Desenhos surpreendentes só surgem quando os sonhos mais
íntimos de um artista irrompem, convergem, juntam forças e de repente se
expandem em nada menos do que o imprevisto selvagem. Tais passos gigantescos
por sua vez conduzem-nos diretamente a novos e excitantes modelos do Pluriverso
– uma entidade imaginativa poderosa, imensamente maior, mais profunda e mais
encantadora do que o universo paroquial, comum.
O meu grande amigo Artur do
Cruzeiro Seixas, a quem o mundo deve indiscutivelmente tantos dos mais
maravilhosos desenhos das últimas cinco décadas, é também um dos incontestáveis
mestres deste Pluriverso em perpétua transmutação. Uma figura principal no
movimento surrealista internacional pela segunda metade do século XX, ele
continua a ser como a presente exposição demonstra, um excelente exemplo e
mentor no séc. XXI.
A minha mulher Penélope e eu
consideramos Cruzeiro Seixas um amigo especialmente íntimo desde 1970, embora
nunca nos tenhamos de fato encontrado "em pessoa". A nossa amizade
foi formada por uma troca de cartas entre Lisboa e Chicago – uma troca que tem
persistido ao longo destes muitos anos – e também pela nossa participação mútua
em numerosas publicações e exposições surrealistas internacionais. Todas as
cartas que dele recebemos foram uma celebração para nós e para todo o Grupo
Surrealista de Chicago.
Penélope e eu vimos pela
primeira vez uma seleção de desenhos de Cruzeiro Seixas na véspera da Exposição
Mundial Surrealista em Chicago, em 1976, quando, com os nossos amigos
co-organizadores do evento, abrimos o grande caixote de Portugal, que incluía
trabalho seu. Ficamos profundamente emocionados por tudo aquilo que vimos:
emocionados pela sua qualidade mágica, pela sua precisão complicada, e – de
forma alguma menos emocionados – pela sua maravilhosa simplicidade.
Realmente, os elementos
essenciais no seu laboratório alquímico de palavras e imagens são na verdade
surpreendentemente simples: um imaginário absolutamente desacorrentado, um
fascínio de espírito livre e um sentido desafiadoramente transformador da
poesia e do humor. O seu “puro automatismo psíquico” sempre esteve entre os
mais puros.
Esticando os limites da
“probabilidade convencional” e rompendo o “desconhecido” com novo e provocante
conhecimento, ele também teve a ousadia repetidas vezes de desafiar e destruir
o denominado “impossível”, com um arsenal de possibilidades inéditas e saídas
de um impulso.
Poeta em palavras como também
em desenhos, Cruzeiro Seixas lembra-nos a cada momento que escrever é uma
espécie de desenhar, e desenhar uma espécie de escrever. Apaixonadamente
poético em toda a sua obra e também na sua vida, ele nunca deixou de explorar os
mundos escondidos e secretos do sono, o inconsciente, o extático, o hermético e
enigmático. Os seus desenhos mágicos, não menos do que os seus poemas
esplendorosos, dão-nos a consciência de que ele se sente perfeitamente à
vontade nos mais desconcertantes encontros ocasionais e na matemática da música,
bem como nas fantasias e nos devaneios da revolução.
A sua mistura maravilhosa de
alquimia e anarquia exemplifica não só o seu espírito profundamente poético,
mas também o seu humor selvagem e milagroso. Claro que a justaposição é central
aqui. Contemplar as paisagens físicas e as mentais de Cruzeiro Seixas é não só
circum-navegar pelo globo, mas também visitar espaços intergaláticos e locais
vertiginosamente além do usual e do dia-a-dia. Ele mostra-nos galáxias
autônomas, uma geologia simbólica totalmente inesperada, e um sem-número de
desertos de outros-mundos, repletos de surpresas: coreografias de cumes de
montanhas, escadas dançantes, arquitetura acrobática, e montanhas-russas para
as estrelas.
Não menos, nos seus labirintos
ímpares e elegantes, aprendemos a linguagem de luzes e sombras, as suas
iluminações preênseis, e a sua relação com o mundo de objetos “familiares”. De
uma forma brincalhona, às vezes hilariante, todavia com esmerado ardor,
Cruzeiro Seixas compartilha conosco os seus pensamentos muito pessoais sobre o
ovo, a estrela-do-mar, o polvo, conchas, maçãs, bicicletas, lâmpadas, penas,
árvores, pianos, mãos, pernas, pés, cabelo, guarda-chuvas e muitos mais.
Vendo o panorama
extraordinário do seu trabalho, fica claro que Cruzeiro Seixas teve o prazer de
ir a locais, e de ver coisas em terras distantes, como também o de alcançar os
pontos mais remotos da experiência objetiva e da imaginação. Os seus muitos
anos na África seguramente elevaram o seu sentido do maravilhoso e da magia,
como também a sua forte oposição ao colonialismo e imperialismo, da mesma forma
que o seu amor pelo jazz, aprofundaram e fortaleceram o seu espírito
surrealista militante.
Nas suas viagens – não só as
da "realidade" como também as da imaginação – é claro que ele teve o
prazer de abrir muitas portas – realmente, florestas inteiras de portas,
abrindo-se para vistas incontáveis e imprevistas. Graças a Cruzeiro Seixas,
muitas coisas novas são agora possíveis na arte de desenhar.
Além das suas realizações
magníficas no desenho, na poesia, no humor e no devaneio, é digno salientar que
Cruzeiro Seixas é também um homem de profundidade filosófica. Conhecedor da
obra de Espinosa, ele refletiu no “Pensamento”
de Pascal como também nos desvios a este, de Lautréamont. Os pensadores e
especuladores utópicos que mais influenciaram o surrealismo são todos parte da
sua segunda natureza. Filosófico, também, no seu próprio modo genial, é o seu
ardente respeito por Jacques Vaché e pelo seu “Umor” imortal, humor sem o h, como o próprio Vaché pôs numa
carta para André Breton: "Nós vamos rir, não vamos?" Riso das
esferas!
Sempre desafiante, sempre
admirável! Je te salue, Cruzeiro Seixas!
***
Franklin
Rosemont
(1943-2009). Ensaísta e artista plástico, um dos nomes centrais do Surrealismo
nos Estados Unidos. O presente texto, escrito em 14/07/2007, foi incluído no
catálogo da exposição de Cruzeiro Seixas em Torres Novas: Galeria Neupergama, abril a maio
de 2008.
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