sábado, 14 de novembro de 2015

CÉLIA MUSILLI | Wolfgang Pannek e o embate crucial de Artaud


Transpor a obra de Antonin Artaud para a linguagem coreográfica foi o desafio da Taanteatro Companhia que, em 2015, dedicou-se ao projeto cARTAUDgrafia.  O título é a combinação da palavra cartografia com o nome de Antonin Artaud, trata-se de um mergulho na vida e obra do poeta, dramaturgo e pensador francês conhecido por suas rupturas e inovações na linguagem, além das ideias que o colocam como um dos nomes mais importantes do teatro do século 20.
cARTAUDgrafia é composta de três espetáculos, o primeiro – cARTAUDgrafia 1 – uma correspondência - estreou em maio e levou ao público a correspondência, inédita no Brasil, de Artaud com o editor francês Jacques Rivière que recusou-se a publicar seus poemas, mas publicou suas cartas, essa publicação marcou a estreia de Artaud no meio literário.
Em cARTAUDgrafia 2 – Viagem ao México,  que estreou em setembro, a Taanteatro mostrou os conflitos de Artaud com a cultura europeia, tendo em vista um contexto antropológico, indígena e pansemiótico, até chegar aos limites da sua internação psiquiátrica.
Atualmente em cartaz em São Paulo, a companhia apresenta a trilogia inteira até 13 de dezembro. O último espetáculo da série de montagens, cARTAUDgrafia 3 -  Retorno do Momo, evidencia a fase mais dolorosa das internações psiquiátricas de Artaud e seu embate com as formas violentas de tratamento que pressupõem a tentativa de institucionalização do corpo em oposição à ideia de um “corpo sem órgãos”, livre de codificações sociais e culturais.
Trata-se de um trabalho denso, de meticulosa composição coreográfica, que ressignifica e atualiza as formulações filosóficas e estéticas de Artaud.
Wolfgang  Pannek. Diretor e produtor alemão radicado no Brasil desde 1992. Mestre em Artes (filosofia, letras e psicologia) pela FernUniversität Hagen (Alemanha) e co-diretor da Taanteatro Companhia desde 1994. Seu trabalho na companhia foi contemplado com prêmios das esferas municipal, estadual e federal. No Brasil dirigiu os espetáculos CaimAbel (1994), Homem Branco e Cara Vermelha (1998), Primeiro Fausto (1999), Esperando Godot (2000) Rit.U (2010),  Máquina Hamlet Fisted (2011) e 50 desenhos para assassinar a magia (2014), entre outros. Dirigiu a produção de projetos internacionais como Mostra 95 Butoh e Teatro PesquisaArtaud 100 Anos (1996), Intercâmbio Cultural Matola-Brasil (2005) e Hans Thies Lehmann Brasil Tour 2010. Como ator participou de diversas montagens da Taanteatro Companhia e, entre 2002 e 2004, de Os Sertões do Teatro Oficina sob a direção de José Celso Martinez Corrêa. Na televisão atuou nos seriados fdp (HBO Brasil) e O Caçador (TV Globo)  e na telenovela Além do horizonte (TV Globo). Traduziu peças teatrais e textos de Thomas Bernhard, George Tabori, Heier Müller e Antonin Artaud, entre outros. Ao lado de Maura Baiocchi, é  co-autor dos livros Taanteatro – teatro coreográfico de tensões, Taanteatro – rito de passagem e  Taanteatro Mae - Mandala de Energia Corporal. Sob o título Deleuze no país das palmeiras organizou e traduziu um conjunto de artigos e entrevistas com filósofos brasileiros publicados na revista online deleuze international. Publicou artigos em revistas de artes cênicas da USP, UNICAMP, UFG e UBA. Pannek trabalhou na Alemanha, Argentina, Brasil, EUA, Inglaterra e no Japão. 

CM | Um dos textos fundamentais de cARTAUDgrafia 3 – que inclusive dá título ao espetáculo - é Artaud, o Momo. A palavra Momo pode ser entendida de diversas formas: alguns a associam à palavra criança (momê em francês), outros a ligam ao Momo no sentido do bufão, do bobo, do louco e há ainda a relação com Momos, o deus grego do teatro satírico. Tendo em vista que, ao longo da trilogia, a Taanteatro Companhia abordou tanto a infância de Artaud quanto sua relação com a loucura, como essas duas fases – ou faces - se relacionam neste último espetáculo?

WP | A identificação de Artaud com a figura do Momo está presente nos títulos de duas obras escritas em 1947: Artaud, o Momo, livro de poemas, e A Verdadeira História de Artaud-Momo, a lendária conferência proferida no Théâtre du Vieux Colombier.
É provável que ele valeu-se intencionalmente da multiplicidade de sentidos que o termo suscita, dessa mistura instigante de consciência alterada, crítica e humor. Nossa trilogia evita a redução da abordagem da produção artaudiana a um ponto de vista da patologia. Estamos interessados na atualidade dos problemas que levantou. Ao distinguir em sua trajetória duas fases separadas pela irrupção da loucura, corremos o perigo de adotar uma ótica que Artaud rejeitou, a da psiquiatria. Prefiro considerar as particularidades de seu processo de subjetivação e de suas transformações espirituais como um processo de radicalização contínuo que se desdobra ao longo de sua vida.   
Para compreender essas transformações é imprescindível perceber a relação estreita da crítica de Artaud à cultura do Ocidente, seu interesse prático de superar o problema milenar da separação de corpo e espírito por meio do Teatro da Crueldade. O diferencial em Artaud é sua tentativa de transcender o plano meramente discursivo ou artístico. Essa tentativa na forma de uma revolução interior o leva à ruptura com os paradigmas cognitivos, comportamentais e criativos de sua cultura, e culmina, em 1937, em sua deportação da Irlanda e na internação em manicômios franceses até 1946, ou seja, durante todo período da carnificina industrializada promovida pela Segunda Guerra Mundial.
Cada parte da trilogia problematiza elementos dessa transfiguração ativa que visa em última instância a criação do ‘corpo sem órgãos’, isto é, um corpo autônomo, livre de determinações socioculturais e até mesmo biológicas. Em cARTAUDgrafia 3: Retorno do Momo elaboramos trechos da conferência de Artaud, seu acerto de contas com a psiquiatria.

CM | Na História da Loucura, Michel Foucault aborda a situação do Bobo ou do Louco na Idade Média como a do “portador da verdade”. Eram os bobos, de forma teatral, que diziam à sociedade aquilo que ninguém tinha coragem de dizer, valendo-se do humor e da sátira. Levando-se isso em conta, podemos dizer que Antonin Artaud teve o papel de “portador da verdade” em seu tempo, ainda que pesasse sobre ele o estigma da loucura?

WP | Desde a sua participação no movimento surrealista, Artaud faz questão de confrontar a sociedade com verdades inconvenientes relativas à arte, cultura, sociedade, religião, família, pátria, propriedade, guerra, medicina e às drogas. Paralelamente, ele constrói o personagem Antonin Artaud, que desempenha, no limiar entre vida e obra, o papel de um portador de tais verdades. Em função de sua aproximação com Nerval, Nietzsche e Van Gogh mas, sobretudo, por experiência própria, Artaud sabia que a sociedade aceita e cultiva de bom grado as mais absurdas crenças religiosas ou ideológicas, mas dificilmente tolera certas perspectivas individuais que põem os códigos coletivos em questão. Quem se opõe ao coletivo deve ser insano, consequentemente acaba estigmatizado.
Creio que Artaud aborda o tema do Momo consciente dos efeitos da história da loucura sobre sua própria trajetória. Mas nele não existe nenhuma identificação com a subalternação do bobo da corte, isto é, ao poder. Artaud tem vocação pelo absoluto e isso o leva à superação revolucionária da história em nome do devir, como anarquista coroado no trono de sua própria consciência.

CM | Correspondendo à obra de Artaud, cARTAUDgrafia 3 faz uma intensa crítica aos tratamentos psiquiátricos, isso representa um grande eixo dentro da montagem. Essa abordagem demandou pesquisa além das obras de Artaud, houve incursão também pelos novos métodos de tratamento tendo em vista a expansão da indústria farmacêutica?

WP | A crítica à psiquiatria é uma dimensão fundamental dos últimos escritos de Artaud e precisa ser considerada num trabalho como o nosso. Mas não entramos no campo de uma crítica aos tratamentos da psiquiatria contemporânea, apesar de consideramos todas as tentativas de normatização da consciência com sérias reservas. A pesquisa bibliográfica relativa a Artaud foi extensa. Incluiu, além da obra de Artaud, biografias e estudos diversos, entre os livros Antonin Artaud na Guerra e Sobre o eletrochoque, o caso Antonin Artaud de Florence de Mèredieu que forneceram dados importantes para a criação dramatúrgica.

CM | Em Artaud o Momo, o autor fala da perda de identidade e de um “estado de escoamento” que chega ao vazio, tendo em vista os tratamentos cruéis a que foi submetido. Essa fragmentação da identidade ou dissolução do Eu foram abordados de que forma no espetáculo?

WP | Os problemas do Eu e do Vazio formam uma constante da reflexão de Artaud. Na esteira de Nietzsche, Artaud questiona a noção do Eu como elemento fundamental do pensamento ocidental. Ao mesmo tempo, insiste, heroicamente e com grande intensidade, na afirmação, defesa e criação do Eu de Antonin Artaud. Essa tensão ambígua caracteriza também sua relação com o Vazio. O Eu e o Vazio designam um limiar entre a possibilidade e a impossibilidade da vida. Artaud busca a revolução interior do ser humano, submetendo-se voluntariamente a um rito mexicano que implica na morte simbólica do Eu. Mas no manicômio recusa, compreensivelmente, a submissão involuntária à ‘sismoterapia de dissolução-reconstrução’, que opera a desconstrução simbólica de um Eu considerado doente por meio do eletrochoque. Em outras palavras, a aceitação ou recusa do Eu ou do Vazio dependem de um contexto que define a noção da saúde em relação à autonomia. O eletrochoque intervém na vida de Artaud com ironia sinistra: como versão niilista do Teatro da Crueldade.
Na primeira parte de Retorno do Momo tentamos construir um ambiente povoado por visões, vozes, gestos e movimentos em estado de suplício e revolta. O combate de um Eu ameaçado em sua integridade pela “magia negra” do juízo psiquiátrico e pelos fantasmas de uma sociedade hipersexualizada. Na segunda parte da peça vemos a resposta crítica de Artaud e sua proposta: a criação de uma nova anatomia humana.

CM | Como deu-se a escolha de outros textos – além de Artaud o Momo – para fechar a trilogia? O que determinou essas escolhas?

WP | A dramaturgia de cARTAUDgrafia 3 é composta por textos provenientes de As Novas Revelações do Ser, A Verdadeira História de Artaud-Momo, Supostos e Supliciações, Carta a Pierre Loeb e O Rosto Humano. Além disso, aproveitamos protocolos médicos e cartas de Artaud do período de internação e a produção pictográfica do poeta.
Dada a riqueza da produção de Artaud posteriormente à sua saída do manicômio, é claro que qualquer seleção depende de certas preferências. Minhas escolhas foram motivadas pela intenção de evidenciar uma linha de continuidade no percurso poético-existencial de Artaud. Essa linha leva de sua desintegração da cultura europeia, tematizada em Viagem ao México, até um de seus grandes legados: a concepção do corpo sem órgãos.
A ideia da desorganização e ativação cognitiva do corpo humano por meio de um bombardeio sensorial já pertencia ao programa do Teatro da Crueldade. Mas a privação de acesso à máquina convencional da cultura, durante o período de internação, e a experiência própria da desintegração do Eu sob o eletrochoque devem ter reforçado a transferência do foco dos interesses de Artaud: da revolução da instituição do teatro para a desinstitucionalização de seu próprio corpo.    
As Novas Revelações do Ser traz a descrição da separação do poeta do mundo social e sua invocação de um combate entre forças supra-históricas; os protocolos psiquiátricos e as cartas artaudianas, dirigidas a políticos, Hitler, sua mãe e seus médicos, opõe sua luta por liberdade e integridade ao jargão dos representantes do mundo manicomial; A História Verdadeira de Artaud-Momo denúncia expressamente a psiquiatria e prepara, a partir de um reconhecimento - “eu não tenho o corpo que eu deveria ter” - a afirmação da necessidade de uma revolução da anatomia humana. De Supostos e Supliciações selecionei trechos que especificam a revolta artaudiana contra as codificações do corpo e as glossolalias com o intuito de encenar o surgimento de uma nova maneira de expressão poética. Finalmente, em Carta a Pierre Loeb, Artaud esclarece sua concepção do corpo sem órgãos na figura do ‘homem árvore’, mítico ancestral do ser humano atual, dotado de pura “vontade que decide de si a cada instante”.

CM | O que significa desenhar a partitura física para um ‘corpo sem órgãos’ tendo em vista um trabalho coreográfico a partir da obra de Artaud?

WP | Deleuze e Guattari observaram, com bons motivos, que o ‘corpo sem órgãos’ é algo que nunca se alcança. A forma definitiva, desvinculada das energias que engendram essa forma, é a morte do corpo sem órgãos. Quem deseja criar uma coreografia sem órgãos precisa estar disposto a uma luta permanente contra a formalização, funcionalização e institucionalização do corpo. Isso implica no combate contra os próprios inventos deste corpo.
O taanteatro ou teatro coreográfico de tensões dispõe de práticas criativas que estimulam a dança singular de cada performer. Em cARTAUDgrafia, como em outras produções da Taanteatro Companhia, procuramos integrar essas singularidades, tanto em trabalhos solo quanto em cenas e coreografias coletivas. Em termos concretos isso significa que os performers improvisam a partir de um disparador criativo - uma tensão metafórica ou temática - proposta pela direção coreográfica. Essas improvisações ocorrem, por exemplo, no Mandala de Energia Corporal, dinâmica coreográfica concebida por Maura Baiocchi que integra as faculdades sensíveis, corporais e cognitivas do performer a favor de uma presença coreográfica em que força e forma não se divorciam. Os inventos e achados dessa prática passam por processos seletivos e de compartilhamento. No caso ulterior, as forças-formas de criações individuais são transferidas de um corpo para o outro, numa espécie de reconfiguração corporal mútua. Cabe à direção coreográfica auxiliar na seleção, intensificação e no apuramento dos movimentos singulares encontrados e cuidar de seu agenciamento no contexto do acontecimento performático.


CM | Em outros espetáculos da trilogia tivemos momentos marcantes, um deles foi a interpretação de Maura Baiocchi para Montezuma em cARTAUDgrafia2 - Viagem ao México, que remete à ideia de um “transe teatral” dada a intensidade com que se dá a metamorfose da performer em cena. Em cARTAUDgrafia 3 como são trabalhados momentos assim tão exigentes e intensos que remetam a verdadeiras transfigurações?  

WP | Toda a equipe de cARTAUDgrafia trabalha com grande dedicação, mas a dramaturgia reserva momentos de maior destaque individual ao personagem de Artaud que é presentificado por performers diferentes.
O Artaud em idade adulta conta com a atuação de Alda Maria Abreu e Maura Baiocchi. Ambas desempenham seu respectivo papel de forma impressionante; não por mimetizarem o personagem histórico, mas por incorporarem e atualizarem, cada uma à sua maneira, as energias e os problemas artaudianos.
Maura Baiocchi, como Antonin Artaud e Montezuma, é fora de série. Compartilha com Artaud o corpo poroso, conectivo e radiante, o ‘corpo esquizofrênico’ invocado por Deleuze em Lógica do Sentido, a ‘esquizopresença’ no taanteatro. É um fenômeno que transcende a representação teatral convencional. A Taanteatro Companhia procura cultivar essa disposição por meio de práticas criadas pela própria Maura.
Mas é preciso tomar cuidado com a expressão “transe teatral”. Ela pode levar à falsa impressão de uma perda de consciência. Artaud recusou o transe no teatro. Crueldade significa ‘lucidez aplicada’. A qualidade da presença performática em questão demanda um grau extremo de lucidez e de percepção das complexas inter-relações de todos os elementos que compõem o acontecimento performático. Se quisermos estabelecer uma relação entre a esquizopresença e o “transe teatral”, a correspondência seria talvez o transe controlado do xamã. Em cARTAUDgrafia 3, sobretudo no último monólogo, deparamo-nos com tais instantes, sublimes e extemporais, que não fazem concessão aos costumes habituais da dança e do teatro.

CM | A deportação de Artaud da Irlanda – que abre o espetáculo – retoma o tema das migrações intercontinentais, abordado nos espetáculos anteriores, e que funciona como uma crítica geopolítica da situação dos nômades que cruzam os mares e muitas vezes sucumbem à travessia. O que diferencia ou aproxima a deportação de Artaud da realidade contemporânea?

WP | Ao longo da trilogia, estabelecemos uma relação entre as migrações extensivas atuais - empreendidas por motivos políticos, econômicos e ideológicos - e as migrações intensivas que caracterizam Artaud. Em ambos os casos, é possível falar de tentativas de autopreservação e autorealização. Por acaso e ironicamente, o Acordo de Dublin designa na atualidade uma lei que define a política voltada aos refugiados da União Europeia. Mas naturalmente, seria equivocado insistir em correspondências excessivamente diretas entre o poeta Artaud em 1937, em busca das fontes originais da cultura celta na Irlanda, e os problemas enfrentados pelos migrantes vindos da Síria, Eritreia ou da Nigéria em 2015. Ainda assim, e apesar das diferenças históricas óbvias, é possível perceber, em ambos os casos, a grande dificuldade sociocultural, política e econômica de integrar e se abrir a pessoas e grupos de origens, valores e modos de vida distintos que, por motivos diversos, se veem forçados a abandonar uma forma sedentária de vida e procurar novas maneiras de existência. Os migrantes, tanto no plano da geografia quanto no da consciência, são confrontados com fronteiras múltiplas e muitas vezes são percebidos como invasores indesejados, como uma espécie de peste social que ameaça o status quo. Por este motivo, são privados, pelas sociedades que sentem-se ameaçadas, de sua liberdade e individualidade. É importante observar que Artaud, em suas viagens e apesar de certos impulsos místicos, permanecia em última análise “fiel à terra”, num sentido nietzschiano. Em contrapartida, muita gente, sedentária e supostamente pragmática, prefere fugir da realidade para paraísos extraterrenos. 

CM | Neste espetáculo, Artaud inicia sua jornada saindo da Irlanda com um bastão que o transforma numa figura messiânica, isso mais tarde desemboca no seu delírio de se tornar Jesus Cristo. De que forma isso liga-se na sua vida e no espetáculo à dissolução de sua identidade, à medida que ele toma outro corpo e, ainda por cima, santificado?

WP | O desejo dirigido ao infinito aparece cedo na obra de Artaud, por exemplo, no poema de juventude Navio Místico. Sabemos que ele passou por flutuações de identidade e por variações da identificação com Jesus Cristo, especialmente ao longo de sua internação entre 1937 e 1946, mas o rótulo do delírio contribui pouco à compreensão dessa identificação. Em A Verdadeira História de Artaud-Momo, ele recusa de forma definitiva a identificação com Jesus Cristo e deixa claro que considera Deus, ou o conceito de Deus, como entidade parasita que se apropria e alimenta indevidamente do corpo e da vida humana. Mostramos isso no espetáculo. Nossa encenação, apesar de inegáveis simpatias, não idealiza nem demoniza Artaud. Não o apresenta como louco, nem como santo. Abordamos problemas apontados por Artaud à medida que ainda possuem relevância para nós. Entre estes problemas figura a relação entre liberdade e pureza. A pureza artaudiana não define uma conduta moralista, mas a autodeterminação do corpo sem órgãos.

CM | O corpo metafísico ou a proposta do ‘corpo sem órgãos’ de Artaud é preponderante neste último espetáculo. Podemos dizer que neste envolvimento visceral com um dos conceitos fundamentais de Artaud, a Taanteatro realiza uma jornada importante no campo do Teatro da Crueldade?

WP | O Teatro da Crueldade é uma poética desenvolvida por Artaud entre 1934 e 1948, que passou por transformações profundas, deslocando seu foco, cada vez mais, do estético para o existencial. Em seu último estágio, o Teatro da Crueldade não propõe formas inovadoras de praticar artes cênicas, mas a transformação da anatomia humana. Essa proposta culmina no conceito e na prática do corpo sem órgãos que constitui até hoje um desafio contínuo nas artes e na filosofia. Frente ao problema filosófico milenar da separação entre corpo e alma, o Teatro da Crueldade reflete sobre a relação entre energia e signo, enfatizando a importância da vinculação sensível dos signos performáticos. A pesquisa do taanteatro desenvolve-se no contexto dessa tradição e, num projeto como cARTAUDgrafia, revisita inevitavelmente os desafios lançados por Artaud. Mas tendo em vista o desenvolvimento conceitual e criativo do teatro coreográfico de tensões e da Taanteatro Companhia ao longo dos últimos vinte e cinco anos, é evidente que nossa encenação não está movida pelo ímpeto de realizar as propostas artaudianas articuladas há sete décadas.

CM | A presença dos coros é muito forte em cARTAUDgrafia 3. Esse foi o modo de representar a importância das sonoridades em Artaud tendo em vista as glossolalias e outras experiências poéticas ou de linguagem delirante?

WP | Em cARTAUDgrafia o coro aparece vigorosamente em Viagem ao México e ganha força ainda maior em Retorno do Momo. A decisão de recorrer ao coro é motivada por uma ideia-chave do Teatro da Crueldade que o aproxima do teatro trágico e que articula a relação entre indivíduo, mito e devir. Em Viagem ao México resumimos essa ideia artaudiana da seguinte maneira: “o verdadeiro teatro coloca-se ao lado da vida, não da vida individual, mas de uma vida liberta em que a individualidade não passa de um reflexo. Sua tarefa é a criação de um mito, a expressão da vida sob um aspecto universal.” O coro é uma forma concreta dessa expressão universal da vida. Trabalhamos com esse veículo de diversas maneiras: Em Viagem ao México um coro de indígenas acompanha e dialoga com o corifeu Artaud em sua crítica da racionalidade branca. Em Retorno do Momo um quarteto de vozes traz uma atmosfera delirante composta por repetições e sobreposições de textos de cartas artaudianas. Nessa peça o coro diferencia também a atmosfera dos textos que abordam o ‘corpo sem órgãos’. Usamos recursos diversos
de recomposição de textos para grupos de vozes, variações de ritmo, tendo a palavra como matéria sonora – com o intuito de evidenciar o sentido desses textos por meio de uma presença sonora cativante. Um dos coros de Retorno do Momo está dedicado às glossolalias de Artaud, linguagem única de Lettura d’Eprahie, livro mítico e perdido que, segundo o poeta, melhor o representa.
     
CM | No espetáculo há um momento de manifestos a partir do coro, retomando-se a própria ideia dos Manifestos de André Breton. Isso significa a retomada do elo de Artaud com o Surrealismo?

WP | A ênfase no coro em Viagem ao México e Retorno do Momo não está relacionada ao surrealismo. O motivo é a dissolução da individualidade no mito, aspecto importante do Teatro da Crueldade. A forma do manifesto integra o repertório poético de Artaud, mas não por ser uma invenção de Breton. Já em 1848 Marx e Engels escreveram o Manifesto do Partido Comunista. A partir de 1900 grupos ideológicos e artísticos diversos, entre os quais os expressionistas, futuristas, dadaístas e surrealistas, declararam suas ideias, intenções e seus protestos fazendo uso desse formato. Em oposição ao vale-tudo formal da arte pós-histórica que segue as criações de Andy Warhol, o filósofo norte-americano Arthur Danto chamou o fervor confessional do início do século XX de “era dos manifestos”. Os manifestos de Breton e de Artaud pertencem a essa era.
Em 1924, Breton convida Artaud a participar do grupo surrealista depois de tomar conhecimento da troca epistolar Uma Correspondência. Artaud mergulha fundo no movimento surrealista. É coordenador do escritório de pesquisas surrealistas e editor de duas edições da revista Révolution Surrealiste. Sua exclusão do movimento ocorre no final de 1926, época da guinada marxista do surrealismo, e é promovida por Breton, Éluard, Aragon, entre outros, que o acusam de “contrarrevolução” e de inclinações religiosas e burguesas. Artaud, por sua vez, considerou a aproximação ao marxismo como incompatível com os princípios surrealistas e com a ideia da revolução do espírito.
Acontece que Breton temia a intensidade e o paroxismo de Artaud. Não gostava de seu “caminho meio anárquico, meio místico” que considerava “um beco sem saída”.
De meu ponto de vista, Artaud foi mais surrealista do que o mentor do surrealismo, André Breton. Ao envelhecer, Breton virou uma espécie de marchand internacional de uma revolução artística superada pelo tempo. Artaud, por sua vez, radicalizou a revolução de seu espírito e sua produção poética até o fim de seus dias. Mas tudo isso não impediu uma admiração mútua mais profunda e duradora, que leva Breton, em 1946, a fazer a locução de  abertura da “Homenagem a Antonin Artaud”, promovida por amigos do poeta. Utilizamos a gravação original dessa locução no espetáculo.

CM | Qual a percepção de vocês sobre a aceitação do público em relação à trilogia sobre a vida e obra de Artaud?

WP | Apresentamos os espetáculos da trilogia em vários bairros de São Paulo, com públicos de formação cultural diversificada; pessoas conhecedoras de Artaud, e outras, inteiramente desprovidas de qualquer noção de sua obra. A impressão que prevalece é de uma reação positiva, instigada e até mesmo comovida. Nem a obra de Artaud, nem a nossa encenação visa agradar, muito menos a todos. Mas o público volta para assistir a continuidade da trilogia. Isso é muito satisfatório porque conseguimos interessar esse público pelos problemas levantados por Artaud; sem incorrer no clichê de mostrar um Artaud “louco de pedra” e sem entrar na armadilha de querer encenar o ‘teatro da crueldade’. A ideia de medição de uma compreensão satisfatória se baseia em expectativas didáticas gerais que não norteiam nosso projeto. A experiência e o aprendizado em contato com um acontecimento performático é algo muito subjetivo. Considerando devidamente as diferenças entre Brecht e Artaud, é importante enfatizar que no teatro o estranhamento é um fator positivo da encenação que visa capturar, de forma diferenciada, o interesse do espectador. A estranheza de Artaud serve a este propósito.



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CÉLIA MUSILLI (Brasil, 1957). Jornalista, cronista e poeta. Autora de Sensível Desafio (2006) e Todas as Mulheres em Mim (2010). Escreve aos domingos na Folha de Londrina. É mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp. Contato: celia.musilli@gmail.com. Página ilustrada com fotos assinadas por Wolfgang Pannek de cenas da trilogia teatral.






Um comentário:

  1. Floriano Martins, muito grata pela edição caprichada e parabéns por mais este número da Agulha. Um abraço.

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