1. QUANDO O MORMAÇO AVANÇA: A MORTE SOLAR DE LÊDO IVO | Com Mormaço, ainda inédito no Brasil, fecha-se o conjunto da obra de Lêdo Ivo (1924-2012), conjunto até então indefinidamente aberto, desde que, em 1944, um jovem alagoano, recém-chegado ao Rio de Janeiro para estudar Direito, publicara As imaginações, a que logo se seguiram dois romances, alguns ensaios e mais sete livros de poesia, até o final da mesma década. Aos poucos, o pai, o advogado Floriano Ivo, que de Maceió lhe pedia por carta notícias sobre recursos interpostos nos tribunais superiores (então com sedes no Rio), ia se acostumando ao caminho abraçado pelo filho poeta, embora às vezes com certo desagradado, por saber pelos jornais ou por terceiros dos lançamentos, dada a demora dos correios.
Sessenta anos depois de As imaginações, ao lançar a sua Poesia Completa, em 2004, Lêdo Ivo ainda publicaria Réquiem (poesia), O ajudante de mentiroso (ensaio), E agora adeus(correspondência passiva), O vento do mar (seleta de prosa e poesia) e Alagoa australis (seleta de poesia com temas alagoanos), traindo reiteradamente o título do alentado volume de quase 1.100 páginas, o que apenas confirma os versos dedicados ao pai, em Justificação do poeta, poema do livro primeiro: “Pai, meus pensamentos não cabem na tua sala com piano tranquilo a um lado e escuras cadeiras vazias perto da janela”. E por causa de coisas desse tipo, Sérgio Buarque de Holanda diria que aquele jovem era um poeta “de versos longos e nome curto”, em uma geração de “nomes longos e versos curtos”.
Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva, Fernando Ferreira de Loanda e o mais famoso de todos – João Cabral de Melo Neto, a que parte da crítica nega sistematicamente o pertencimento à Geração de 45 −, seriam alguns desses “nomes longos” afeitos a uma poética de concisão e clareza, quadro que oferecia ao crítico o bem humorado paradoxo. Quanto a Lêdo Ivo, em 1954 já surpreendia Sérgio Milliet, uma das vozes mais prescritivas de então, mas que, diante da coletânea intitulada Um brasileiro em Paris, iria elogiar “a forma condensada e fortemente sugestiva do livro”, acrescendo, em tom de mea culpa: “percebo que na verdade esse homem é múltiplo e há que esperar dele muitas renovações como a atual”.
A multiplicidade, uma das seis propostas de Ítalo Calvino para o milênio que já foi próximo e é atual, parece ter sido a grande marca da atividade literária de Lêdo Ivo, cujos “versos longos”, mais abundantes nos primeiros dez anos de escrita, continuariam ocorrentes, porém convivendo com formas curtas, medidas ou não, do sonetilho ao haicai, e até os aforismos espalhados em obras de enquadramento difícil (memorialismo? ensaísmo?), como O aluno relapso eConfissões de um poeta.
É essa variedade formal que se vê em seu último volume de poesia, Mormaço, até o momento publicado apenas na Espanha, aonde Lêdo Ivo ia com frequência nos últimos anos, conhecendo ali uma recepção literária mais intensa e entusiasmada que no Brasil do tal milênio. Em solo espanhol o poeta partiu para o desconhecido, deixando inacabada a última viagem, o que talvez agradasse (ou agrade) à sua consciência, já que celebra a incompletude no primeiro poema de Mormaço (esta e as demais citações de poemas foram colhidas na edição espanhola: Vaso Roto Ediciones, 2011):
O DIA INACABADO
Como todos os homens, sou inacabado.
Jamais termino de ser.
Após a noite breve um longo amanhecer
me detém no umbral do dia.
Perco o que ganho no sonho e no desejo
quando a mim mesmo me acrescento.
Toda vez que me somo, subtraio-me,
uma porção levada pelo vento.
Incompleto no dia inacabado,
livre de ser ainda como e quando,
sigo a marcha das plantas e das estrelas.
E o que me falta e sobra é o meu contentamento.
Não temos mais o poeta que buscava impactar o leitor com uma imagem non sense, como faz em Linguagem, obra de 1951, cujo primeiro verso declara: “Minha vida é uma janela aberta sobre a Ásia”. Entretanto, a janela continuaria aberta, acessível a múltiplas formas e possibilidades criativas: Mormaço reúne verso livre e medido, curto e longo, e ao mesmo tempo confirma a persona viajante do autor e seu apego ao imaginário da terra natal alagoana.
Esse último tópico, aliás, responde pelo título. Mormaço é o clima acachapante, de calor intenso e sem vento: a canícula tão comum em cidades nordestinas, Maceió inclusive. E não é a primeira vez que o poeta tira partido do signo: mormaço é palavra que já compunha o vocabulário poético de Lêdo Ivo, aparecendo em obras anteriores, como é o caso da “leve mortalha de mormaço e salsugem” que, “do nascimento à morte”, recobre os nascidos em Maceió (poema Planta de Maceió, de Finisterra).
Deslocado, porém, para título de um livro, a palavra ganha em potencial de significação. Diante de um poema em que se louva o silêncio de um rádio com as pilhas gastas, embora o poeta não reproduza a ambiência da palavra-título, um pequeno trecho de verso – “O sol é silencioso e nos ilumina” – parece lembrar ao leitor que estamos diante de uma atmosfera radiosa (com o perdão do trocadilho).
Além da luminosidade, o título pode sugerir o momento estático de parada, o “ponto morto” ou mesmo o ponto final. Hoje sabemos que Lêdo Ivo tinha saúde frágil – embora sua vitalidade faça a informação soar como uma mentira, ou justificativa para a morte de quem, aos 88 anos, dividia seu “tempo livre” em palestras, viagens dentro e fora do Brasil, colaborações em reedições alheias (como o posfácio sobre Jorge Amado em Navegação de cabotagem, comemorando o centenário). Mas, possivelmente o autor contava que Mormaçoiria ser o seu último rebento, embora se afirmasse sempre incompleto e inacabado, com isso estabelecendo uma tensão criativa − para o leitor, sobretudo, que deverá considerar o título da obra precedente, O vento do mar, como outro termo simbólico, o último sopro da mobilidade. Em um poema forte e cálido (na dupla acepção de quente e terno), Lêdo Ivo traça o paralelo entre o mormaço e a morte:
O CORAÇÃO PRESUNÇOSO
De nada adianta
negar a verdade.
Não temos passagem
para a eternidade.
O mormaço avança
e envolve a cidade.
Tudo é provisório.
Nada é realidade.
Estamos no escuro
como no cinema.
Coração impuro,
qual o teu problema?
Queres ser eterno.
Como és presunçoso!
Além das estrelas
não há nenhum pouso.
O ritmo binário, mas sem marcação rigorosa, provoca uma espécie de desencontro entre o tema e sua formulação. Quem é esse “eu” que se acerca do próprio coração e de sua vanitas diante da morte, como um pai diante do berço? É um Lêdo Ivo que atingira a simplicidade, em que os recursos expressivos de tal modo se encontravam incorporados à sua dicção que nada mais parecia artificioso, forçado. E então o desencontro se converte em encontro, o momento máximo de possível aceitação de nossa condição provisória, demasiado humana. Não há grito nem desespero, e mesmo em uma balada em que glosa D. João de Menezes, o glosador parece deleitar-se em não desesperar:
Desespero mais houvera
eu não desesperaria.
Desesperar é querer
pois quem desespera espera
antes que se ponha o dia
de duas águas beber.
São águas da mesma fonte
paridas no mesmo monte:
a água clara da alegria
e a água salobra da mágoa
que, de amarga, sabe a lágrima.
O conhecimento do final perpassa Mormaço, mas não conduz o poeta a nenhum paroxismo. Seu memento mori é quase sempre sereno e não raro bem humorado. Alheio “à vida que poderia ter sido e não foi”, o velho Lêdo Ivo, com sua vida que sempre foi e ainda era, apurava o ouvido e captava em novo diapasão o que pudesse haver de lírico no desenlace. Em um dos poemas mais tocantes, a consciência da morte é como um “estremecimento”, como “algo quase inaudível, rumor brando/ de granizo durante a madrugada/ ou graveto caído de uma árvore”:
Era um sopro fremente, uma passagem
desprovida de sombra e identidade.
Era o pouso no chão de um passarinho,
o rastejar de um bicho na floresta,
um ninho derrubado pelo vento,
um passo tenebroso no caminho?
Eu não sei se era a vida que partia
ou a morte que chegava de mansinho.
Em outros momentos, porém, prevalece o Lêdo Ivo sarcástico, aquele que não hesita em escarnecer da própria morte. Esta é a “puta sôfrega” que “não respeita a nossa privacidade”, como escreve em A ronda da morte. E, diante dessa dama a ser ultrajada, alguns temas da vida literária fornecem o mote para as deliciosas especulações de O poeta e o professor ou para as advertências de Conselho a um velho poeta: no primeiro, o poeta rebate as profecias de um professor-crítico que insiste em lhe negar sobrevivência; no segundo, aconselha seu duplo a despojar-se de todos os arquivos (o que de certo modo fizera o próprio Lêdo Ivo, ao doar em vida seu acervo ao Instituto Moreira Salles, no Rio, e ao Memorial que leva seu nome, em Maceió).
Interessante, nesse ponto, ressaltar a coerência criativa de Mormaço, pois o livro não é um mero amontoado de poemas escritos profusamente, como um adeus espalhafatoso, de quem procura assegurar-se do aceno. O próprio signo “mormaço”, quando não está diretamente relacionado ao ambiente dos poemas, à sugestão de morte que domina o livro, ocorre discretamente, como quando o poeta replica ao professor:
Tua rubrica é futrica.
Teus decretos prematuros
são erros crassos,
falácias que o futuro
e o mormaço
mudarão em fumaça.
A sonoridade áspera – “aço” – é uma constante reaproveitada. É por ela que o poeta, em vários momentos desse livro magno, procura comunicar ao leitor a sensação desagradável desse zênite, não de todo alheio ao medo, embora vivido sem fuga ou lamentações. Aproximando-o de substantivos como “calçada” ou formas verbais como “faço-te” (nos poemas Os passos na calçada e Decerto ou talvez), Lêdo Ivo faz rebrilhar o que era palavra perdida, moeda azinhavrada nos dicionários ou na oralidade.
Como imagem, em sua potência visual, o mormaço lediano é um signo de clareza mórbida. O poeta divaga sobre praças vazias (em Os sinos de Maceió) e assassinados pela violência endêmica em sua terra natal (no perfeito Alameda), violência que, já denunciada desde o romance “Ninho de cobras”, da década de 1970, até hoje atualíssima: no último censo, a capital alagoana permanece em destaque nos infográficos de homicídios. Clara, solar, diurna e até celebratória – “Tudo é sol, tudo é sol”, como exclama em “Regresso a Jaraguá” – a morte, para o Lêdo Ivo final, não encontrou nos signos usuais da convenção literária – escuridão, treva, sombras – o seu correlato imagístico. O que nos faz lembrar um soneto da 1951, intitulado “Da comparsaria”: “A mão da morte pousa no meu ombro/ onde uma cicatriz de luz transborda./ E eu, que sou transitório, vivo o assombro/da rotina do eterno que me aborda.” Agora, com seu Mormaço, a “cicatriz de luz” voltava a transbordar em Lêdo Ivo:
Sempre caminhei
entre luzes e sombras
e agora a claridade
do mundo me assusta.
E uma mão invisível
de Deus? de mim? dos homens?
pousa no meu ombro
junto ao mar dourado.
Foi essa mão invisível e solar que pousou no ombro do poeta na Espanha, às vésperas do Natal de 2012, quando ainda fazia planos − conforme soubemos pelas entrevistas de seu filho Gonçalo − de cruzar a pé uma ponte sobre o Guadalquivir. A nós, brasileiros, resta aguardarmos que a poesia seja repatriada e a viagem se complete.
2. DE JANTARES, FACAS E TAÇAS: UM ANTIEPITÁFIO PARA LÊDO IVO | A literatura brasileira é suficientemente vacinada contra os males do excesso. João Cabral ridicularizou o estilo de “janta abaianada”, reunindo no mesmo prato sujo de azeite o retórico Rui Barbosa e o oralizante (e a seu modo retórico) Jorge Amado. O poema se chama “Graciliano Ramos” – isso mesmo, se chama, tamanha a identificação com o autor de Angústia, que aliás detestava esse livro, por lhe parecerem excessivas as divagações de Luís da Silva. E levando-se em conta que Machado de Assis, com seus capítulos curtos e estética fragmentária, é o responsável pela grande revolução realista no século XIX, o corte operado na produção anterior – de que Alencar é o maior exemplo −, será também uma ruptura estilística, não apenas temática ou de concepção literária. No século XX, a “poética do menos” – na feliz expressão de Antonio Carlos Secchin sobre João Cabral −seria abraçada com furor também por autores que, conjugando a literatura ao jornalismo ou à publicidade, entronizariam a estética do pouco, à la Hemingway, cabendo lembrar, aleatoriamente e apenas como exemplo, dos melhores momentos de Fernando Sabino – porque, de Uma faca só lâmina à sua Faca de dois gumes a distância pode ser um fio.
Nesse quadro, fica mais difícil entender a existência de Lêdo Ivo, que exerceu o jornalismo durante anos, embora advogado de formação (como, aliás, a maioria dos escritores de seu tempo). Mas o laconismo do lead e a obsessão pela comunicabilidade não seduziram o autor de Ninho de cobras, romance com que ganharia, na década de 1970, o Prêmio Walmap, o mais vultoso da época, após ter sido rejeitado por duas editoras. A obra é a consagração da estilística do excesso: embora seja relativamente pequena, os parágrafos são longos, e o narrador demonstra especial prazer nas enumerações caóticas, recurso largamente utilizado pelo Lêdo Ivo poeta (veja-se, por exemplo, a Ode ao crepúsculo). O subtítulo de “história mal contada”, aliás, tem relação com esse parentesco entre a prosa e poesia em Lêdo Ivo, que amava a arte de Raul Pompéia e Walmir Ayala, os representantes máximos daquilo que, em seus ensaios, chamava de “romance poemático”.
Desde logo confrontado com uma crítica que parecia ecoar os mesmos pressupostos estéticos de sua geração − pelo menos no que tocava aos imperativos de concisão e clareza −, Lêdo Ivo se viu ante o dilema de ceder a vozes como Álvaro Lins, Sérgio Milliet e Sérgio Buarque de Holanda, ou perseverar escrevendo prolificamente (em vários gêneros e de vários modos), e pagar o preço de sua diferença. Optou pelo segundo caminho, se é que isso é um ato deliberado – seguir o próprio rumo, afirmar aquilo que o ensaísta A. Alvarez chama de “a voz do escritor”. Mas a malfadada Geração de 45 seria uma sombra a rondar Lêdo Ivo durante toda a vida, sombra de recepção literária que, todavia, não podemos enxotar no espaço de um artigo.
Mais proveitoso, diante das dimensões oceânicas de sua obra, agora finalmente concluída com a morte do autor – ao morrer na Espanha, às vésperas do Natal de 2012, o poeta já havia acrescentado mais cinco títulos à sua bibliografia, desde a publicação, em 2004, da Poesia Completa –, pois mais proveitoso, dizíamos, é enumerar algumas linhas mestras, ou portas de entrada para quem tenha a curiosidade de iniciar ou aprofundar o conhecimento da obra lediana.
O caminho mais óbvio, claro está, é o da poesia, e então o leitor terá que afeiçoar-se a um discurso poético às vezes contraditório consigo mesmo, a uma lógica de palinódia constante. Um traço contínuo, pode-se dizer, é a pactuação do poeta com a matéria, o que, todavia, não implica materialismo: ao falar de água e fogo, vento e terra, aí também espreita Deus, pois este foi o rumo que tomou particularmente sua inquietação metafísica. Há um gnosticismo em Lêdo Ivo, ainda inexplorado e rico de possibilidades, mas também há o poeta do cotidiano e o sarcástico, jamais alinhado à representação apiedada e pequeno-burguesa dos pobres: uma voz que não se intimidava em expor a rejeição, e que exigia do leitor posição crítica ou caritativa que nos acostumamos a querer apenas no papel (ou na tela, o que dá no mesmo).
Aos leitores preferenciais de prosa: há que conhecer o Lêdo Ivo ficcionista, mais divulgado pelo já referido Ninho de cobras, mas também autor de um instigante A morte do Brasil, que de certo modo continua o primeiro em nova perspectiva. Nessas obras, a que um paladar menos exigente também ajuntaria realizações da juventude – O caminho sem aventura e As alianças –, tem-se uma das grandes temáticas ledianas, a errância, pois o mote de todos é o partir ou ficar no lugar de nascimento. A narrativa curta, conto ou crônica, também segue o mesmo rumo do “romance poemático”, e Lêdo Ivo terá escrito pelo menos um conto antológico, A resposta: o tema são as sugestões de um nome próprio (“Serafim Costa”) na memória de um jovem, que mais tarde baralha impressões e sensações, e revive aquela primeira percepção deslumbrada, como em uma espécie de arqueologia da relação homem-palavra.
Finalmente, a quem abusar desses temas ou de suas formulações, resta o ensaísta, pois nos textos de livros como A ética da aventura ou do mais recente O ajudante de mentiroso encontramos aquela joia rara (cada vez mais rara) do ensaísmo não acadêmico, onde talvez se ofereça o Lêdo Ivo mais inteiro: paixão irrefreada pela leitura, reflexão provocativa e o olhar certeiro de quem sabe colher em uma obra clássica o dado menos óbvio, porém relevante, como o desempenho de José Dias na trama de Dom Casmurro. Será também nos ensaios que Lêdo Ivo insistirá na valorização da literatura assim chamada infanto-juvenil, e banida das histórias literárias como menor, ou mero “entretenimento”: a partir de suas memórias de leitor menino, da Coleção Terramarear, questiona o lugar de autores esquecidos, como o Emílio Salgari das histórias de marinheiros.
Uma pausa: ao escrever este artigo, e evocar o Lêdo Ivo ensaísta, dou-me conta do quanto havia ali de desconstrutor, embora esta palavra, aportada pelo pós-estruturalismo em nossa crítica atual, seja utilizada apenas para alguns autores e obras, como se houvesse um selo de origem controlada, impedindo a leitura indistinta e libertária. E me pergunto mesmo se as críticas feitas a essa corrente, que hoje domina nosso pensamento crítico, não se ressentem do mesmo vezo, isto é, de não se procurar uma maleabilidade de conceitos teóricos como desconstrução, descentramento ou reversão, para citar alguns que o jargão acadêmico consagra. Seria o caso de buscarmos em um termo caro a certo desafeto de Lêdo Ivo – a antropofagia – o velho e novo diapasão de assimilar o que é do Outro e torná-lo nosso, sem quaisquer prevenções. Mas por que não?
Até em textos aparentemente reacionários, como o Epitáfio do Modernismo, escrito nos anos 1960 como introdução a uma antologia da Geração de 45, a leitura mais atenta poderá sobrelevar o discurso sobre uma modernidade aportada não apenas em São Paulo e não apenas em 1922, mas anterior e dispersa. A mesma leitura desse e de outros ensaios de Lêdo Ivo sobre o modernismo (Lição de Mário de Andrade, por exemplo), traria surpresas a quem se dispusesse à aventura: ali encontramos tanto o desagrado com o poema-piada modernista, um dos principais pontos de ataque dos grupos de 45, quanto à revalorização do Mário de Andrade artífice do verso, ou a crítica a um Raul Bopp obcecado em múltiplas reedições de Cobra Norato, cada uma com mais cortes que a anterior.
E aqui voltamos da pausa. Porque essa última observação reitera o que dizíamos na abertura do artigo: que uma das marcas mais significativas da trajetória literária de Lêdo Ivo está em afirmar uma potência positiva do excesso. Se reprovava em Bopp a obsessão pelo corte de palavras e até versos inteiros, em um poema que afinal admirava e cujos ecos repercutem até na sua Ode equatorial, aí temos o Lêdo Ivo de sempre, marcando sua diferença estética em um cenário ortodoxo − cenário do menos e talvez do pouco. Porque, olhando-se bem, nem todo excesso é meramente decorativo, e nem toda sobra é expurgo. Se a desconfiança cabralina em relação ao signo linguístico demonstra a “serventia das ideias fixas” – tornou-se a mais bem sucedida empresa de consenso estético de nossa literatura: mais persuasiva e mais ampla, talvez, que a própria antropofagia −, há um duplo-fundo na proscrição apriorística de todo recurso retórico: esse menos esconde o que possa haver de expressivo e rico no mais. Esconde tanto sua potência de ênfase quanto de devaneio, e oblitera sua natureza de vida, o lado dionisíaco do festim que, como em As bacantes, o rei se nega a oferecer ao deus – embora advertido pelo velho Tirésias, impotente para evitar a tragédia.
À crítica que, em jovem, lhe reprovara o excesso na extensão dos versos, mas também na prática reiterada de vários gêneros, Lêdo Ivo ofereceu a resposta de sua persistência, resposta que não corresponde meramente a uma teimosia, mas encontra ecos fundos em sua constituição artística. Apropriou-se criativamente do epíteto de “derramado”, tirando partido da imagem subliminar que remete à água, o elemento por excelência do excesso e da transformação. E com essa ideia do “derramamento” configurou um discurso metaliterário em sua poesia, associando-o ao imaginário de águas de sua terra natal, Alagoas: os livros estão cheios de chuvaradas, rios transbordantes, penínsulas que são ilhas incompletas, lagoas doces e salobras, e sobretudo de mar − signos com que fala de si mesmo, da literatura e do ser humano diante da natureza. Criaria, assim, uma nova genealogia, em que também entrava outra ordem de reapropriações: descendente longínquo do povo caeté, dos índios que, nos primórdios da colonização, devoraram o primeiro bispo do Brasil em uma praia de Alagoas, Lêdo Ivo reivindicava para si, entre sério e jocoso (era difícil precisar), o estatuto de legítimo antropófago; e ao paulista Oswald chamava de “antropófago de papel”.
Uma disputa, como se vê, que se estende à mesa, como no poema de Cabral. Ou talvez comece nela: o desencontro entre Lêdo Ivo e Oswald, que vai contado na versão do primeiro em Confissões de um poeta, ter-se-ia dado após um almoço (ou jantar?) cujo final fora apressado por Oswald, ocupado como estava em “terminar um romance proletário”. Conta Lêdo Ivo que saíra comentando com terceiros o que lhe parecera a mais bela blague oswaldiana, isto é, o escritor “proletário” concluindo rapidamente seus últimos acepipes para afinal dedicar-se à grande causa antiburguesa. A isso Oswald, que perdia o amigo mas não a blague, não perdoaria: preferindo o sacrifício de ambos, obteve, influente como era, a demissão de Lêdo Ivo de um jornal. Verdade, mentira, meia verdade ou meia mentira, o fato é que o episódio coloca mais uma vez na mesa a discussão literária.
Ao morrer após um jantar que com muita chance de certeza foi lauto, o poeta Lêdo Ivo deixaria, inédito no Brasil, um livro de poemas, Mormaço, publicado até agora apenas na Espanha, pela Vaso Roto Ediciones. São 121 poemas em que há um pouco de tudo: verso livre e medido, soneto, sonetilho, balada, glosa, litania, temas “altos” e “baixos” e poemas que são apenas anotações líricas, irmãos gêmeos da prosa memorialística e reflexiva que gostava de praticar. Ao contrário do epitáfio que João Cabral lhe dedicou em vida – nos tempos em que essa discussão era vivida na clave da amizade e do gracejo −, não morre “livre de todas as palavras”, mas em meio a elas, pleno e senhor. Ele próprio se pensa uma palavra:
As palavras são pássaros migratórios
que nos incitam a partir para as montanhas.
São estrelas errantes. São navios.
E eu sou uma palavra: estou sempre andando
no mundo que é caminho.
O livro último confirma a estética lediana do excesso. Diante dessa obra, magna até pelo tamanho – e que não poderíamos resenhar em espaço tão curto! −, ficamos achando que o poeta ancião nos está a advertir, como o velho Tirésias de As bacantes, sobre a importância de brindar mais uma vez a Dioniso. Ergamos a taça!
Wladimir Saldanha (Brasil, 1977). Poeta, narrador, ensaísta. Autor de As culpas do poema (poesia, 2012). Contato: 1107@terra.com.br. Página ilustrada com obras de Lucerbert (Holanda), artista convidado desta edição de ARC.
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