Emanações da noite infinita e silenciosa mesclam-se ao dia e o diálogo torna único este sítio no qual nunca sabemos se estamos regidos pela lua ou pelo sol. É como se a fabulação do sonho permanecesse vívida, as sombras iluminadas e a luz rebaixada. Lugar de fronteiras borradas, do qual escutamos uma voz a nos dizer que a vida é névoa, fluídica, águas vagantes, povoada, aqui e ali, por súbitas imagens aclaradas e pressentidas. Recortes da incerteza. Fragmentos de vestes que um dia teriam servido à Deusa, manto a nos proteger da frialdade desta hora. Liana Timm tem esta rara capacidade, a de registrar o momento em que o sonho noturno torna-se um com a arte do dia.
A artista Liana Timm trabalha com recortes eletrônicos, produz módulos e os compõe em painéis de imagens cada vez mais complexas. É um processo que, se fosse num atelier tradicional, chamaríamos de colagem. Entretanto, o fundamento do seu estúdio é um computador e no lugar de pinceis ela utiliza leyers e esta junção de módulos só poderia ser chamada de colagem a partir do uso liberal da palavra. Compor galáxias a partir de módulos.
Existe a tendência de procurarmos a chave que abre o mistério destas imagens. Talvez ela não exista. É possível que elas somente possam ser contempladas e percebidas. A estabilidade das imagens, a sua integridade, é notável. Não há dúvida da intencionalidade da artista e de que estamos diante de uma obra em si mesmo.
Estranhas figuras e cenários. Elas estão fora do reino da fotografia. Não tem a veracidade, a perspectiva, a invenção, o caráter documental, a memória e a ambigüidade da saudade. Não podemos folhear o álbum de família. Elas não estão, também, no reino dos vivos. As figuras não remetem para a ação, e não lamentamos por elas: nenhuma empatia ou repulsa. Cenas estáticas e uma epiderme peculiar. Estamos diante de uma espécie desconhecida. Um fictício pesquisador descobriu estes seres abissais. Um portal que se abre para outro universo que - paradoxo- está entre nós. O enigma da iconografia de Liana Timm está na inserção do submerso e noturno ao território solar. Fronteiras da percepção. Cada contemplador é uma chave do mistério.
Tornar-se um.
E anotações e esboços para
no futuro fazer um retrato do passado.
A lucidez antes de fazer o trabalho é uma das formas mais sedutoras de ilusão.
Liana Timm trabalha com memórias afetivas, com informações históricas, citações de outros artistas, escolhas pessoais e existenciais, sentimentos e emoções. Faz deste material uma reflexão sobre a vida atual na qual está presente o ser humano contemporâneo, ou seja, um conjunto de memórias, herança familiar, conhecimentos históricos e informações cibernéticas.
(de Liana Timm sobre “Paisagens do Interior”.)
“… estou aguardando as medidas certas para poder desenhar a exposição… Ela será um site especific. Logo, vou interagir com o espaço e as dobras dos painéis. Com as medidas poderei projetar o lugar das imagens e seus relacionamentos com os planos vizinhos, bem como escolher as cores que irão sucessivamente percorrendo a mostra.”
Desvelando o olhar.
Liana Timm pertence ao pequeno grupo de artistas que enriquece a reflexão sobre a cultura e a arte com a dedicação plena de sua vida. E isto se dá não só pela inacreditável carga horária de trabalho, mas, também, pela dedicação de sua vida privada. Por intuição, tenho a convicção de que parte de seus sonhos trata de questões estéticas e formais.
É uma parcial amostragem de sua produção e vivência – com ela sempre será uma parte - a respeito da imagem na época da tecnologia e da percepção humana. Mais do que isto, a artista nos apresenta as suas perguntas a respeito do valor dos sentidos e da sensorialidade no universo sutil da forma, do psiquismo e da busca da verdade. Esta produção cuida dos problemas essenciais do ser em relação à busca de valores perenes e do possível instrumental de verificação.
Eu acho uma obra inspiradora, pois se coloca como uma busca dentro da vida, sem desprezo pelas conquistas científicas e tecnológicas, e sem abdicar do anseio por paradigmas modelares. Também o respeito da artista por seus pares, pelos artistas que construíram a existência visual do homem, expresso nas citações e referências contidas na sua obra, é afirmação do valor da arte como fundamento essencial da construção do conhecimento.
(de Jacob para L. T. numa ocasião de algumas dúvidas)
“Em certo momento, quase no meio do nada…
Olhei e olhei novamente, febricitante, ligeiro como Mercúrio, envolvido por gente medíocre e vulgar, gente que vendeu a alma para o diabo e recebeu por ela menos que um vintém, pois valia pouco, e me reconciliei com o mundo. Você está louca, Liana, não sei onde a dúvida, onde a sua febre, as suas imagens são emocionantes. Que sensibilidade a sua. Alma grande. Um privilégio para nós, os que temos esta oportunidade. Nunca imaginei que seriam tão formidáveis. Só você poderia imaginar. Ainda bem que não aceitei ser outra coisa que não este que sou. Voltarei para o mundo dos chatos, mas agora envolto em azul.”
Assertiva conceitual de L.T.
“Reflexão que encarna um acontecer humano através da memória compartilhada de um grupo social. Um misto de realidade singular e realidade coletiva.”
Reflexão.
Este conceito é o único real. É o lugar onde assunto e tema se encontram.
Detalhes, projeto de montagem: recado.
Eu gostaria de colocar uma foto sua na montagem. Você gostaria, Liana? Pode ser você trabalhando, ou no atelier, ou simplesmente um close do rosto. Tem artistas que não gostam, e eu respeito. Houve uma recente recusa de um querido e grave amigo: considerou que roubaria a sua alma. Mas o público gosta, eu gosto, e todo mundo gosta, menos alguns artistas e alguns fundamentalistas anti-narcisistas. Imagine que o concretismo pretendia eliminar toda e qualquer referência pessoal… E ninguém mais personalista, impositivo e auto-referente que o Waldemar Cordeiro. No Rio, o neo-concretismo surge porque é impossível imaginar um carioca que não goste de se apresentar pessoalmente… É uma interpretação da história da arte renovadora, como você vê… Eu a considero uma epistemologia rodriguiana, já que tomei a maneira narrativa do Nélson Rodrigues para descrever os acontecimentos. Da mesma maneira que a utilização das fotos com aquela quantidade enorme de ponto e vírgulas, naquele bilhete anterior, é ritmo braguiano, pois foi inspirado na maneira do Rubem Braga descrever itens sucessivos. Desculpe, mas ando meio cheio e preciso me divertir um pouco, mesmo que seja comigo mesmo…
Eu tinha vontade de escrever sobre o que percebi desta maneira de fazer arte. O que poderíamos chamar de “Método Liana Timm”. Pensei até num subtítulo, “Tornar-se um”. É meio intrigante, mas eficaz, e se refere à integridade e integração do artista no seu processo até o ponto em que não há mais distinção entre aquele que faz e o que é feito.
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Jacob Klintowitz (Brasil, 1941). Jornalista, crítico de arte, escritor, editor de arte, designer editorial. É autor de 90 livros sobre teoria de arte, arte brasileira, ficção e livros de artista. Contato: jklinto@uol.com.br. Página ilustrada com obras da artista Liana Timm (Brasil).
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