segunda-feira, 31 de agosto de 2015

LUCILA NOGUEIRA | Al Berto descoberto


1. | Naquela tarde de 1998 em Lisboa, na Livraria Bulhosa do Shopping das Amoreiras, enquanto manuseava os livros de uma prateleira de poesia, senti um impacto como há muito não me acontecia. De uma capa em preto e branco um olhar de um só olho fulminante me reduziu a cinzas. O livro: Horto de Incêndio. O autor: Al Berto. (Ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997).
Da foto tirada por Paulo Nozolino em 1990, passei às páginas que tiveram o dom de me confundir e me arremessar em perplexidades. De repente um poeta português mexia com o meu espírito de modo mais contundente do que aqueles que me acostumara à sua frequentação. Que autor era esse que falava do essencial sem retóricas ultrapassadas ou cacoetes cerebralistas ainda duros na queda em meu País do Carnaval?
De um poeta não pretendemos outra coisa que não esse mergulho na fonte primordial da consciência humana. Uma experiência nítida e nova revelada com lucidez e ternura. Uma inquietação que nos acalma, embora nos perturbe. Poesia como imagem além da memória, filme editado em palavras que deixam marcas permanentes na paisagem cotidiana. Estranha forma de serenidade, essa cultivada no desespero e na desordem. Estranha for a de imortalidade, essa conquistada na pulsação da morte e da loucura. Estranha forma de realidade, essa que emerge fantástica do abismo em direção vertical ao coração dos homens.

deus tem que ser substituído rapidamente por poemas
silabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.
a dor de todas as ruas vazias.
sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio,
e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo.
a dor de todas as ruas vazias.

(de Notas para o diário)
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noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras
hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se
onde se pode - num vocabulário reduzido e
obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

(de Vestígios)

Descobrir um poeta é descobrir-se a si mesmo naquilo que a burocracia cotidiana tenta embaçar, naquilo que o medo tenta reprimir e calar. Uma nova maneira de abordar a solidão humana nas chamas do vazio onde todos caminham imóveis sob a placenta que não se abre.

para te manteres vivo - todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado

(de Mudança de Estação)
………………………………………
escreves exactamente isto: o horror dos dias
secou contra os dentes - e rouco
dobrado para dentro do teu próprio pensamento
ferido
atravessas as sílabas diáfanas do poema

(de Casa)

A editora informa no volume que Horto de Incêndio foi realizado no âmbito de uma Bolsa de Criação Literária/Poesia do Ministério da Cultura, em 1997, mesmo ano da publicação. O livro é dividido em duas partes: a segunda, “Morte de Rimbaud”, foi dita em voz alta no Coliseu de Lisboa, a 20 de novembro de 1996. Na primeira, em meio a quatro poemas sobre Lisboa, está impresso o primeiro poema em português que me foi dado ler sobre a aids:

aqueles que têm nome e nos telefonam
um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz
arquivamos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas
acendemos então uma labareda nos dedos
acordamos trémulos confusos - a mão queimada
junto ao coração
e mais nada se move na centrifugação
dos segundos - tudo nos falta
nem a vida nem o que dela resta nos consola
a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa
assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amamos e não voltaram
a telefonar

(de Sida)

E então descubro que essa poesia tão viva foi escrita por um poeta que já se encontra morto, vítima ele mesmo da aids, como aqueles companheiros que justo em seu poema Sida, já não mais lhe telefonam. Não pôde Al Berto, assim, usufruir dos tratamentos mais avançados que surgiram logo a seguir, dando chance de continuarem ativos em seu brilho grandes escritores soropositivos da contemporaneidade.

2. | “Todos os meus livros tiveram um caráter de urgência”, disse Al Berto, um mês antes de morrer, ao jornal Expresso. O poeta e crítico Fernando Pinto do Amaral (O mosaico fluido, 1991) destaca a textualidade a funcionar como testemunho de um sujeito, de um eu que não teme arrastar toda a carga afetiva para a página escrita chegando a concluir que o critério de legitimação para uma poesia como esta passa por algo que vem do lado do vivido. Do corpo espiritual ao corpo físico, uma unidade apaixonada entre a obra e a vida.
Veja-se o que diz, a 26 de Abril de 1997, o Diário de Notícias:

Horto de Incêndio surge como um balanço de um testemunho literário e pessoal, apegado a um ascetismo em estado selvagem. Indissociável este livro, e, em particular, morte de rimbaud, da problemática da doença e da morte (…) Revelando-se, o poeta transforma o seu corpo melancólico no corpo do fim do século, acrescentando-lhe a esperança de todas as pacificações”.

Essa escrita do corpo tem uma tradição na poesia portuguesa a congregar, na atualidade, diversos autores, entre canônicos e malditos. De Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro, de António Botto a Eugênio de Andrade, de António Franco Alexandre a Gastão Cruz, de Fernando Pinto do Amaral a Joaquim Manuel Magalhães, de Luís Miguel Nava a Guilherme de Melo, de Armando Silva Carvalho a Eduardo Pitta - este último com marcas visíveis de Luiza Neto Jorge - todos assumem vetores estruturantes de uma poesia onde o corpo é território de afinidades e distanciamentos em face do real, tudo isso ligado a angústias pessoais e vivências sociais em discursos poéticos onde o estranhamento ultrapassa a ambigüidade em seus vários níveis e a constituição do sujeito tematiza idéias e cenários onde se diluem as metáforas rumo a uma escrita radical de demarcação entre urgência e melancolia, diferença e transgressão.
No caso específico de Al Berto, sua experiência urbana de Bruxelas, Paris e Barcelona, sua deambulação como Flaneur nas décadas de sessenta e setenta por uma Europa notadamente underground, trazem ao seu discurso poético uma vertigem específica que assume a literatura como ficção e experiência unidas de modo inseparável, conjugando idealismo romântico e existencialismo contemporâneo em um território que, como já foi referenciado, pertence nitidamente ao domínio da pós-modernidade. Se em seu início Al Berto seguiu de perto a linha surrealista, muito especialmente a que emana de Herberto Helder, em todo o seu discurso vamos encontrar episódios autobiográficos com recortes cinematográficos. Em 1981 escreveu Joaquim Manuel Magalhães:

Um nome: Al Berto. A poesia como ataque por todas as vias - droga, sexo, loucura, jogo, magia. Um fluxo de revelação… que desencadeia o modo diverso de enfrentamento da ocupação majoritária dos impulsos das práticas da vida.

E no transporte ao poema de seus mitos pessoais, Al Berto não se limitou apenas aos literários, incluindo também os da música pop e das artes visuais. De modo que Lou Reed, Joy Division, Jim Morrison e Nick Cave convivem serenamente com William Burroughs, Dylan Thomas, Genet e Rimbaud; no que concerne a estas presenças no texto de Al Berto, Manuel de Freitas destaca que a originalidade do poeta consiste precisamente no modo singular como evoca, parodia ou integra no seu próprio discurso os vários modelos (A noite dos Espelhos - modelos e desvios culturais na poesia de Al Berto, 1999, Ed. Frenesi).
No percurso a que me levou a súbita descoberta de Al Berto, verifico haver ele nascido dois anos antes de mim (1948), em Coimbra (Sines) e ter publicado seu primeiro livro de poesia em 1977 (também anteriormente dois anos à minha estréia em livro). Estreou com “À Procura do Vento num Jardim d’Agosto”, a que se seguiram mais catorze publicações em poesia e duas em ficção, todas surgidas nas décadas de 70/80 até final dos anos 90. Um poeta, como se observa, do nosso tempo, que ouviu e dançou os Beatles, leu e se emocionou com os livros da geração beat, acompanhou a onda orientalista americana e européia no movimento hippie, poeta de uma juventude errante à margem de sistemas e na entrega ao existencialismo intenso de experiências espirituais e físicas na atmosfera azul de paz e amor, somente para lembrar o verso de Guinsberg: “quando você esqueceu que era uma flor?”
Poucos, em meu país, assumiram esse “Canto da Estrada Livre” de que nos falou Whitman. Generalizado nos exercícios gráficos e agrestes da impessoalidade modernista, vários poetas do meu país buscavam um poema objetivo, concreto, em que a subjetividade lírica era um defeito e o testemunho do mundo uma falha técnica. Pior que isso, um desses grupos experimentalistas, mesmo sendo pouco numeroso, por conta do internacionalismo de seu trânsito acadêmico vendeu ao mundo a idéia de que essa poesia tão cheia de bloqueios e limites seria o nosso canto verdadeiro, a nossa própria lírica brasileira.
De modo que conhecer a poesia de Al Berto no mesmo ano em que lançava o meu primeiro volume de poemas em uma editora portuguesa e até hoje inédito no Brasil, Zinganares (Arion, 1998, Lisboa) me trouxe aquela sensação de nascer de novo e em um contexto cultural onde havia na poesia espaço possível para o testemunho da vida, este estranhamente classificado nas sofisticadas linhas Pound/Valéry brasileiras com o rótulo de carga pretensamente pejorativo de “confessionalismo romântico”.
No Jornal Expresso de 7 de fevereiro de 1998, poucos meses após a passagem de Al Berto, António Guerreiro assim se refere aos seus versos, em artigo intitulado “Palavras que embriagam”:

Assim sendo, este livro fornece a moldura adequada a uma poesia que se redobrou como representação de uma vida, de um autor, não propriamente no sentido romântico, em que o poeta acredita que constrói uma grande obra com a matéria da sua própria vida, mas no sentido do poeta trágico moderno, de que Rimbaud é o modelo inultrapassado, em que se dá um curto circuito explosivo entre a vida e a poesia. Tem todo o sentido falar aqui em “representação” e “redobramento” porque ao poeta que queira encarnar essa figura heróica não lhe resta senão a possibilidade de a encenar.

Foi o que fez Al Berto em toda a sua obra, construindo a ficção de um poeta que tem todas as características para exercer uma poderosa atração e para ser ele próprio, a definir o horizonte em que se quis ver situado. Construindo, em suma, uma idéia de poeta a que os poemas dão corpo, mas que supõe sempre muito mais do que a poesia: uma idéia de poeta em que a vida está sempre em excesso em relação á obra. O que, por sua vez, implica também o inverso: uma vida que precisa de uma obra para se representar como excesso. É nesta circularidade, com um grande efeito de encantamento, que a poesia de Al Berto sempre tendeu a enredar os seus leitores.”
Poesia narrativa de furor heróico, a diferença de tom torna mais evidente a encenação dramática do poema, a qual, por sua vez, tanto é maior quanto mais o poema supõe uma proximidade com o vivido - circunstância que avulta após “Secreta Vida das Imagens” (1984/1985), conforme Guerreiro, que acrescenta:

Da extrema fragilidade dos seus primeiros livros teve Al Berto certamente a consciência. No entanto, nunca os eliminou, nem parece ter querido submetê-los a revisões, como se vê pelo facto de, nesta edição (que, como podemos depreender, terá sido ainda preparada pelo autor), eles surgirem com modificações mínimas, que incidem, sobretudo na pontuação. Fora de um contexto em que ainda tem alguma eficácia essa figura heróica do poeta, uma antologia bem feita beneficiará bastante esta obra e ajuda-la-á a ganhar uma maior autonomia.

Encontramos também aqui, nesta aparente falta de vigilância, uma marca do poeta para quem o poema não é um objecto autónomo e perfeito, mas algo que decorre do próprio fluir da vida, ligado a uma temporalidade que é da suposta experiência vivida.por isso é que a forma diarística surge com freqüência. Não se trata tanto de fazer do poema (ou da prosa poética) uma anotação do quotidiano, mas de transfigurá-lo poeticamente, elevá-lo a uma espécie de condição mítica, onde ele adquire verdadeiramente sublimidade.”
Pascal Thuot considera Al Berto um vidente, poeta do real que extrai da crueza do mundo a pulsação da vida e da morte intimamente ligadas: “Ele adentra em nossa paisagem, testemunha incorruptível da comédia humana, fotógrafo atento de nossos gestos trêmulos, de nossa hesitação em viver com toda lucidez”.

“Quando te escavaram o ventre encontraram
traços adormecidos de outros povos
enigmáticos colares, pérolas corroídas, aços imutáveis
escritas duma outra idade, vestígios de insones navegações”.
…………………………………………………………………
em ti acostam os barcos e a sombra dos grandes navios do mundo
vive o peixe, agitam-se algas e medusas de mil desejos
em ti descansam os pássaros chegados doutras rotas
secam as redes, põe-se o sol
…………………………………………………………………

(de Mar-de Leva)

a noite dilata a viagem
presentimos a nervosa luta dos corpos contra a velhice
mas nada há a fazer
resta-nos descer com as raízes do castanheiro
até onde se ramificam as primeiras águas e se refaz o desejo”.

(de Trabalhos do olhar)


Visita-se enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado
tenho uma varanda amplas cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem

(de Uma paixão)

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa os espelhos
vem
…………………………………………………………………………
… vem deitar-te comigo no feno dos romances
para que a manhã não solte o ciúme
e de novo nos obrigue a fugir…
… vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito
esquece os maus momentos a falta de notícias a preguiça
ergue-te e regressa
para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças
e os pássaros debicam o outono no sumo das amoras…
… iremos pelos campos
à procura do silente lume das cassiopeias…

(de Amor dos Fogos)

Al Berto foi também artista plástico e após temporada na Bélgica regressou a Portugal criando uma comunidade na mansão da sua família em Coimbra. Editava textos de amigos e quando abriu uma livraria em Sines oferecia àqueles a maioria dos livros: em 1977 fecha o estabelecimento e regressa a Lisboa. Foram publicados, como edição do autor, Meu fruto de morder todas as horas e Mar-de-Leva, ambos em 1980, além de Trabalhos do olhar (1982). Seguem-se O Último Habitante (1983), Salsugem e A seguir o deserto (ambos em 1984), Três cartas da memória das Índias e Uma existência de papel (ambos de 1985), O medo (1987), O Livro dos Regressos (1989), A secreta vida das imagensCanto do amigo morto, e novamente O Medo (reunião de trabalhos de 1974 a 1990) todos os três editados em 1991, Luminoso Afogado (1995) o por mim encontrado Horto de Incêndio (1997) e novamente O Medo (1998). Em ficção publicou Lunário (1988) e O anjo mudo (1993). Está traduzido para o espanhol, francês, inglês e italiano aquele que se autodenominou O pequeno demiurgo:

mas não julguem ser trabalho simples nomear
arrumar e desordenar o mundo
para que não se apague esta trémula escrita
preciso do sonho e do pesadelo
da proximidade vertiginosa dos espelhos e
de pernoitar no fundo de mim com as mãos sujas
pelo árduo trabalho de construir os gestos exactos
de alegria que por descuido deus abandonou ao cansaço
no fim do sétimo dia.

Descoberto Al Berto, para mim e para os que me acompanharam até este conto, fico a meditar no que ele próprio falou da obra que nos aproximou, no caso o Horto do Incêndio:

Aterrador foi ter-me apercebido o que havia neste livro de premonitório. A eternidade não é lerem-me dentro de 50 ou 60 anos ou ficar na história da literatura portuguesa. Só espero que meia dúzia de doidos me leiam agora e isso os toque. A eternidade é uma permanência da força que está dentro de nós. 




***


Lucila Nogueira (Brasil). Poeta e ensaísta. Autora de livros como A dama de Alicante (1990), Zinganares (1998), e Bastidores & Refletores (2002). Contato: luc.nog@terra.com.br. Agulha Revista de Cultura # 44. Março de 2005.

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