quarta-feira, 4 de maio de 2016

LUCILA NOGUEIRA | Artaud e a reinvenção do teatro europeu


Eu vim ao México fugido da civilização europeia.
…Contrariamente ao que todos foram levados a crer, os povos anteriores a Colombo eram estranhamente civilizados
.

Antonin Artaud

Contra um conceito de cultura adstrito à mera escrita livresca e à erudição racionalista, contra um teatro ancorado de forma dependente nos andaimes da palavra e esquecido de sua gestualidade sacra original, a favor da recuperação dos manas que dormem nas coisas e dos nervos que acordam os homens, na busca de um estado anterior à linguagem oral articulada, pleno de atitudes e de signos, onde os sons tem a força de encantações: essa a força da contribuição, no século XX, do maldito Antonin Artaud (4 de setembro de 1896) para o teatro contemporâneo. Um teatro com dança, gritos, sombras, iluminação, pouco diálogo e muita expressão corporal, a contestar o teatro naturalista francês, que se mostrava muito retórico e completamente subordinado ao texto. Uma compreensão da linguagem para além da simples transmissão de significados, para além do paradigma apenas psicológico instaurado no teatro a partir de Eurípides, em que a encenação é apenas suporte e ornamento dos diálogos humanos; a cena, apenas a superfície passiva onde transcorre o drama. Uma visão do diretor como verdadeiro hierofante e mestre mágico a oficiar o sagrado. Adeus à noção do teatro como entretenimento e simulação, encontro social sem rito ou cerimonial - trata-se agora de viver o teatro como uma pulsão onde o corpo transcende o humano em direção à divindade.
Essa ideia de contraposição do teatro oriental ao ocidental surge em Artaud a partir da apresentação de um grupo de teatro de Bali, em que a dança está sempre presente, assim como a ênfase nas expressões faciais, mimese de um processo cósmico em que o ator oferece seu corpo à divindade e ao espectador, ritual de um templo que aproxima o mundo divino como uma espécie de yoga. Não estava muito longe a visão do poeta como um sacerdote, peculiar ao romantismo alemão; inclusive, a partir de Wagner o teatro passa a ser pensado de modo antropológico. Na sequência da evolução dessa ruptura com o tradicional teatro da palavra, vai surgir o teatro do corpo: não que renuncie completamente ao texto, mas que o incorpora com um dos elementos do processo de criação; um teatro que busca sair da mimese e do espetáculo para se constituir em um modo de viver, pois o ator deixa de ser apenas um intérprete e pactua da própria inauguração artística.
A ênfase na ação física do corpo também será encontrada em outros teóricos importantes do teatro como Stanilavski, Meyerhold, Piscator, Reinhardt, Jacques Copeau, Grotowski. Posteriormente no Brasil, Augusto Boal com seu Teatro do Oprimido, de ideologia brechtiana, também irá transformar o espectador em protagonista. Entretanto, observa-se que a proximidade de Artaud com a dramaturgia alemã do século XIX (Woyzeck,de Büchner) e o mencionado gosto pelos seus românticos (Kleist, Hölderlin) irmãos de maldição e vítimas dos “enfeitiçadores”, como de resto o foram os franceses Baudelaire e Nerval, o holandês Van Gogh. A considerar-se que há também afinidade de Artaud com Nietzsche (valorização do corpo e exaltação dos valores vitais face aos da razão intelectiva - escreve com o sangue), vemos que existia na própria Europa uma recusa ao teatro psicológico e naturalista, própria do clima que favorecera as vanguardas.
Daí podermos considerar como integrantes dessa linhagem à qual pertence Artaud: os futuristas (teatro circular e desprezo à imitação), os dadaístas (ritual coletivo com atores improvisados que se descobrem a si mesmos e ao público), os surrealistas (invasão soberana do inconsciente), Adolphe Appia (eliminação da diferença palco/plateia; a base é sempre o gesto), Edward Gordon Craig (o dançarino foi o pai do dramaturgo, a dificuldade do teatro foi a sua anexação à escrita porque ele não é um gênero literário), Tairov (rejeição à submissão do teatro ao texto escrito), Fuchs (fazer do teatro a alma da multidão), Evreinov (teatro como meio de ultrapassar a morte), Vakhtangov (como Stanislavski, lutou por um teatro não discursivo), Syrkus (teórico do teatro simultâneo), Walter Gropius autor do projeto de teatro total bastante relacionado ao espetáculo giratóriode Artaud)… Etienne Decroux, Ghelderode, o ator Conrad Veidt, para não falar de Sade, Fargue, e sobretudo da Cabala, em que um dos principais ensinamentos é atentar para o valor sonoro e não semântico das palavras (Alain Virmaux, 1990).
Se na Europa já existia, portanto, um caminho trilhado nessa direção, o que haveria de conferir a Artaud o perfil de grande visionário do teatro no século XX? Desejando vivenciar seus próprios símbolos e mitos, ele consegue em 1936 uma bolsa e vai pesquisar os índios tarahumaras no México, passa quase um ano estudando antropologicamente o ritual do peyote, acreditando na cultura indígena como resgate de uma percepção do mundo que o ocidente dera por perdida. Também Malcom Lowry estaria em terras mexicanas por duas vezes e escreveria Debaixo do Vulcão; o sonho de despir-se Artaud da identidade de civilizado leva-o a alcançar um estado poético absoluto, onde caem por terra as estruturas arcaicas da linguagem, onde a retórica é inútil e a beatitude ultrapassa a reflexão.
Também a identidade acha-se roubada ao eu pelo outro e Artaud guarda esse dilema, porque cada um carrega consigo o seu Lautréamont, o seu Hölderlin, o seu Strindberg, o seu Nietzsche, e eles são irredutíveis, até o fim da solidão (Joski). Daí a tentativa do teatro de Artaud de fixar a alteridade, desde o etnográfico ao metafísico; do questionamento da superioridade da Europa sobre os povos colonizados à crítica da superstição do texto em face da explosão da vida: indagando onde radica a justificativa que um continente pode ter para servir-se de outro, Artaud opõe a tirania dos colonizadores à profunda harmonia dos colonizados e evoca Montezuma, rei dilacerado, o das paredes de ouro cobiçadas pelos brancos invasores. Quando retorna à Europa, vai fazer uma peregrinação nos locais sagrados da cultura celta, aquela que foi derrotada historicamente pelos romanos; a partir daí é deportado para a França (setembro de 1937), por se encontrar sem recursos e em estado de grande exaltação.
Tem sido constante a consideração dos gênios como dementes, loucos ou visionários. Veja-se Blake, Goya, Van Gogh, Rimbaud. Nietzsche foi oficializado doente ao chorar em praça pública diante do chicoteamento de um cavalo. Exige-se socialmente uma normalidade com características de controle e objetividade. Mas a mente humana é passional, infantil, inocente. A crítica do conceito de espetáculo de Artaud expulsa a arte do teatro como falsidade, defendendo a união entre a poesia, a filosofia, o grito, a biografia em um único ato: escrever é o mesmo que viver, desaparecendo a cisão entre vida e obra. Lembra Claudio Willer que as suas propostas sobre teatro são hoje práticas correntes: a criação coletiva, a improvisação em cena, o primado do gestual e da expressão corporal, união palco e plateia, o happening, a performance; as correntes de pensamento da chamada contracultura são de alguma forma um legado de Artaud; também os estudos sobre a relação entre o corpo e a consciência, bem como a devoção que lhe dedicou o grupo reunido em torno da revista Tel Quel, tudo sinaliza para essa postura de rebelião radical que se recusa a compactuar com a violência absurda da civilização ocidental, e deu ensejo à geracão beat americana (Ginsberg, Burroughs, Kerouac) bem como ao movimento hippie dos anos sessenta, seguido por manifestações mais radicais como os punks, pós-punks e diversos tipos de orientalismo ocidental cotidiano.
O seu exemplo atua como símbolo icônico de sua plataforma: ele vai viver o que predica, é ator de seu próprio personagem. Para esses casos, a sociedade não está nunca preparada: será trancafiado em clínicas até 25 de maio de 1946, sempre escrevendo muito e na verdade a sua produção principal. A acreditar em Foucault, segundo o qual onde há obra não há loucura, se tivesse família a ela caberia propor uma ação de indenização por internamento. Mas Artaud não tinha ninguém, só os seus amigos que ainda sem as prerrogativas do sangue conseguiram tirá-lo do excessivo rigor de Rodez, já próximo de sua despedida (4 de março de 1948). Diagnósticos: câncer no reto; envenenamento por doses de heroína e morfina; suicídio. Desde os 24 anos tomava láudano para aliviar suas dores de cabeça, tinha convulsões, havia estado em clínicas na juventude. No período mais longo de internamento, já na maturidade, sofreu, como terapia psiquiátrica, mais de cinquenta sessões de eletrochoque, cuja violência denunciou com muita coragem.
Importa lembrar que o choque eletroconvulsivo (ou ECT) é utilizado como terapia por Ugo Cerletti e Lucio Bini justo em 1937, ano da internação de Artaud ao regresso da Irlanda; foi bastante divulgado em 1939 na Europa pelo alemão L. B. Kalinovski; foram submetidos a sessões de eletrochoque os escritores americanos Ernest Hemingway e Sylvia Plath (ambos se suicidaram). Dizem que uma mente que passa por eletrochoques não se reintegra com facilidade, daí haver originado posteriormente à época de Artaud muitos processos por parte de pacientes; em 1962, Ken Casey escreve um romance baseado na sua experiência em um hospital psiquiátrico de Oregon, que Milos Forman transformaria no filme Um Estranho no Ninho; em 1970, a terapia estava derrotada pelos comprimidos antidepressivos. No Brasil, contudo, recentemente, Austregésilo Carrano Bueno escreve o livro Canto dos Malditos, também baseado em sua experiência de paciente interno submetido a eletrochoques, que foi transformado em filme por Laís Bodanzy, com o título de Bicho de Sete Cabeças. Um poema de Antonin Artaud denuncia a violência dessa terapia até hoje defendida (às vezes secretamente) por psiquiatras pós-graduados:

Passei nove anos num asilo de alienados.
Fizeram-me ali uma medicina que nunca deixou de me revoltar.
Essa medicina chama-se eletrochoque
   
    , consiste em meter o paciente num banho de eletricidade
fulminá-lo
e pô-lo bem esfolado a nu
    e expor-lhe o corpo tanto externo como interno
    à passagem de uma corrente
    que vem do lugar onde não se está
nem deveria estar

para lá estar.
O eletrochoque é uma corrente que eles arranjam sei lá como,
que deixa o corpo,
o corpo sonâmbulo interno,
estacionário
para ficar sob a alçada da lei
arbitrária do ser,
em estado de morte
por paragem do coração.









Durante o tempo em que passou internado, Artaud demonstrou estar em plena posse de sua escrita. Denunciou as clínicas psiquiátricas como cárceres onde os internos provém mão-de-obra gratuita, onde a brutalidade é norma. Assim se dirigiu em sua "Carta aos Diretores de Manicômios":

As leis, os costumes lhes concedem o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem com o seu entendimento. Não nos façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, reveste a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem está julgada por antecipação. …Todos os atos individuais são antissociais. Os loucos são as vítimas individuais por excelência da ditadura social. …. Sem insistir no caráter verdadeiramente genial das manifestações de certos loucos, na medida de nossa aptidão para apreciá-las, afirmamos a legitimidade absoluta de sua concepção de realidade.

Aos 110 anos de seu nascimento só a poesia pode ter voz ao grande mestre estético e humano autor de um ensaio tão clarividente e profético como Van Gogh, o suicidado pela sociedade:

Artaud
a Europa se esgotou
e tu vieste à América dos tarahumaras primitivos
dançando a força de seus rituais
até chegar ao estágio da visão.

Você queria entender o sol
participar do transe de secretas ordenações
como se tudo fosse uma espécie de lição

e agora alguma coisa te restitui
ao que existe do outro lado de ti
aprende Artaud
a reconhecer os sinais
os deuses nos contemplam dos rochedos
e eles nada pedem
só o físico sobrenatural
só a matéria de tua pele
em carne viva desde sempre
a refletir um sonho que se vai

agora conheces os que curam através do sonho
e sabes que um branco é apenas um homem
que os espíritos abandonaram

agora sabes das cruzes com os espelhos amarrados entre dois sóis
raiz hermafrodita
labareda
faz teu apelo às forças obscuras

Artaud
grande mestre curandeiro
o rito da aurora negra
na noite eterna do sol.



*****

Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Salvador Dalí
Agradecimentos a Hernán Alejandro Isnardi
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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