Vicente García-Huidobro Fernández nasceu em 10 de janeiro de 1893 em Santiago do Chile. Sua formação literária se deu em ambiente cultural bastante marcado pela presença do modernismo, consolidado na América Latina por Rubén Dario (1897-1916). Seu primeiro livro, Ecos da alma, de 1911, assume a poética modernista e demonstra influências românticas via Bécquer e Heine. Os livros seguintes (Canções na noite e A gruta do silêncio, ambos de 1913) já irão revelar um Huidobro em luta aberta contra os modelos poéticos herdados e contra a sociedade estabelecida. Na época diz o poeta, de maneira bem ‘modernista’: “Deixemos de uma vez por todas o velho... Em literatura quero tudo que seja inovação. Tudo que seja original. Odeio a rotina, o clichê, o retórico... Odeio todos os ruídos das correntes que atam. Odeio os que sonham com o antigo e pensam que nada pode ser superior ao passado... Amo todos os ruídos das correntes que se rompem... Admiro os que percebem as relações mais distantes das coisas...” Em 1914, vai defender em conferência a necessidade de uma poesia que não siga sendo imitação da natureza, imagem mimética, e sim criação de mundos próprios, independentes do mundo real. Em 1916, ano de publicação de O espelho de água, segue com a família para a Europa: sua meta é Paris, capital da vanguarda internacional. Na capital francesa travará relações com Apollinaire, Picasso, Juan Gris, Jean Cocteau, Diego Rivera, Pierre Reverdy e outros.
Publica seus primeiros poemas em Paris (o pintor Juan Gris, grande amigo, ajudará o poeta na tradução dos versos para o francês) na revista Nord-Sud, que, no dizer do ensaísta Federico Schopf, “aspirava representar a tendência cubista em literatura e que reconhecia em Apollinaire o poeta que nesse momento havia traçado novas rotas, aberto novos horizontes”. É deste período a proposição, por Huidobro, do Criacionismo, forma de poesia radicalmente nova que pensava a criação de um mundo poético paralelo e independente do mundo real. Poder-se-ia falar, assim, do Criacionismo ser um paroxismo criativo, uma obcecada procura do novo, conforme a boa tradição do modernismo. Ao longo dos anos o poeta vai amadurecer essas idéias: ainda segundo Schopf, “o sujeito da poesia criacionista desenrola suas imagens em um estado de ‘delírio poético’ em que convergem a mais inusitada imaginação e uma extrema consciência. O poeta deve ser ativo: não se deve entregar passivamente à inspiração nem reduzir-se a mero veículo da exteriorização do inconsciente (que é a crítica que Huidobro faz ao Surrealismo). O poeta criacionista há de controlar sua escritura e dominar as técnicas que o permitam realizar suas intenções estéticas”. Huidobro vai dizer em conferência em 1916 que com o Criacionismo ele imagina construir um universo autônomo de signos, com sua “fauna e flora próprias”. Em 1918 publicará quatro livros: Poemas árticos, Equatorial, Torre Eiffel e Hallali.
A genealogia estética de Huidobro pode ser identificada com clareza: em um primeiro momento se influencia fortemente pelo Romantismo europeu; a seguir, cultiva o Simbolismo, antes de se alistar na linha de frente das vanguardas estéticas das primeiras décadas do século 20, passando a trabalhar com toda sorte de experimentação da linguagem. O poema “Arte poética” é quase um manifesto do ‘criacionismo’ huidobriano. Ouçamos o poeta:
Que o verso seja como uma chave
Que abra mil portas. Uma folha cai, algo passa voando; O que os olhos vejam, criado seja, E a alma do ouvinte permaneça fremindo.
Inventa mundos novos e cuida de tua palavra;
O adjetivo, quando não dá vida, mata.
Estamos no ciclo dos nervos.
Pendura-se o músculo, Como lembrança, nos museus; Mas nem por isso temos menos força: O vigor verdadeiro Reside na cabeça.
Por que cantais a rosa, oh Poetas?
Fazei-a florescer no poema; Somente para nós Vivem todas as coisas sob o Sol.
O Poeta é um pequeno Deus.
A poesia criacionista foi um dos principais fermentos para a elaboração do Ultraísmo e serviu de inspiração também para muitos aspectos das obras de importantes poetas da geração de 1927 na Espanha, entre eles Rafael Alberti, Jorge Guillém, Vicente Aleixandre, Dámaso Alonso e Federico García Lorca. Em 1918 Huidobro participa do movimento dadaísta, colaborando em publicações sob o comando de Tristan Tzara. Em 1927 instala-se em Nova York; conhece então Charles Chaplin, Douglas Fairbanks e Gloria Swanson, e colabora na revista Vanity Fair. Em 1931 publica Tremor de céu e Altazor ou a viagem em paraquedas, longo poema-livro em sete cantos e um prefácio, obra-prima de Huidobro. Neste mesmo ano, assiste ao recital Poeta em Nova York, de Federico García Lorca. Após regressar ao Chile, o poeta passa a militar no Partido Comunista em 1933. Em 1935 mantém acirrada polêmica política com o conterrâneo Pablo Neruda. Em 1936 retorna à Espanha para lutar contra o regime do general Franco (neste ano o regime franquista irá prender e fuzilar García Lorca). As diferenças políticas entre Huidobro e Neruda vão alcançar a Europa: de Paris a Associação Internacional dos Escritores pela Defesa da Cultura envia carta aos dois grandes poetas chilenos convidando-os a deixar de lado as diferenças pessoais em benefício da causa comum, o triunfo moral e material sobre o fascismo (assinavam a carta, entre outros, Tristan Tzara, César Vallejo, Alejo Carpentier e Juan Larrea). Em 1940 rompe com o Partido Comunista, em decorrência do pacto germano-soviético. Em 1941 publica Ver e apalpar e O cidadão do esquecimento. Alista-se nas tropas aliadas, entrando com elas em Berlim; na ocasião, transmite crônicas de guerra para A Voz da América. É ferido duas vezes e recebe baixa. Em Londres conhece Raquel Señoret, jovem chilena com quem regressa ao seu país. Por pura fanfarronice de teor futurista afirmava que, durante a invasão de Berlim, conseguiu para si o aparelho telefônico particular do próprio Hitler, levando tal troféu para o Chile como despojo de guerra. Instala-se em Cartagena em 1946, onde falece em 1948, aos 55 anos de idade.
A pouca divulgação da obra de Huidobro no Brasil, assim como da maior parte de outros importantes poetas hispano-americanos da mesma época, se deveu a variados motivos. De modo sumário podemos lembrar, em primeiro lugar, da pouca circulação da nossa própria poesia simbolista no início do século 20. Os nossos simbolistas, Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens à frente, estavam mergulhados em quase completo esquecimento naquele período. Os modernistas foram os responsáveis pelo início do resgate da estética simbolista entre nós. A obra completa de Alphonsus de Guimaraens, por exemplo, só foi publicada pela primeira vez em 1938, 17 anos após a sua morte, pela mão de Manuel Bandeira. De outra parte, a poesia de extração surrealista também foi praticamente ignorada no Brasil de então. Apenas dois poetas modernistas, Murilo Mendes e Jorge de Lima, se deixaram influenciar por formulações do surrealismo. Não podemos ainda deixar de lembrar que o rompimento de Huidobro com o Partido Comunista em 1940 também ajudou em muito na projeção de uma extensa área de silêncio em torno de seu nome, inclusive com a emergência de uma crítica de caráter ideológico em relação ao Criacionismo defendido pelo poeta, que passa a ser considerado como de concepção ‘aristocrática’ (certamente aqui se localiza o preconceito em relação às origens do poeta, filho de família aristocrática e rica no Chile). Octavio Paz vai dizer que na década de 1940 a poesia hispano-americana se dividia “em duas academias: a do ‘realismo socialista’ e a dos vanguardistas arrependidos”, o que fechava muitos espaços para a divulgação da poesia livre/libertária, de cunho futurista de Huidobro (mas, é bom que se diga, um ‘futurismo’ em que aviões, paraquedas e telescópios — o novo — dialogavam dialeticamente com árvores, rosas e rouxinóis — o tradicional). Podemos ainda assinalar que, no Brasil, além do fator político, de um lado, e de não ter encontrado solo propício em meio às tendências estéticas da década de 1940, de outro, o silêncio sobre Huidobro se deveu, por último, à ojeriza das vanguardas formalistas/racionalistas das décadas de 1950 e 1960 (Concretismo e Práxis à frente) no que diz respeito à ‘extensão’ textual e à lírica ‘delirante’ de qualquer espécie. Neste caso, por óbvio, obras informadas pelas proposições dadaístas, futuristas e surrealistas eram tidas como habitantes do ‘dinossáurico’ universo da compulsão retórica. Como defender, desse modo, a vigorosa poesia de largo fôlego de Huidobro?
Após essa ligeira contextualização histórica, penso ser interessante examinar agora alguns fragmentos de uma conferência pronunciada pelo poeta em Madrid, no ano de 1921, para que possamos melhor compreender o pensamento de Huidobro sobre o fenômeno poético. Diz ele: “Além da significação gramatical da linguagem existe outra, uma significação mágica, que é a única que nos interessa. Uma é a linguagem objetiva que serve para nomear as coisas do mundo sem apartá-las de sua qualidade de inventário; a outra rompe essa norma convencional, e nela as palavras perdem sua representação estrita para adquirir outra mais profunda e como que rodeada de uma aura luminosa, que deve elevar o leitor do plano habitual e envolvê-lo numa atmosfera encantada. Em todas as coisas há uma palavra interna, uma palavra latente e que está debaixo da palavra que as designa. Esta é a palavra que o poeta deve descobrir”.
Vejam vocês: ao falar de “significação mágica” da linguagem, de imersão profunda em uma “atmosfera encantada” e coisas semelhantes, percebemos Huidobro muito mais próximo dos caminhos visionários de um William Blake ou de um Arthur Rimbaud do que propriamente da maior parte dos poetas das vanguardas do início do século 20.
E prossegue Huidobro: “O poeta cria, fora do mundo que existe, o que deveria existir. Eu tenho direito a querer ver uma flor que anda ou um rebanho de ovelhas atravessando o arco-íris, e quem quiser me negar esse direito ou limitar o campo de minhas visões deve ser considerado um simples inepto. O valor da linguagem da poesia está na razão direta de seu afastamento da linguagem que se fala. Isto é o que o vulgo não pode compreender, porque não quer aceitar que o poeta trate de exprimir apenas o inexprimível”.
E continua o poeta, dando mais uma vez voz às suas ideias ‘criacionistas’: “O poeta faz mudar de vida as coisas da Natureza, recolhe com sua rede tudo aquilo que se move no caos do inominado, estende fios elétricos entre as palavras e ilumina subitamente rincões desconhecidos, e todo esse mundo estoura em fantasmas inesperados”.
Para se ver como Huidobro coloca tais ideias em prática, nada melhor que lermos alguns trechos do longo poema-livroAltazor, este desconcertante, lírico/retórico, integrador/desintegrador, racional/surreal, experimental/tradicional, louco/lógico, trágico/mágico e, essencialmente, belo poema de tom épico, na verdade um dos mais belos poemas escritos no século passado. Altazor é uma palavra-valise nos moldes de Lewis Carroll (ou seja, fusão de palavras para produzir outros sentidos): em um dos versos do poema se lê “Aqui jaz Altazor, açor fulminado pela altura” (como se sabe, ‘açor’ é uma ave de rapina semelhante ao gavião, e menor que a águia, que vive na América do Norte, Europa e Ásia). Alto açor. Mas vamos aos versos de Huidobro, por mim traduzidos e constantes de Fogo alto (Catulo, Villon, Blake, Rimbaud, Huidobro, Lorca e Ginsberg), livro que acabo de editar pela Azougue Editorial do Rio de Janeiro:
Os veleiros que partem para distribuir minha alma pelo mundo
Regressarão convertidos em pássaros Uma bela manhã alta de muitos metros Alta como a árvore cujo fruto é o sol Uma manhã frágil e lacerável À hora em que as flores lavam a cara E os últimos sonhos fogem pelas janelas
[…]
O mundo entra em mim pelos olhos
Entra pelas mãos entra pelos pés Entra pela boca e sai Em insetos celestes ou nuvens de palavras pelos poros Silêncio a terra vai dar à luz uma árvore Meus olhos na gruta da hipnose Mastigam o universo que me atravessa tal um túnel Um calafrio de pássaro me sacode os ombros Calafrio de asas e ondas interiores Escadas de ondas e asas no sangue Quebram-se as amarras das veias E salta para fora da carne Sai das portas da terra Entre pombas espantadas
[…]
Os lobos fazem milagres
Nas pegadas da noite Quando o pássaro incógnito se nubla E pastam as ovelhas no outro lado da lua
[…]
Abre-se a tumba e ao fundo se vê um desfile de tímpanos de gelo
[…]
Abre-se a tumba e sai um soluço de planetas
Há mastros partidos e remoinhos de naufrágios Dobram os sinos de todas as estrelas Silva o furacão perseguido através do infinito
[…]
E nasce a selva mágica
Abre-se a tumba e ao fundo se vê o mar Sobe um canto de mil barcos que se vão Enquanto um tropel de peixes Se petrifica lentamente
[…]
E eis que agora me diluo em múltiplas coisas
Sou vagalume e vou iluminando os ramos da selva No entanto, quando voo guardo meu modo de andar E não sou apenas vagalume Mas também o ar em que voa A lua me atravessa de lado a lado
[…]
E logo sou árvore
E, árvore, conservo meus modos de vagalume E meus modos de céu E meu andar de homem meu triste andar Agora sou rosal e falo com linguagem de rosal E digo Sai rosa rorosaía Sai rosa ao dia Saía ao sol rosa sário Foguisa minha sorrideria rososouro ouro
[…]
Sou rosa de trovão e soo meus pigarros
Estou preso e arrasto meus próprios grilhões Os astros que trago rangem em minhas entranhas Proa à borrasca em procissão procriadora Proclamo minhas proezas bramadoras E meus brônquios respiram na terra profunda Sob os mares e as montanhas. Por fim é fundamental marcar a importância de Huidobro para o aparecimento dos movimentos de vanguarda, de maneira mais ampla, na América Latina. Federico Schopf vai escrever que “sua imaginação aérea, que instala o homem no espaço celeste, e sua legitimação do jogo no âmbito das artes são contribuições decisivas para a poesia atual. Sua representação — ou expressão — do fragmentário da experiência, a amplificação da habitação humana ao hiperespaço, a relativização da realidade, a experiência da transformação e a transformação da experiência em um mundo mediado pela técnica, são algumas das dimensões de sua obra que atualizam de maneira fascinante sua leitura. Como diz Nicanor Parra, agora mais que nunca
O poeta se faz vidente
vicente vigente. |
Afonso Henriques Neto (Brasil, 1944). Poeta, ensaísta e tradutor. Autor de livros como Tudo nenhum (1985), Abismo de violinos (1995), e Cidade vertigem (2005). Há uma entrevista com ele na Agulha Revista de Cultura # 48. O texto que aqui publicamos é uma versão ampliada do que se encontra em seu mais recente livro, Fogo alto (2009), seleção de traduções de poetas como William Blake, Vicente Huidobro, García Lorca e Allen Ginsberg. Contato:afonso.ntg@terra.com.br. Página ilustrada com obras da artista Aline Daka (Brasil).
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