sábado, 19 de setembro de 2015

FRANKLIN ROSEMONT | Os desenhos de Cruzeiro Seixas


Desenhos surpreendentes só surgem quando os sonhos mais íntimos de um artista irrompem, convergem, juntam forças e de repente se expandem em nada menos do que o imprevisto selvagem. Tais passos gigantescos por sua vez conduzem-nos diretamente a novos e excitantes modelos do Pluriverso – uma entidade imaginativa poderosa, imensamente maior, mais profunda e mais encantadora do que o universo paroquial, comum.
O meu grande amigo Artur do Cruzeiro Seixas, a quem o mundo deve indiscutivelmente tantos dos mais maravilhosos desenhos das últimas cinco décadas, é também um dos incontestáveis mestres deste Pluriverso em perpétua transmutação. Uma figura principal no movimento surrealista internacional pela segunda metade do século XX, ele continua a ser como a presente exposição demonstra, um excelente exemplo e mentor no séc. XXI.
A minha mulher Penélope e eu consideramos Cruzeiro Seixas um amigo especialmente íntimo desde 1970, embora nunca nos tenhamos de fato encontrado "em pessoa". A nossa amizade foi formada por uma troca de cartas entre Lisboa e Chicago – uma troca que tem persistido ao longo destes muitos anos – e também pela nossa participação mútua em numerosas publicações e exposições surrealistas internacionais. Todas as cartas que dele recebemos foram uma celebração para nós e para todo o Grupo Surrealista de Chicago.
Penélope e eu vimos pela primeira vez uma seleção de desenhos de Cruzeiro Seixas na véspera da Exposição Mundial Surrealista em Chicago, em 1976, quando, com os nossos amigos co-organizadores do evento, abrimos o grande caixote de Portugal, que incluía trabalho seu. Ficamos profundamente emocionados por tudo aquilo que vimos: emocionados pela sua qualidade mágica, pela sua precisão complicada, e – de forma alguma menos emocionados – pela sua maravilhosa simplicidade.
Realmente, os elementos essenciais no seu laboratório alquímico de palavras e imagens são na verdade surpreendentemente simples: um imaginário absolutamente desacorrentado, um fascínio de espírito livre e um sentido desafiadoramente transformador da poesia e do humor. O seu “puro automatismo psíquico” sempre esteve entre os mais puros.
Esticando os limites da “probabilidade convencional” e rompendo o “desconhecido” com novo e provocante conhecimento, ele também teve a ousadia repetidas vezes de desafiar e destruir o denominado “impossível”, com um arsenal de possibilidades inéditas e saídas de um impulso.



Poeta em palavras como também em desenhos, Cruzeiro Seixas lembra-nos a cada momento que escrever é uma espécie de desenhar, e desenhar uma espécie de escrever. Apaixonadamente poético em toda a sua obra e também na sua vida, ele nunca deixou de explorar os mundos escondidos e secretos do sono, o inconsciente, o extático, o hermético e enigmático. Os seus desenhos mágicos, não menos do que os seus poemas esplendorosos, dão-nos a consciência de que ele se sente perfeitamente à vontade nos mais desconcertantes encontros ocasionais e na matemática da música, bem como nas fantasias e nos devaneios da revolução.
A sua mistura maravilhosa de alquimia e anarquia exemplifica não só o seu espírito profundamente poético, mas também o seu humor selvagem e milagroso. Claro que a justaposição é central aqui. Contemplar as paisagens físicas e as mentais de Cruzeiro Seixas é não só circum-navegar pelo globo, mas também visitar espaços intergaláticos e locais vertiginosamente além do usual e do dia-a-dia. Ele mostra-nos galáxias autônomas, uma geologia simbólica totalmente inesperada, e um sem-número de desertos de outros-mundos, repletos de surpresas: coreografias de cumes de montanhas, escadas dançantes, arquitetura acrobática, e montanhas-russas para as estrelas.
Não menos, nos seus labirintos ímpares e elegantes, aprendemos a linguagem de luzes e sombras, as suas iluminações preênseis, e a sua relação com o mundo de objetos “familiares”. De uma forma brincalhona, às vezes hilariante, todavia com esmerado ardor, Cruzeiro Seixas compartilha conosco os seus pensamentos muito pessoais sobre o ovo, a estrela-do-mar, o polvo, conchas, maçãs, bicicletas, lâmpadas, penas, árvores, pianos, mãos, pernas, pés, cabelo, guarda-chuvas e muitos mais.
Vendo o panorama extraordinário do seu trabalho, fica claro que Cruzeiro Seixas teve o prazer de ir a locais, e de ver coisas em terras distantes, como também o de alcançar os pontos mais remotos da experiência objetiva e da imaginação. Os seus muitos anos na África seguramente elevaram o seu sentido do maravilhoso e da magia, como também a sua forte oposição ao colonialismo e imperialismo, da mesma forma que o seu amor pelo jazz, aprofundaram e fortaleceram o seu espírito surrealista militante.
Nas suas viagens – não só as da "realidade" como também as da imaginação – é claro que ele teve o prazer de abrir muitas portas – realmente, florestas inteiras de portas, abrindo-se para vistas incontáveis e imprevistas. Graças a Cruzeiro Seixas, muitas coisas novas são agora possíveis na arte de desenhar.
Além das suas realizações magníficas no desenho, na poesia, no humor e no devaneio, é digno salientar que Cruzeiro Seixas é também um homem de profundidade filosófica. Conhecedor da obra de Espinosa, ele refletiu no “Pensamento” de Pascal como também nos desvios a este, de Lautréamont. Os pensadores e especuladores utópicos que mais influenciaram o surrealismo são todos parte da sua segunda natureza. Filosófico, também, no seu próprio modo genial, é o seu ardente respeito por Jacques Vaché e pelo seu “Umor” imortal, humor sem o h, como o próprio Vaché pôs numa carta para André Breton: "Nós vamos rir, não vamos?" Riso das esferas!
Sempre desafiante, sempre admirável! Je te salue, Cruzeiro Seixas!




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Franklin Rosemont (1943-2009). Ensaísta e artista plástico, um dos nomes centrais do Surrealismo nos Estados Unidos. O presente texto, escrito em 14/07/2007, foi incluído no catálogo da exposição de Cruzeiro Seixas em Torres Novas: Galeria Neupergama, abril a maio de 2008.







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