noturnos. “São as manhãs independentes,/ insurgentes rebeldes/ criadas pela crueldade do tempo”.
Enrique de SantiagoO presente (as manhãs) é a afirmação do tempo. E o tempo, com suas exigências, uma “tempestade/ que invade o aposento recordado/ entre o desejo e a mágoa”. Somos prisioneiros do presente: a paixão não suporta o peso das correntes e se rompe. A cidade, porém, continua sua marcha luminosa. Escreve Fernando: “na avenida/ a liberdade dos passantes/ se oferece à escravidão/ do expediente nas firmas”. Nesse cenário, o canto das aves no amanhecer é a última voz do amor.
Diante da crueza dos dias, o amor passa de “sombra de uma sombra/ eco de um eco/ engano de um engano”. Ele resiste na obscuridade, mas “as noites esperam as manhãs com medo”. Amor e poesia ocupam, assim, o mesmo lugar devastado. Resistem, contra as pressões solares do presente. Conservam-se na beira do mundo, ali onde o humano, enfim, se afirma. Grita Fernando: “É a tempestade o tempo!” Sem dele poder escapar, resta ao humano agarrar-se a essas bordas que se entortam, que vacilam e ameaçam nos exterminar.
Ali onde a poesia se afirma, algo do presente se rouba. Fernando sintetiza assim: “Versos não precisam ser bonitos/ versos precisam ser verdadeiros”. Só a lâmpada frágil da poesia, com sua luz invertida, desvela o coração da verdade.

José Castello (Brasil, 1951). Biógrafo, crítico literário, cronista, romancista e jornalista. É autor de livros sobre os poetas brasileiros João Cabral de Melo Neto e Vinicius de Moraes. Também publicou Fantasma (2001) e A Literatura na Poltrona (2007). O presente texto foi publicado originalmente no jornal O Globo (maio de 2012) e nos foi enviado por Fernando Monteiro. Contato: josegcastello@gmail.com. Página ilustrada com obras de Enrique de Santiago (Chile), artista convidado desta edição de ARC.




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