forma que é própria forma, forma que é própria vida, que é próprio tempo
Ypý-opá
A perspectiva mais acertada para se abordar um texto criativo é a própria perspectiva da criação. A melhor maneira de se compreender - e de se fruir - uma obra de arte é sempre um mergulho nela mesma. Toda obra plenamente realizada traz em si os próprios parâmetros de apreensão do universo. Sendo invenção, urde o seu próprio ângulo, lança seu olho peculiar ao mundo e, como se o visse pela primeira vez, recria-o numa determinada perspectiva.
Numa época em que se tem a impressão de que “tudo já foi dito”, se esquece que há dois mil e quinhentos anos nosso saber comum já afirmava que “nada há de novo sob o sol”. No entanto, o mundo nunca deixou de renovar-se, e a existência nunca repetiu um momento sequer, uma mesma forma, uma mesma de suas exalações. Uma das faces da vida é de fato a da perpétua mudança, a da destruição – e renovação – contínuas. É justamente essa circularidade do saber antigo – e essa novidade contínua – que apontam o desenrolar deste Ypý-Opá, de sopa d’osso.
Utilizando-se da forma do verso Maya do Popol-Vuh, conforme fixada por Dennis Tedlock em seu ensaio The forms of Mayan verse, [1] o autor acrescenta à poética da língua portuguesa uma forma inédita, manipulada com autonomia e propósito, e também um poema complexo, que não se entrega facilmente, e cujas fontes demarcam uma área do saber nunca trafegada com suficiente segurança: a mística especulativa. Poema cosmogônico, palavra fundadora, seus 255 versos elaboram uma metafísica poética que só vai encontrar paralelos nas religiões e cosmovisões ancestrais, mas intuída e plasmada com os recursos de uma mente atual – e atenta aos percursos de seu tempo.
Aqui, como em todo texto poético, a mensagem está centrada sobretudo na expressão, e o resultado é um sofisticado objeto de linguagem cujo objetivo último não parece ser outro que o de instruir pela palavra. Palavra encantada, no caso. Magia verbal. Depositária tanto das cosmovisões ameríndias quanto daquelas auridas no corpus da tradição místico-filosófica de Ocidente e Oriente. Texto de criação, palavra da origem, parte de uma visão ancestral de religaçãoà coisa do mundo, ao que é e nos rodeia, à vida mesma e ao seu mistério - sempre insondável.
É, ao mesmo tempo,uma poesia que não admite tradição alguma. Não se vai encontrar ao longo do texto nenhuma referência a livro ou escritura anterior – e alheia – que lhe fixe a condição e a conduza por ela. É nesse sentido que se pode compreender a metalinguística peculiar do poema, ao mesmo tempo ciente de uma tradição escrita anterior e se negando a ser um derivado – ou dependente – desta:
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E DITO HÁ DE SER
Em seu princípio, representação da criação, como em inúmeros textos que tratam deste momento inicial, encontra-se o verbo, o dito, mas esse, diferentemente do texto bíblico, não foi uma vez – ainda “há de ser”. E este que haverá de ser é o próprio poema a desenrolar-se. Não o relato de um tempo passado, mas um lançar-se à sua própria trajetória. Nenhuma bíblia, nenhuma glosa como ponto de partida – mas o discurso acontecendo. A própria referência ao evangelho de João parece reforçar esta afirmação: será o próprio texto a revelação de seu conhecimento, o seu (re)conhecer-se. Embora o texto-vida incorpore as fontes anteriores, não pertence a elas, mas a si mesmo. Não há citações nem paráfrases, e as alusões, como vasos comunicantes, remetem-se umas às outras no próprio corpo do texto. Símile da vida individualizada, única e contextual, singular e derivada, autocentrada e com todos os canais de comunicação ligando-a ao mundo.
* * *
Vale discorrer mais detalhadamente acerca do verso Maya, para que se possa ter uma noção melhor dos elementos materiais dentro dos quais se vai estruturar o conteúdo. A poesia do Popol-Vuh, segundo os estudos do antropólogo norte-americano Dennis Tedlock, se organiza em estâncias de um, dois, três ou quatro versos, sem uma sequência obrigatória, mas tendo sempre em mente certos procedimentos de construção rítmica e estilística, como o encadeamento, o paralelismo e, em especial, o que os estudiosos das culturas pré-colombianas denominaram difrasismo: assim definido por Tedlock: “Significa um dístico paralelo contendo um par de metáforas que juntas expressam um único pensamento. O paralelismo no verso Nahuatl certamente favorece o dístico, mas há frequentes exceções, a mais comum sendo um terceto”. Ou ainda um quarteto, com o terceiro verso rompendo com a estrutura sintática ou padrão geral da estância. Um exemplo do próprio Ypý-Opá:
que em chama baila,
que em lume torce,
em facho troça,
que em arco brinca.
Um dos procedimentos mais interessantes de que lança mão o poema ao longo de várias de suas passagens é o uso dessa forma, desse quarteto de metáforas – que, como foi dito, busca expressar um único pensamento – procurando conter também os opostos desta imagem-pensamento. Eis dois exemplos, um quarteto e um terceto:
nuvem que ao céu envolve,
raio que à luz apaga,
que sem som vibra,
chuva que em queda torna.
em lago um rio que corre,
em ilha um mar estando,
um vento a cercar-se.
Essa recorrência de oximoros – figura literária em que dois opostos coexistem – é responsável por certa inapreensibilidade inicial do poema e por um de seus efeitos mais ímpares: a “ilogicidade” dessas imagens rompendo com nossa maneira cotidiana, condicionada, de percepção e apreensão. Desse modo, pela incapacidade de apreendermos o que não corresponde à nossa lógica, parece surgir, por um instante que seja, uma espécie de “branco mental”, uma mente vazia, que, no entanto, está apta a, no momento seguinte, intuir o que está sendo dito. Tais figuras e o seu percebimento pela psique fazem lembrar o koan do budismo Zen – charadas paradoxais e racionalmente insolúveis utilizadas pelos mestres dessa filosofia para romper com o modo de percepção a que está habituado o discípulo e levá-lo ao satori: a apreensão de um novo ponto de vista através da percepção intuitiva.
Outro ponto estrutural que se pode destacar é a repetição (sempre rearranjada) de certos termos-chave depois de aparecerem uma primeira vez associados a certo contexto semântico. Esses mesmos termos reaparecem no seguimento do texto, repetidos e recombinados em outros contextos de significados, porém sem perder, na sequência de leitura, a “áurea semântica” de suas aparições anteriores, permanecendo imantados por elas. Dessa forma há, ao longo do texto, uma sobreposição – e ampliação – dos seus diversos campos de significação. Assim o texto elabora seu discurso através de significados complexos, com palavras que associadas fora do seu ambiente pouco diriam. Isso é observável no uso de termos simples, como ponto, linha ou verbo, por exemplo, que surgem em quase todo o texto. Vejamos um exemplo com duas estâncias sequenciadas:
em mudo deserto feito,
em claro silente estado,
etéreo arfado,
em calmo imenso posto
As palavras mudo, deserto, silente, claro recombinam-se no quarteto seguinte, porém, ainda imantadas pelo campo semântico de suas associações na estância anterior, e reforçadas pela recorrência sonora nos termos não repetidos (arfado/fardo, feito/fátuo, calmo/calvo, etc.):
em fátuo deserto mudo,
em aspas silente claro,
pesado fardo,
em deposto insone calvo
Observe-se que a sonoridade das palavras é outro ponto-chave para a compreensão do poema. O texto inteiro está elaborado através de paranomásias, jogos sonoros, espelhamentos, “frases rítmicas” repetidas que são uma espécie de “elo misterioso” que o carrega de encantamento. O próprio fluxo e ritmo continuado do longo poema – 255 versos – sugerem um caráter sinfônico, de melodia infinita que se transforma e se colore à medida que avança, que expõe, retoma e retrabalha os seus temas e motivos, que se refaz numa sequência começo-meio-fim-começo infinitamente retornando sobre si mesma.
* * *
Não se vai aqui entrar numa leitura mais detalhada do sentido geral do poema. No entanto, vale ressaltar o que já a primeira vista não se esconde, como seus fundamentos místico-religiosos e sua fabulação em torno ao tema da unidade e da pluralidade da essência divina, da geração única e sua multiplicação na matéria. Desdobramento e travessia expressos com visível concisão, onde as alusões e sugestões se somam à sensibilidade e beleza das imagens para fazer do poema um ser plural e único, nascido sob o signo da polissemia, numa bem urdida isomorfia entre forma e conteúdo.
Resta desejar, pois, que cada espírito, de acordo com sua inclinação, possa pairar sobre a face dessas águas e dar o seu mergulho para empreender a fabulosa aventura do conhecimento que a todos é facultado.
TRECHO INICIAL DO YPÝ-OPÁ:
E DITO HÁ DE SER:
De uma pura simplicidade,
de um único ponto,
05 um inicial verbo.
Quando bem-mal
mal-bem era
e luz-treva
um piscar sem fim.
10 A sem-fim grandeza
em sua totalidade,
em sua montanha,
seu por-completo:
Um
15 e não mais,
e não menos
que um menos-mais,
que um,
e um apenas.
20 Só,
mente única,
mente verdadeira,
eterna,
movente em si,
25 estável em saber-se;
em si contida,
em expansão movente;
em lago um rio que corre,
em ilha um mar estando,
30 um vento a cercar-se.
O sem-medida limite
a gerar-se contínuo,
a gerar-se pai-filho,
ciente,
35 a gerar-se próprio:
um em sons,
todo;
uma em cores,
toda;
40 um em nada,
um.
Pura forma em tempo-vida,
única forma em vida-espaço,
em espaço-tempo,
45 inicial.
Forma que é própria forma,
forma que é própria vida,
que é próprio tempo
por todo medido,
50 por nada detido.
Nada em todo entre:
nuvem que ao céu envolve,
raio que à luz apaga,
que sem som vibra,
55 chuva que em queda torna.
A imensa pequenez
que em ciclo à grandeza toca,
que em volta ao limite passa,
do todo é cinto.
60 Cinto,
volta,
ciclo,
roda.
Sombra que se abarca,
65 que de seu corpo é parte.
Imagem que só imagem é,
que sólida como rocha pulsa.
Cerne,
meio,
70 ventre,
chão.
O ponto onde o ponto aponta,
a ponte onde pontas levam:
ao cinto-cerne,
75 ao meio-volta;
ao grão,
ao centro;
à semente,
ao coração
80 onde se batem,
onde se encontram,
se abraçam:
o fim-começo,
o princípio-fim;
NOTA
[1]. In: TEDLOCK, Dennis. The spoken word and the work of interpretation. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1983, p. 216-30.
Márcio Simões (Brasil, 1979). É um dos editores de Agulha Revista de Cultura. Tradutor de Gregory Corso, William Blake e Yvan Goll, é responsável pela Sol Negro Edições. Publicou uma plaqueta, O Pastoreio do Boi (2008) e escreveu Os Dias de Pólen (poemas), inédito. Participou da Antologia Poética do grupo Sol Negro (2011). Contato: mxsimoes@hotmail.com. Página ilustrada com obras de Enrique Santiago (Chile), artista convidado desta edição de ARC.
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