É para mim um paradoxo
apresentar Cruzeiro Seixas, pois devo confessar que ignorava tudo dele até o
presente. Acabo de descobri-lo e meu objetivo será de vos expressar o prazer de
minha descoberta, assim como o pesar de não ter tido mais cedo conhecimento de
sua maravilhosa obra. A razão desse atraso não se deveu à minha
negligência, mas às poucas informações que tínhamos na França sobre o
surrealismo português desde sua existência.
O meu caso não é único já
que um surrealista dos mais ortodoxos, Jean-Louis Bédouin, publicou em 1961 seu
livro Vingt ans de surréalisme (Vinte anos de surrealismo) com
um capítulo intitulado “le Surréalisme dans le monde” (O surrealismo no mundo)
onde somente uma breve passagem evocava o surrealismo português, sem citar
Cruzeiro Seixas nem Mario Cesariny. Suas informações provinham de Nora Mitrani
que, após uma temporada em Lisboa, onde se tornou a companheira de Alexandre
0’Neil, pretendeu que era O’Neil que tinha fundado o grupo surrealista
português com a ajuda de José Augusto França. Como o manuscrito de Bédouin foi
cuidadosamente revisto pelo próprio André Breton, é a prova de que este tinha a
mesma ideia incompleta da atividade surrealista em Portugal.
Em 1973, no número 4 de Phases,
Mario Cesarïny fez uma exposição detalhada da história do surrealismo
português, elevando-se contra as falsas relações dadas que se davam dele. Em
sua exposição Cesariny faz este elogio de Cruzeiro Seixas: “A única
personalidade entre nós capaz de transpor para a segunda metade do século,
magnificando-a, a herança plástica e erótica legada pelo surrealismo dos anos
30”. Cesariny descreveu as manifestações e as divisões do “grupo surrealista de
Lisboa”, que se transformou em “grupo antigrupo surrealista”, e falou de uma
tendência extrema, o abjecionismo (ou abjeccionismo). Todavia, este artigo de
esclarecimento dos fatos não teve sequer eco entre os críticos de arte na
França que perseveraram apesar de tudo em sua ignorância do surrealismo
português.
Em 1990, um número especial
de Opus international, organizado por Alain Jouffroy sobre o
tema André Breton et le surréalisme international (André
Breton e o surrealismo internacional), reuniu estudos sobre o surrealismo na
Romênia, no Egito, no Japão e em outras partes mas não disse nada de Portugal.
Quando fundei Supérieur Inconnu em 1995, o número 1
continha um elogio de Herberto Helder; o número 6 uma apresentação da escultura
onírica de Isabel Meyrelles por Françoise Py; o número 13 uma novela de Luis
Pacheco, Le Théodolite (O Teodolita). Se eu tivesse conhecido
Cruzeiro Seixas, teria reservado para ele minha rubrica “Celui qui sort de
l'ombre” (Aquele que sai da sombra), onde tenho posto em seu lugar de
honra surrealistas desconhecidos, de Claude Tarnaud a Georges Hugnet.
Estes poucos exemplos de
omissão provam o quanto era necessário hoje em Paris estudar com exatidão o
surrealismo português e render homenagem a seu mais brilhante representante,
Cruzeiro Seixas.
Após esse preâmbulo, vou vos
dizer sucintamente minha impressão sobre ele. E ao mesmo tempo um pintor e um
poeta, e podemos nos perguntar por conseguinte qual é sua opção fundamental. E
um pintor que se pôs a escrever poemas, ou um poeta que teve propensões para a
pintura? No grande livro que lhe dedicou a Fundação Cupertino de Miranda,
constatamos que ele é pintor antes de tudo, começando em 1936 aos dezesseis
anos por aquarelas e desenhos, e dedicando-se de 1940 a 1947 a uma pintura
qualificada de “período neo-realista”. Foi somente em 1986, aos sessenta e seis
anos, que ele publicou seu primeiro livro de poemas, Eu Falo em Chamas.
Ele já havia escrito outros poemas antes, sem dúvida, mas sem provar a
necessidade de fazer deles um livro, preferindo ilustrar com seus desenhos os
livros de seus amigos e organizar exposições de seus quadros.
Levando em conta que seus três
volumes de obras poéticas não foram inteiramente traduzidos em francês, para
nós é mais cômodo admirar Cruzeiro Seixas como pintor do que como poeta.
Entretanto, é possível apreciar toda sua originalidade de escritor através da
tradução de alguns de seus poemas feita por Isabel Meyrelles. Não li ainda os
que ela forneceu à Pleine Marge, mas não duvido que eles tenham as
mesmas qualidades que os que aparecerão no próximo número de Supérieur
Inconnu. Em seus poemas, Cruzeiro Seixas é pintor, ele faz ver o que ele
diz; em suas pinturas ele é poeta, suas imagens despertam no espírito analogias
verbais. Seus desenhos são poesia visível; seus poemas em prosa, como aqueles
que me propôs Isabel, são quadros animados.
Não temos, pois, que nos
perguntar se Cruzeiro Seixas é, antes, pintor que poeta, ou o inverso: ele é
irresistivelmente os dois ao mesmo tempo em tudo o que ele faz. No início, ele
misturou letras do alfabeto e palavras ao que ele pintava, à maneira do
dadaísmo. Mas daí ele passou a uma criação pictural mais sutil, consistindo em
representar metáforas plásticas. Assim num desenho de 1947, La variété
en dehors d'elle-même(a variedade fora dela mesma), ele mostra um homem
prostrado num deserto cujas dunas são seios de mulheres. Ele nos oferece num
relance o equivalente da comparação que um poeta levaria muito mais tempo para
nos impor. Ele continuou a fazer colagens, poemas-objetos, associando a pintura
à escritura. Em 1964, sua obra intitulada C'est seulement celle-là qui
te convient (É somente aquela que te convém), é uma tela pintada a
óleo sobre a qual ele colou os pedaços de uma carta rasgada; a moldura
está coberta de inscrições e de assinaturas de amigos. Mas em seguida, ele
demonstrou que ele era capaz de fazer também ato poético ao pintar simplesmente
uma imagem insólita. Toda essa produção primeira de Cruzeiro Seixas é
interessante, mas não excepcional. Nela, seu estilo pessoal não está ainda
afirmado plenamente.
Foi em 1972 que Cruzeiro
Seixas apareceu como um inovador genial do surrealismo, alcançando a perfeita
fusão da pintura e da poesia. Trata-se de sua série intitulada Cruzeiro
Seixas expõe 24 desenhos de 1972, em uma galeria de Lisboa. Ele definiu
esses desenhos: “a forma que a matéria tomou na prática histórica individual”.
Eles foram reunidos num portfólio com um prefácio de Laurent Vancrevel, que
neles vê “a arte livre”, e precisa: “A arte livre: jogos das
sombras da beleza, jogos das sombras da felicidade”. Esses desenhos a nanquim
são maravilhas de automatismo psíquico. Figuras extraordinárias se destacam
deles em branco ou em cinza sobre um fundo negro que pertence à noite do
inconsciente. E toda a mitologia noturna de um poeta que se abre aos nossos
olhos em desdobramento. Van Crevel concluiu seu prefácio com essa
exclamação: “Enigmática antes de todas as coisas!”. De fato, são enigmas
que Cruzeiro Seixas tem desenhado, mas enigmas decifráveis graças a seus
títulos sugestivos. Por exemplo, uma cena parece se passar sobre uma banquisa,
onde um homem de gelo atravessa em larga passada um abismo para ir em direção a
uma mulher de gelo cuja cabeça é uma chama. O título é significativo: Modèle
pour servir à d'autres rencontres (Modelo para servir a outros
encontros). Nos anos seguintes, ele multiplicou esse gênero de desenhos com
títulos como La vie est un scandale pour la raison (A vida é
um escândalo para a razão), que lhes davam um sentido filosófico.
Seu método de desenhar lhe
permitiu inaugurar o diálogo gráfico. Os “cadavres exquis” (Cadáver exquisito)
desenhados pelos membros do grupo parisiense põem sempre em presença três ou
quatro participantes. Nos que ele legou à Fundação Cupertino de Miranda, apenas
um foi feito por quatro pessoas. Todos os outros são “cadavres exquis” de
Cruzeiro Seixas com um amigo diferente: Mário Botas ou Raul Perez, entre
outros. Há uma competição entre dois artistas, e o desenho obtido tem uma
unidade que não encontramos nos “cadavres exquis” de vários autores. E não apenas
a fusão da poesia e da pintura, mas ainda a fusão de duas personalidades.
Cruzeiro Seixas é tão
preocupado com a síntese da escritura e do desenho que ele ilustra de uma
maneira surpreendente as cartas e os cartões-postais que ele envia a seus
amigos. A obra mais recente sobre ele, publicada em outubro de 2005, é o
catálogo da livraria Miguel de Carvalho em Coimbra, reunia uma seleção de suas
cartas a Isabel Meyrelles, a Édouard e Simone Jaguer e a muitos outros,
ornamentadas de vinhetas improvisadas com um senso léxico do grafismo.
Como Supérieur Inconnu divise-se
agora em quatro partes – “le rêve” (o sonho), “l’amour” (o amor), “la
connaissance” (o conhecimento) e “la révolution” (a revolução) - a questão é
saber em qual dossiê vamos pôr tal autor ou tal artista. A primeira vista,
Cruzeiro Seixas parecia designado para o dossiê “Rêve”, pois seus desenhos e
seus escritos relèvent de onirismo puro. Mas examinando-os mais atentamente,
julguei que eles estariam melhor em seu lugar no dossiê “Connaissance”, porque
eles vão mais longe que o sonho. E evidente que Cruzeiro Seixas busca
aprofundar a realidade por meio do sonho, eis porque o título de um de seus
livros é Hommage à la réalité (Homenagem à realidade). Suas criações
são sonhos dirigidos, quer dizer, sonhos que comportam uma parte de especulação
intelectual. Sobretudo, ele pratica o conhecimento pela alucinação provocada.
Eis aliás o que é tipicamente surrealista. Por-se num estado que favorece
alucinações lúcidas, foi a conduta de Breton e de Soupault ao escrever Les
Champs magnétiques (Os campos magnéticos). Max Ernst fez a
aplicação da alucinação provocada em suas colagens e suas frotagens, e enunciou
até mesmo sua teoria. Não são caprichos da fantasia que produzem as imagens
surrealistas, mas os relâmpagos da intuição desvelando o que há sob as
aparências.
Não saberia vos dizer mais
sobre Cruzeiro Seixas no momento, até que eu tenha estudado mais em detalhe
seus escritos e suas pinturas. Minha reação é a de um amador de arte e de
poesia confrontado de repente a um tal artista poeta. Eu o considero não
somente como um grande surrealista português, mas sobretudo como uma figura
marcante do surrealismo universal. Mais que um pintor e um poeta, é um
manifestante, quero dizer um homem que manifesta a supremacia da vida interior.
Isso lhe confere uma qualidade pouco comum no mundo atual.
***
Sarane Alexandrian (1927-2009). Ensaísta, romancista e historiador
de arte. Fundou
e dirigiu a revista Supérieur
Inconnu. Autor de livros como André
Breton par lui-même (1971), Le surréalisme et le rêve (1974), Histoire de la littérature érotique (1989). Ensaio traduzido por Eclair Antonio Almeida Filho.
Será possível saber o título, se é que o tem, do primeiro quadro mostrado neste artigo? e a data de realização.
ResponderExcluirE, já agora, se for possível saber em que museu está ou se é coleção particular.
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