Levantar el papel donde escribimos
y revisar mejor debajo
Levantar cada palabra que encontramos
y examinar mejor debajo
Levantar cada hombre
y observar mejor debajo
Levantar a la muerte
y escudriñar mejor debajo
Y si miramos bien
siempre hallaremos otra huella.
No servirá para poner el pie ni para aposentar el pensamiento pero ella nos probará que alguien más ha pasado por aquí.
(ROBERTO JUARROZ. Levantar el papel donde escribimos.)
Todos sabem que falar das origens não é fácil. Ou não se estava lá, ou estávamos inscientes. Desse modo, para falar das origens, só nos resta a via indireta. Precisamos nos valer do que, por um meio, ou outro, ficou escrito.
Parece uma tautologia. Para saber das origens da escrita, examinar os escritos! Contudo, é assim! Historicamente tem-se procurado encontrar essas origens nas pinturas rupestres. Altamira, as vizinhanças de Lagoa Santa, por exemplo, são provas da necessidade pictórica do homem. Acredita-se que um risco podia representar a morte de um animal, mesmo a de um homem. Um risco. Essa há de ter sido a primeira marca inteligente do homem, sua primeira escrita, talvez com uma mão um pouco trêmula.
Muitos se ocuparam do estudo desses sinais. Entre eles, quero destacar os estudos de Denise Schamandt-Besserat. Sua coleção de pedras riscadas, marcadas por tokens, como ela designa esses sinais, dizem desses tempos.
E, aqui, uma pergunta se impõe: por que nosso antepassado fez isso? Por que esse primeiro risco? Saberia ele, desde sempre, que a vida é um risco?
Avancemos uma hipótese: para escrever, com intenção de registro, são necessárias pelo menos duas conquistas anteriores, a da fala e a do instrumento, podendo a ordem ser inversa. Não preciso lhes dizer que a capacidade de observação necessariamente deve ser ainda anterior. Mas como essa aptidão está presente mesmo nos animais, muito não nos preocupamos. A curiosidade, em todo o caso, como nos dias atuais, tem sido, desde sempre, uma importante aliada da inteligência quando se trata de inventar soluções para as necessidades.
Um antigo ditado reza que as palavras o vento leva, e a escrita fica, e outro, ainda, diz assim: a palavra saída da boca e a pedra que sai da mão, não voltam. De um lado, o aforismo indica uma grande proximidade da palavra com a pedra e, de outro, trata-se de uma observação muito simples de compreender, pelo menos hoje. No tempo de sua enunciação, não duvido tenha valido pelo ovo de Colombo. Elas não voltam, mas deixam marcas! Para sermos mais exatos, como veremos adiante, não se trata de que as palavras e as pedras não voltem. Na verdade, elas sempre voltam, mas como esse segundo movimento aparece sob uma forma invertida, a conexão de um movimento com o outro não é óbvia, e então dizemos que não voltam. Porque o alvo, não podemos esquecer, tanto das palavras, como das pedras, é sempre o outro. Talvez com uma queiramos aproximá-lo e com a outra afastá-lo!
Hegel introduziu na filosofia uma palavra muito interessante, a aufhebung. Com essa palavrinha, ele diz de um movimento duplo; ao mesmo tempo em que uma coisa se supera, ela se conserva. Na língua alemã, ela se refere, originalmente, à aufhebung de uma pedra: quando se levanta uma pedra do chão, no chão fica uma marca. Essa observação inaugural deve ter sido um fato surpreendente! As marcas dizem de um acontecido, de um passado.
Concomitante a isso tudo, séculos entremeando cada avanço, antes dos sumérios inventarem a escrita cuneiforme, acredito devermos dar importância também à existência de um grande quadro-negro. Deduzo sua importância do costume escolar de ensinar através dele. Quando aprendíamos as primeiras palavras, em outras línguas, ele sempre estava entre as primeiras expressões: le tableau noir, the blackboard, el quadro negro. Seu uso parecia universal! Agora, quando eles começam a escassear nas escolas, depois de terem se tornado esverdeados, como por uma espécie de mofo, voltam a aparecer nas telas dos computadores, os quais funcionam – não deixemos de registrar –, quando brilham! Assim era a noite! Pontilhada de estrelas brilhantes, sua constância devia dar certa segurança ao nosso ancestral, refugiado em alguma toca, temeroso das intempéries e dos animais, surpreso, por certo, quando cometas e meteoros e meteoritos riscavam a escuridão. Assim como aprendeu a diferençar a noite do dia, aprendeu a diferença entre os riscos que cortavam a noite e os que permaneciam fixos, possíveis de ler nos agrupamentos estelares, representantes primeiros de suas mais importantes observações. À noite, podiam ver a Ursa com a qual tinham lutado durante o dia. Tanto a Maior, como a Menor. O grande quadro-negro as espelhava. Havia certa correspondência entre a terra e o céu. O que aqui acontecia, estava escrito no céu. E as constelações, como o nosso Cruzeiro do Sul, em geral desenham-se com cruzamentos. Acredito que a possibilidade de cruzamento tenha aberto ao homem as portas da cultura. Um risco e outro a cruzá-lo. Mesmo antes de estabelecer uma relação entre coito e nascimento, já se sabia que a gravidez se devia ao cruzamento da mulher, mesmo que fosse apenas por um lugar sagrado, um rio, uma pedra. Embora a participação do pai não estivesse clara, logo se soube que não havia vida sem cruzamento. O poeta César Leal ressalta, na leitura de A Divina Comédia, a menor quantidade de estrelas no hemisfério norte, com relação ao hemisfério sul. Um fato que talvez indique terem começado por lá as leituras celestes. E como o homem sempre quis se comparar aos deuses, assim leu, quis escrever também!
Minha intenção, com esses hipotéticos prolegômenos, é dizer que, de algum modo, a escrita implica sempre em uma referência ao Outro. Escreve-se para dizer do Outro, e para o outro. Para escrever, requer-se sempre a leitura de uma escrita anterior, escrita que pode estar tanto nas estrelas, como nas pegadas de um animal, nos rastros de outros homens, nas nuvens, nas entranhas dos animais, nas folhas de chá, nos sonhos ou nos livros.
Desses pequenos indícios devem ter surgido os símbolos. O símbolo (Σύμβολον) representava, inicialmente, uma pessoa; era um sinal de reconhecimento. Uma pedra, ou mesmo um tijolo, quebrado em dois, quando suas partes eram reunidas, sua juntura (Συμβολή) permitia a identificação do portador. Suponho que essa tenha sido a origem do nome próprio. Chesterton, ao escrever O homem que era Quinta-Feira, o qual leva por subtítulo Um pesadelo, utiliza-se desse recurso: quando os anarquistas, aí descritos, vão para uma reunião, utilizam como senha, para entrar em uma câmera secreta, o nome de Mr. Joseph Chamberlain. Como seu autor busca dar ao romance um caráter onírico, deixando todo o tempo o leitor sem saber exatamente em que mundo está, o uso do nome de uma dos maiores políticos de todos os tempos tem grande serventia, justamente porque ajuda a confundir: fazendo uma escansão na palavra chamberlain, veremos tratar-se do próprio sonhador. Reconhecemos aí duas palavras, chamber, que se traduz por câmara, quarto, e lain, o particípio passado do verbo to lie, o qual, com sua tradução de estar deitado, permite identificar o sonhador como aquele que está deitado no quarto, sonhando, e, com a tradução de mentira, lain ajuda o leitor a saber que está no campo do engano, da farsa. Devemos registrar a inteligência de Chesterton na escolha dessa senha: em 1908, quando publicou esse romance, Chamberlain, que havia estado ativo na vida política desde 1886, por vinte anos, até 1906, era ainda um dos nomes mais presentes na lembrança dos leitores ingleses, e, possivelmente, também de todo o mundo, constituindo-se assim em valioso antecedente para o propósito do autor.
É a indícios assim que Jacques Lacan, com a ajuda da linguística, de Ferdinand de Saussure, chama de significantes. São esses singelos traços que representam, agora, não uma pessoa, mas sim o sujeito frente a outro significante. Quando encontramos uma Pedra de Roseta, ou mesmo os calhaus de Schamandt-Besserat, imediatamente reconhecemos que por trás daqueles tokens há um sujeito. Embora possamos não entender seu código, logo percebemos que um dia alguém se ocupou em fazer aquela marca, na qual podemos entender algo equivalente, talvez, a um e-mail contemporâneo ou a uma mensagem lançada ao mar, em uma garrafa, na esperança de que possa vencer os pélagos e alcançar algum leitor das vicissitudes de nossa solidão.
Mas voltemos um pouco.
Amadis de Gaula, considerado o primeiro romance de cavalaria, que hoje conhecemos na versão de Garci Rodríguez de Montalvo, impresso em castelhano, em 1508, mas que possivelmente é ainda do século XV, e escrito pelo português João Lobeira, conta, no capítulo V, quando fala de D. Galaor, o ciumento de Amadis, que este, na sua educação, lia livros de cavalaria. Em outra versão - a qual, infelizmente, não consegui encontrar para indicar-lhes a referência -, lembro que, em um momento, um cavaleiro vem andando, dormitando sobre seu rocim. Talvez se tratasse do próprio Amadis, que tendo nascido de um amor proibido, fora lançado às águas, como Moisés. Guiava-o a orientação de sua cavalgadura em busca de um manancial, e, chegando à beira de um rio, quando o flete baixa a cabeça para se abeberar, o cavaleiro acorda, os olhos piscos, surpreendendo-se com um velho cavaleiro, sentado às margens pedregosas, lendo um livro de cavalaria. Embora esse tenha sido o primeiro romance de cavalaria da Península Ibérica, havia a necessidade de mencionar antecedentes, e esses poderiam estar referidos na obra de Godofredo de Monmouth, do século XII, abordando as lendas arturianas.
Cervantes, ao compor o seu Don Quijote de la Mancha, no século XVII, já está fazendo uma paródia de todo esse ciclo de romances. Não bastasse toda essa antecedência, os próprios narradores da história ocupam-se deste valor: tanto o presumido autor original das aventuras do engenhoso fidalgo, Cide Hamete Benengeli, cujo texto nunca lemos diretamente, porque está escrito em árabe, quanto o narrador anônimo, que se jacta de ser tanto o transcritor, como o tradutor, mas que na verdade é seu editor, anotador e comentarista, fazem-nos acreditar que a história se desenvolve – como se se tratasse de uma caixa chinesa –, dentro de outra história, anterior e mais ampla, como uma vez disse Mario Vargas Llosa.
Cervantes, diga-se de passagem, foi uma das primeiras influências sobre Freud. Ainda adolescente, fundou, com seu amigo Eduard Silberstein, a Sociedade Castelhana. Seu objetivo: aprender espanhol lendo as obras de Miguel de Cervantes! Em sua correspondência, adotaram, como codinomes, o nome de dois cães, retirados de uma das Novelas Exemplares do patrono do clube, intitulada O colóquio dos cães: Eduard era Berganza, um narrador inveterado, e Freud,Cipião – o outro cão de Valadolid –, um filósofo cínico e amargo. Desde aí seu gosto pela filosofia e pelos clássicos. Mas é verdade que depois de Don Quijote já não houve lugar para outro romance do gênero. Como disse Kierkegaard, certa vez, toda fase histórica termina com a paródia de si própria. Já não havia espaço para os grandes épicos. Os Lusíadas, Orlando Furioso, a Divina Comédia, a Eneida, Os Anais, a Odisseia e a Ilíada tinham ficado para trás, para sempre, embora os ensinamentos contidos em cada uma dessas obras permaneçam também, para sempre.
Pelas obras posteriores, podemos entender algo das antecedentes. Os Lusíadas, de 1572, é posterior ao Amadis de Gaula, mas o episódio dos amores de Inês de Castro com Don Pedro parecem cumprir a mesma função de intermédio trágico dos amores de Amadis e Oriana. O cânon da época exigia que nenhum poema de larga extensão o excluísse.
Em Orlando Furioso (1516), Ludovico Ariosto conta os amores de Orlando, o paladino de Carlos Magno, e o da princesa oriental Angélica, e também os de Rogério, um jovem guerreiro muçulmano, pela valorosa guerreira cristã Bradamante. Aproveitemos para dar uma olhada na antecedência do Romance: ele se propunha como uma continuação de Orlando Enamorado, de Boiardo, publicado em 1483, em Ferrara e evocado, entre outros, por [Antônio Frederico de] Castro Alves, em Vozes d’África, quando verseja, na sexta estrofe: Poetisa – tange os hinos de Ferrara. Trata-se de uma alusão à publicação, aí, em Ferrara, além de Boiardo e Ariosto, também à Jerusalém libertada, de Tasso. Verdade que tanto o Orlando de Ariosto como o de Boiardo tiveram por antecedente o mal sucedido Bramante, de Luigi Pulci, escrito por encomenda de Lucrécia, mãe de Lourenço, o Magnífico, que queria patrocinar uma epopeia cristã em homenagem a Carlos Magno e Orlando. Mas, em Orlando Furioso, lemos também uma influência do Hercules Furens, de Sêneca, dos primeiros anos de nossa era, e também as bases da História da loucura, publicada por Michel Foucault, em 1961, pela primeira vez, e depois, em 1972, com novo prefácio.
Mas o intermédio amoroso mais belo que existe, no gênero, em toda a poesia universal, na opinião do poeta César Leal, está narrado, na Divina Comédia, no Canto V do Inferno, nos amores de Paolo e Francesca. Este é o relato, recitado pela própria Francesca, nos versos 103 a 105:
Amor, ch’a nullo Amato amar perdona,
mi prese del costui piacer sí forte,
che, como vedi, ancor non m’abbandona.
Amor, que a amado algum amar perdoa,
tomou-me, pelo seu querer tão forte,
que como vês ainda me agrilhoa.
(Tradução de Eugênio Mauro)
E não podemos deixar de registrar que a inspiração desse amor, atravessando os séculos, veio da leitura de um livro sobre a história de amor do cavaleiro Lancelote, apaixonado por Guinevere, a esposa do rei Artur. Aí não mencionado, o livro aludido bem pode ser Lancelote do lago, atribuído ao escritor suíço Ulrich von Zatzikhoven, do final do século XII. – Há sempre um antecedente.
Na Eneida, Virgílio, com o mesmo escopo, ainda no primeiro século de nossa era, relata os amores de Eneias e Dido, por certo um eco dos amores de Odisseu e Calipso, na ilha de Ogígia, descritos por Homero no canto V da Odisseia.
Hoje, bem se sabe que o objetivo de Virgílio, com Eneida, era a busca de uma genealogia tão grandiosa para o Império Romano que remontasse aos deuses. Era uma preocupação da época.
Cerca de duzentos anos antes, Quinto Ênio também escrevera uma epopeia com o mesmo objetivo, intitulada Os Anais. Chegou a ter algum sucesso e era ensinada nas escolas, tendo sido suplantada, nesse mister, ainda que não rapidamente, por Virgílio, que nele se apoiou para escrever sua Eneida. Escutem as palavras de Virgílio: Do esterco de Ênio retirei o meu ouro.
O motivo do fracasso de Ênio reside no fato de ele não ter se dado conta, ao que tudo indica, da mudança dos tempos. Como é fácil, hoje, dois mil anos depois, dizer algo assim! Por duzentos anos ele brilha, é recitado e estudado, até que outro o ultrapassa, e passa a ser esquecido! Ênio sonhou ser a reencarnação de Homero, e compôs Os Anais como se Homero fosse. Temos de reconhecer que Homero foi mesmo um tipo apaixonante. Em primeiro lugar, temos de registrar que ele não escrevia. Depois, ressalvada a hipótese de ter havido vários homeros, seu valor está em ter recolhido os versos recitados há duzentos anos pelos aedos, impregnando-os com força tal a lhes permitir continuarem a ser recitados por mais trezentos anos, antes de serem escritos. O que Ênio não percebeu foi o fato de Homero contar a história de homens que tinham por lei apenas sua própria consciência!
Quando Eneias está em pleno gozo amoroso com a rainha Dido, em Cartago, Zeus envia-lhe um mensageiro para lembrar-lhe que seu destino está mais adiante, na Itália. Eneias, então, abandona Dido e obedece a Zeus! É bem diferente da atitude de Aquiles, quando se recusa a combater os troianos. Agamenon, o grande comandante, é impotente frente à vontade dos homens! Cada um luta apenas pelo que considera justo. Guia-o apenas sua própria consciência! Aquiles só retorna à luta para vingar a morte de seu amante Pátroclo (é quando, de eromenós, passa a erastés). Frente à sua própria consciência, ele não tem outra coisa a fazer! O Eneias, de Virgílio, porém, já está sob as leis positivas do Império Romano, já não pode decidir apenas por sua própria consciência. O homem - representado pelo homem grego -, que até então não tinha vida interior, como nos conta o Prof. Donaldo Schüler, desse momento em diante estará para sempre dividido entre o que é por dentro e o que é por fora. Além de sua vida pública, terá uma vida íntima.
Antígona, a terceira peça do ciclo tebano, de Sófocles, já declarara este drama. A heroína, seguindo ao imperativo de sua consciência, representada nas leis divinas, vai contra a lei do Estado, representada por Creonte. E já sabemos do trágico resultado.
Em Os Lusíadas, Vasco da Gama segue o modelo de Homero: como na Odisseia, canta os feitos de um homem e, como na Ilíada, canta o espírito de um povo. Porém, como Eneias, Vasco da Gama deve obediência cega ao rei; não é súdito apenas de sua consciência.
Talvez por ter se dado conta da importância dessa mudança, Virgílio tenha sido tomado, por tantos, como modelo. Dante não tem dúvidas: Virgílio é o seu guia. Tu se’ lo mio maestro e ‘l mio autore, canta ele no verso 85 do primeiro canto do Inferno. Segue seus passos por todo o Inferno e o acompanha pelo Purgatório, onde recebe ajuda de Sordello e também de outros poetas. Mas ao Paraíso, onde lemos os versos da mais rara beleza, Virgílio já não o acompanha.
O dilema entre a submissão à própria consciência ou à legislação positiva, uma das marcas da divisão do homem, não ficou restrita a outros tempos. O herói de hoje continua dividido. O recente filme de Roger Donaldson, Seeking Justice, de 2011, que apareceu por aqui traduzido como O Pacto, mostra bem essa divisão: buscando provas para incriminar um grupo de justiceiros, que resolveram tomar a lei com as próprias mãos, ele encontra, em um livro de Edmund Burke, de 1757, a seguinte citação: Não é o que um advogado diz, que eu posso fazer, mas o que a humanidade, a razão e a justiça dizem, que eu posso fazer. Eu diria que sua alternativa à palavra do advogado, representante da lei positiva, está baseada no julgamento de sua própria consciência que hoje já não pode desconsiderar todas as conquistas sociais do homem. Esse filme aparece com o título simplificado em Uma investigação filosófica, mas na verdade ele se especifica em sua continuação, Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e do Belo (An Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful).
Os gregos, não reconhecendo sua vida interna, atribuíam-na ao exterior. É diferente de quando Dante passeia pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso, descrevendo cenas acontecidas: o destino de cada um, depois da morte, é construído pelo feito em vida; mesmo quando faz previsões, ele se vale de um retrocesso temporal para colocar no futuro fatos já acontecidos. Os gregos, esses, além dos deuses, valiam-se das Musas! Hesíodo, um poeta também oral, como Homero, descreve um encontro, havido por ele mesmo, com as Musas. Elas viviam no seu quintal, por assim dizer. Seu pai havia comprado terras no sopé do Monte Helicon, e elas viviam por aí. Abeberavam-se em uma fonte que fora aberta nesse Monte por um coice de Pégaso, e, por certo, à sombra de bananeiras. Quando viram o poeta, que ali apascentava suas ovelhas, presentearam-no com um ramo de louros, símbolo da autoridade poética. Ironicamente, Enrique Vila-Matas, em Bartleby & Companhia, diz o seguinte: - quem escreve o ditado das musas é apenas um copista!
Os sentimentos dos gregos estavam todos personificados nos deuses. Zeus é, antes de tudo, a representação do céu e da luz. Sua raiz indo-europeia é dei, com o sentido de brilhar. Lembram o que lhes dizia do fascínio pelas estrelas?! Atená, que nasceu de sua cabeça, representa inteligência e é a guerreira que protege. Hera, sua esposa, representa o ciúme, a vingança e a violência. Quando o homem sofre ou está feliz, é pela ação dos deuses que o perseguem ou que o protegem. Então ele tem que fazer por agradar os deuses, tanto para conquistar sua simpatia, como para evitar seu ódio. Hecatombes agradam os deuses! Caim matou Abel porque, na sua imaginação, Deus preferia o sacrifício da ovelha do pastor à sua messe. Os deuses adoram o aroma da carne assada! Mas quem não gosta? Prometeu foi o titã que roubou o fogo dos deuses para entregá-lo aos homens. Depois disso os homens puderam queimar a carne em holocausto aos deuses, e também se aquecer no frio e forjar metais para sua defesa e conforto. A etimologia de Prometeu começa com πρό, com o sentido deantes de, por antecipação, continuando com μῆθος, ver, observar, pensar, saber, e termina com ευς, um sufixo frequente nos antropônimos. As características de Prometeu estão presentes no homo sapiens; a espécie se repete nos seus espécimes. Tomás Abraham, um filósofo contemporâneo, em recente apresentação na Feira do Livro de Corrientes, na Argentina, não deixou de ressaltar o ato de insubordinação, presente no gesto de Prometeu. Sua infração acarretou-lhe uma dura punição, como nos contou Ésquilo. De certo modo, toda inovação, ao romper com o passado, constitui-se em transgressão.
Sófocles, na tragédia Édipo Tirano, deixa clara essa falta de reconhecimento de uma vida interior. Geir Campos, que adaptou a peça, para a Editora Vozes, ao descrever Édipo, o diz com muita felicidade: O mesmo sol que, ao despontar sobre Tebas, o viu poderoso, ao esconder-se no horizonte viu-o arruinado. Suas transformações interiores, que por certo as haviam, são registradas apenas nesses movimentos. Foi Freud quem resgatou toda essa mitologia relegada ao esquecimento pelo advento da ciência. Ele reconheceu na mitologia a personificação da vida psíquica. Diferençando o que o homem podia considerar como seu, daquilo que, não conseguindo assumir, projetava nos deuses, foi construindo seu desenho das instâncias psíquicas que hoje tanto nos ajuda na direção da análise de nossos analisantes. Quando começa a clinicar, e escutar os relatos das histéricas, aos poucos vai associando com suas leituras dos clássicos. E o Édipo Tirano, de Sófocles, parece-lhe universal: a importância dessa estrutura, que então percebeu como ternária, envolvendo o pai, a mãe e o filho, não estava, por assim dizer, restrita apenas à Santíssima Trindade. Sua conformação era decisiva na constituição de cada novo ser. Mais tarde, quando Lacan retorna à leitura de Freud, ele dirá que essa estrutura edípica é, na verdade, constituída por quatro elementos: além dos três já citados há que ajuntar também o próprio fenômeno em questão, o Édipo. O Édipo, em si, para dizê-lo com Kant, desempenha também um papel importante nessa estrutura, agora quaternária.
Nesse propósito, quando Italo Calvino, em 1991, pergunta: - Por que ler os clássicos? depois de sua primeira resposta afirmando ser, antes de tudo, por um prazer extraordinário, principalmente quando se os lê em uma idade madura, ele bem poderia ter dito que, por essa leitura, Freud chegara à invenção da Psicanálise. Mas temos de considerar também a hipótese de um livro se tornar um clássico por conseguir dizer coisas que tocam a um grande número de pessoas. Mas isso, em absoluto quer dizer que toque a todas! Balzac, por exemplo, entre os mais lidos na França, aparecerá em último lugar na Itália, e Dickens, adorado por um fã-clube fiel, na Inglaterra, na pátria adotiva de Calvino encontra apenas um restrito número de admiradores. Mas Homero, Sófocles, Ésquilo, Eurípides, Virgílio, Dante, Camões, Cervantes e Shakespeare são para sempre, para todos, em todas as partes.
Shakespeare, já mencionado, também tomou Virgílio como mestre. Citarei apenas sua última peça, A Tempestade; aparecem aí os amores de Ferdinand e Miranda, em explícita alusão aos de Eneias e Dido.
O movimento de retorno de Lacan a Freud se parece com o de Odisseu, de Homero: o nóstos de Odisseu, não é uma volta para casa, para aí ficar; ele volta para casa, para daí ir a outro lugar, para uma nova aventura. Sua volta não é apenas uma viagem a mais, como a do Ulisses de Dante que, muito provavelmente por não conhecer a língua grega, descreve sua morte: em uma viagem, na qual, depois de ter fundado a cidade de Lisboa, indo além da Taprobana, afoga-se quase às margens da ilha onde se situa o Purgatório.
Lacan, aliás, cujo ensinamento foi essencialmente oral, proferindo seminários durante vinte e sete anos seguidos, de 1953 a 1980, publicou, em 1966,um alentado livro de mais de novecentas páginas, com o singelo título de Escritos. A origem desses Escritos, por certo está em Freud, mas não só. Na abertura da coletânea, ele cita três autores, Hérault de Séchelles, Poe e Pope. De Hérault de Séchelles, ele cita Viagem a Montbard (que, tanto na tradução como na edição original, aparece sem a letra d final). Seu autor foi um jovem político que lutou na derrubada da Bastilha, em 1789, e que foi guilhotinado, como seu amigo Danton, em 1794. Em Viagem a Montbard ele menciona uma visita feita a Georges-Louis Leclerc, o Conde de Buffon, na qual falam sobre o estilo: para configurar um estilo, a principal atenção deve ser dada à precisão das ideias, dizia ele, depois vem a harmonia, que não deve ser negligenciada. Lacan, contudo, destaca uma ideia, a qual, para entendê-la é preciso anotar que Buffon não tinha os poetas em boa conta. Diz Buffon, na citação de Hérault de Séchelles: - Le style est l’homme même, me répétoit-il souvent, les poètes n’ont pas de style, parce qu’ils sont gênés par la mesure du vers, qui fait d’eux des esclaves ; aussi quand on vante devant moi un homme, je dis toujours : Voyons ses papiers. (Eu traduzo assim: O estilo é o próprio homem, repetia-me ele amiúde, os poetas não têm estilo, porque eles são constrangidos pela métrica dos versos, que faz deles escravos; assim, quando elogiam um homem diante de mim, eu digo sempre: vejamos seus papéis [no sentido, eu acredito, de vejamos seus escritos].) Dessa frase, Lacan destaca sua primeira parte – O estilo é o próprio homem –, mas ele adere a ela apenas para estendê-la na pergunta: o homem a quem nos dirigimos? Por aí podemos ver não ser o homem sempre o mesmo, dependendo sempre seu estilo daquele a quem se dirige. Um corolário desse teorema pode ser entendido na seguinte afirmativa: - Na linguagem, o emissor recebe do receptor sua própria mensagem, em sentido invertido. Por isso, uma análise iniciada com um analista jamais poderá ser continuada com outro. Com outro analista, será outra análise.
Para mostrar que, mesmo assim, não é perda de tempo endereçar uma mensagem ao outro, ele cita, de Edgar Allan Poe, A carta roubada. A mensagem que está dentro do envelope da carta, roubada à rainha por um dos ministros do rei, jamais chega ao conhecimento dos leitores, os quais, no entanto, seguem com atenção crescente tanto os movimentos do Ministro para escondê-la dos sabujos da Rainha, como os do detetive Dupin, para encontrá-la! Entre nós, não faz muito, Luiz Alfredo Garcia-Roza, um professor de Psicanálise, do Rio de Janeiro, criou um personagem inspirado no detetive de Poe: trata-se do detetive Espinosa, que fez sua estreia, na literatura, no romance intitulado O silêncio da chuva. Embora ambos tenham o mesmo espírito, no conto de Poe, contudo, percebe-se, mais claramente, o efeito de divisão propiciado pelo objeto faltante, objeto esse do qual somos todos consequência, e que revela a grande invenção de Lacan conhecida como objeto pequeno a. Quem gosta de filmes de ação, lembrará de Missão Impossível III, uma produção de Tom Cruise e Paula Wagner, dirigida por J. J. Abrams, na qual o tal pé-de-coelho cumpre a mesma função da carta roubada: os espectadores em nenhum momento ficam sabendo do que se trata, enquanto os personagens se dividem pela sua posse! – A análise de A carta roubada será o texto de abertura dos Escritos.
Alexander Pope aparece por seu poema The Rape of de Lock, composto em cinco cantos, nos quais critica, ridicularizando, a extrema delicadeza da corte da Inglaterra. Mas o que interessa a Lacan é a forma das madeixas de Belinda: seu feitio de bucle indica a circularidade do discurso, possibilitando uma leitura topológica da palavra.
Como se vê, além de nos ensinar, os textos anteriores nos ensejam e também nos ajudam a dizer o que pensamos. Oito anos atrás, em 2004, publiquei um livro que, embora modesto, tinha algo de pretensioso. Batizei-o, em parte, por contraposição ao alentado Escritos, do Dr. Lacan, com o curto título de Leituras. Eu precisava dizer, na época, que nenhum escrito é sem uma enorme quantidade de leituras. Estava pasmado com as fotografias dos escritores, quando eles apareciam, nos livros, tendo por trás uma grande biblioteca, ou escondidos, como Calvino, atrás de uma montanha deles. Esses modelos fotográficos, que antes me pareciam uma simples exibição, representavam agora o escancaramento de um aviso: Por trás de cada livro há uma enorme quantidade de outros livros! E eu tentava dizer, no meu pequeno Leituras, o que acontecia, por exemplo, a Jorge Luis Borges ao ler Miguel de Cervantes. Na leitura de Borges, eu havia ficado tocado com a influência cervantina em alguns de seus contos, de modo especial em Pierre Menard, que tinha a pretensão de reescrever o Don Quijote, letra por letra, vírgula por vírgula, sem incorrer em plágio. Tentei dizer também o que acontecera a Donaldo Schüler ao ler a Carta do achamento, de Pero Vaz de Caminha, e também quando leu As metamorfoses, de Ovídio, e mesmo o Finnegans Wake, de James Joyce. Ao examinar a retórica da subordinação e da insubordinação, na carta de Caminha, O Prof. Schüler ilumina o dealbar de nossas origens, desde a ótica das construções hipotáxicas e paratáxicas, colocando-nos como herdeiros de uma prática epistolar. Eu estava então muito impressionado com o que Gerald Thomas havia feito com o Quartett, de Heiner Müller, assim como estava surpreso com o modo pelo qual o jovem diretor Marco Fronchetti havia adaptado Eurípides. E, claro, também estava maravilhado pelo modo como Freud e Lacan leram Platão!
Platão, que viveu em um período muito próximo da cultura oral, acreditava, como os demais fundadores da filosofia, que o escrito desnaturalizava o conhecimento. Seu mestre, Sócrates, não havia escrito uma só palavra, e ele, utilizando-se da difícil arte do diálogo, bem soube o quão difícil é colocar em palavras o que se pensa. Não por nada, ele dizia: para Sócrates a palavra é o fio de ouro do pensamento. Se Platão estava preocupado com o efeito de conhecimentos parciais lido por pessoas despreparadas, o núcleo de verdade contido em sua preocupação era de que não se podia escrever tudo. O pensamento é sempre muito mais amplo do que se consegue escrever. Esse, aliás, é um dos motivos de dizer que não há relação sexual, entendendo-se emrelação, entre outros sentidos, o de relato. Por não haver o relato sexual, ainda que se tenha sempre de intercalar um intermezzo amoroso, nunca se escreverá o romance definitivo. E, por andarmos sempre às voltas com um envelope cujo conteúdo desconhecemos, temos sempre de escrever.
Se tanto o ato de ler como o de escrever são solitários, eles têm, contudo, a virtude de nos colocar na companhia de outros. Isso acontece tanto nos momentos em que se lê um escrito diante de uma plateia, quanto, por exemplo, ao acompanhar, digamos, Ishmael à Capela dos Baleeiros, em New Bedford. Eu, então, mal o conhecia. Ainda não lera um décimo das quinhentas e noventa e três páginas de Moby Dick, mas quando ele entra no silêncio abafado da igreja, para proteger-se do temporal, e começa a ler nas lápides o trágico fim dos marinheiros, cujos corpos nunca foram resgatados do mar, arrastados até nunca mais por uma baleia, ou a história do finado Capitão Ezekiel Hardy, morto à proa de seu navio, por um cachalote, na costa do Japão, em 3 de agosto de 1833, dizendo das saudades de sua viúva, eu me emociono profundamente, como se fora amigo de Ishmael, e de toda aquela gente, desde sempre. E fico grato a Herman Melville.
Reconhecidos ou esquecidos, os autores antecedentes, dos mais famosos ao nosso mais remoto, anônimo e solitário ancestral que, desde o começo dos tempos, deixava sinais de sua ânsia por companhia, são sempre suporte e estímulo dos novos. A eles nosso reconhecimento.
Luiz-Olyntho Telles da Silva (Brasil, 1943). Graduado em psicologia. Estudou Psicanálise e analizou-se em Porto Alegre e Buenos Aires. Trabalha como psicanalista, ensaísta, escritor, tradutor e professor. Em livros, publicou Da miséria neurótica à infelicidade comum (Movimento, 1989 e 2009 [2ª ed., revista, corrigida e ampliada); Freud / Lacan: o desvelamento do sujeito (AGE, 1999); Leituras (AGE, 2004); Ponto Contraponto: significante e discurso na Psicanálise (HCE, 2012) e Um elefante em Albany Street (HCE, 2012). Em 2009 estreou na literatura de ficção com o livro de contos Incidentes em um ano bissexto (EDA). Assinou as orelhas e a quarta capa do quarto volume de Finnicius Revém, a tradução brasileira do Finnegans Wake, de James Joyce, transcriada por Donaldo Schüler (Ateliê, 2002). Contato: lots@uol.com.br. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC.
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