Eu vim ao México fugido da civilização europeia.
…Contrariamente ao que todos foram levados a crer, os povos anteriores a Colombo eram estranhamente civilizados.
…Contrariamente ao que todos foram levados a crer, os povos anteriores a Colombo eram estranhamente civilizados.
Antonin Artaud
Contra um conceito de cultura adstrito à mera escrita livresca e à
erudição racionalista, contra um teatro ancorado de forma dependente nos
andaimes da palavra e esquecido de sua gestualidade sacra original, a favor da
recuperação dos manas que dormem nas coisas e dos nervos que acordam os homens,
na busca de um estado anterior à linguagem oral articulada, pleno de atitudes e
de signos, onde os sons tem a força de encantações: essa a força da
contribuição, no século XX, do maldito Antonin Artaud (4 de setembro de 1896)
para o teatro contemporâneo. Um teatro com dança, gritos, sombras, iluminação,
pouco diálogo e muita expressão corporal, a contestar o teatro naturalista
francês, que se mostrava muito retórico e completamente subordinado ao texto.
Uma compreensão da linguagem para além da simples transmissão de significados,
para além do paradigma apenas psicológico instaurado no teatro a partir de
Eurípides, em que a encenação é apenas suporte e ornamento dos diálogos
humanos; a cena, apenas a superfície passiva onde transcorre o drama. Uma visão
do diretor como verdadeiro hierofante e mestre mágico a oficiar o sagrado.
Adeus à noção do teatro como entretenimento e simulação, encontro social sem
rito ou cerimonial - trata-se agora de viver o teatro como uma pulsão onde o
corpo transcende o humano em direção à divindade.
Essa ideia de contraposição do teatro oriental ao ocidental surge em
Artaud a partir da apresentação de um grupo de teatro de Bali, em que a dança
está sempre presente, assim como a ênfase nas expressões faciais, mimese de um
processo cósmico em que o ator oferece seu corpo à divindade e ao espectador,
ritual de um templo que aproxima o mundo divino como uma espécie de yoga. Não
estava muito longe a visão do poeta como um sacerdote, peculiar ao romantismo
alemão; inclusive, a partir de Wagner o teatro passa a ser pensado de modo
antropológico. Na sequência da evolução dessa ruptura com o tradicional teatro
da palavra, vai surgir o teatro do corpo: não que renuncie completamente ao
texto, mas que o incorpora com um dos elementos do processo de criação; um
teatro que busca sair da mimese e do espetáculo para se constituir em um modo
de viver, pois o ator deixa de ser apenas um intérprete e pactua da própria
inauguração artística.
A ênfase na ação física do corpo também será encontrada em outros
teóricos importantes do teatro como Stanilavski, Meyerhold, Piscator,
Reinhardt, Jacques Copeau, Grotowski. Posteriormente no Brasil, Augusto Boal
com seu Teatro do Oprimido, de ideologia brechtiana, também irá transformar o
espectador em protagonista. Entretanto, observa-se que a proximidade de Artaud
com a dramaturgia alemã do século XIX (Woyzeck,de Büchner) e o
mencionado gosto pelos seus românticos (Kleist, Hölderlin) irmãos de maldição e
vítimas dos “enfeitiçadores”, como de resto o foram os franceses Baudelaire e
Nerval, o holandês Van Gogh. A considerar-se que há também afinidade de Artaud
com Nietzsche (valorização do corpo e exaltação dos valores vitais face aos da
razão intelectiva - escreve com o sangue), vemos que existia na
própria Europa uma recusa ao teatro psicológico e naturalista, própria do clima
que favorecera as vanguardas.
Daí podermos considerar como integrantes dessa linhagem à qual pertence
Artaud: os futuristas (teatro circular e desprezo à imitação), os dadaístas
(ritual coletivo com atores improvisados que se descobrem a si mesmos e ao
público), os surrealistas (invasão soberana do inconsciente), Adolphe Appia
(eliminação da diferença palco/plateia; a base é sempre o gesto), Edward Gordon
Craig (o dançarino foi o pai do dramaturgo, a dificuldade do teatro foi a sua
anexação à escrita porque ele não é um gênero literário), Tairov (rejeição à
submissão do teatro ao texto escrito), Fuchs (fazer do teatro a alma da
multidão), Evreinov (teatro como meio de ultrapassar a morte), Vakhtangov (como
Stanislavski, lutou por um teatro não discursivo), Syrkus (teórico do teatro
simultâneo), Walter Gropius autor do projeto de teatro total bastante
relacionado ao espetáculo giratóriode Artaud)… Etienne Decroux,
Ghelderode, o ator Conrad Veidt, para não falar de Sade, Fargue, e sobretudo da
Cabala, em que um dos principais ensinamentos é atentar para o valor sonoro e
não semântico das palavras (Alain Virmaux, 1990).
Se na Europa já existia, portanto, um caminho trilhado nessa direção, o
que haveria de conferir a Artaud o perfil de grande visionário do teatro no
século XX? Desejando vivenciar seus próprios símbolos e mitos, ele consegue em
1936 uma bolsa e vai pesquisar os índios tarahumaras no México, passa quase um
ano estudando antropologicamente o ritual do peyote, acreditando na cultura
indígena como resgate de uma percepção do mundo que o ocidente dera por
perdida. Também Malcom Lowry estaria em terras mexicanas por duas vezes e
escreveria Debaixo do Vulcão; o sonho de despir-se Artaud da
identidade de civilizado leva-o a alcançar um estado poético absoluto, onde
caem por terra as estruturas arcaicas da linguagem, onde a retórica é inútil e
a beatitude ultrapassa a reflexão.
Também a identidade acha-se roubada ao eu pelo outro e
Artaud guarda esse dilema, porque cada um carrega consigo o seu Lautréamont, o
seu Hölderlin, o seu Strindberg, o seu Nietzsche, e eles são irredutíveis, até
o fim da solidão (Joski). Daí a tentativa do teatro de Artaud de fixar a alteridade,
desde o etnográfico ao metafísico; do questionamento da superioridade da Europa
sobre os povos colonizados à crítica da superstição do texto em face da
explosão da vida: indagando onde radica a justificativa que um continente pode
ter para servir-se de outro, Artaud opõe a tirania dos colonizadores à profunda
harmonia dos colonizados e evoca Montezuma, rei dilacerado, o das paredes de
ouro cobiçadas pelos brancos invasores. Quando retorna à Europa, vai fazer uma
peregrinação nos locais sagrados da cultura celta, aquela que foi derrotada
historicamente pelos romanos; a partir daí é deportado para a França (setembro
de 1937), por se encontrar sem recursos e em estado de grande
exaltação.
Tem sido constante a consideração dos gênios como dementes, loucos ou
visionários. Veja-se Blake, Goya, Van Gogh, Rimbaud. Nietzsche foi oficializado
doente ao chorar em praça pública diante do chicoteamento de um cavalo.
Exige-se socialmente uma normalidade com características de controle e
objetividade. Mas a mente humana é passional, infantil, inocente. A crítica do
conceito de espetáculo de Artaud expulsa a arte do teatro como falsidade,
defendendo a união entre a poesia, a filosofia, o grito, a biografia em um
único ato: escrever é o mesmo que viver, desaparecendo a cisão entre vida e
obra. Lembra Claudio Willer que as suas propostas sobre teatro são hoje
práticas correntes: a criação coletiva, a improvisação em cena, o primado do
gestual e da expressão corporal, união palco e plateia, o happening,
a performance; as correntes de pensamento da chamada contracultura são
de alguma forma um legado de Artaud; também os estudos sobre a relação entre o
corpo e a consciência, bem como a devoção que lhe dedicou o grupo reunido em
torno da revista Tel Quel, tudo sinaliza para essa postura de
rebelião radical que se recusa a compactuar com a violência absurda da
civilização ocidental, e deu ensejo à geracão beat americana
(Ginsberg, Burroughs, Kerouac) bem como ao movimento hippie dos
anos sessenta, seguido por manifestações mais radicais como os punks,
pós-punks e diversos tipos de orientalismo ocidental cotidiano.
O seu exemplo atua como símbolo icônico de sua plataforma: ele vai viver
o que predica, é ator de seu próprio personagem. Para esses casos, a sociedade
não está nunca preparada: será trancafiado em clínicas até 25 de maio de 1946,
sempre escrevendo muito e na verdade a sua produção principal. A acreditar em
Foucault, segundo o qual onde há obra não há loucura, se tivesse
família a ela caberia propor uma ação de indenização por internamento. Mas
Artaud não tinha ninguém, só os seus amigos que ainda sem as prerrogativas do
sangue conseguiram tirá-lo do excessivo rigor de Rodez, já próximo de sua
despedida (4 de março de 1948). Diagnósticos: câncer no reto; envenenamento por
doses de heroína e morfina; suicídio. Desde os 24 anos tomava láudano para
aliviar suas dores de cabeça, tinha convulsões, havia estado em clínicas na
juventude. No período mais longo de internamento, já na maturidade, sofreu, como
terapia psiquiátrica, mais de cinquenta sessões de eletrochoque, cuja violência
denunciou com muita coragem.
Passei nove anos num asilo de alienados.
Fizeram-me ali uma medicina que nunca deixou de me revoltar.
Essa medicina chama-se eletrochoque
, consiste em meter o paciente num banho de
eletricidade
fulminá-lo
e pô-lo bem esfolado a nu
e expor-lhe o corpo tanto externo como interno
à passagem de uma corrente
que vem do lugar onde não se está
nem deveria estar
para lá estar.
O eletrochoque é uma corrente que eles arranjam sei lá como,
que deixa o corpo,
o corpo sonâmbulo interno,
estacionário
para ficar sob a alçada da lei
arbitrária do ser,
em estado de morte
por paragem do coração.
Durante o tempo em que passou internado, Artaud demonstrou estar em
plena posse de sua escrita. Denunciou as clínicas psiquiátricas como cárceres
onde os internos provém mão-de-obra gratuita, onde a brutalidade é norma. Assim
se dirigiu em sua "Carta aos Diretores de Manicômios":
As leis, os costumes lhes concedem o direito de medir o espírito. Esta
jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem com o seu entendimento. Não nos
façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos
governantes, reveste a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem está julgada por antecipação. …Todos
os atos individuais são antissociais. Os loucos são as vítimas individuais por
excelência da ditadura social. …. Sem insistir no caráter verdadeiramente
genial das manifestações de certos loucos, na medida de nossa aptidão para
apreciá-las, afirmamos a legitimidade absoluta de sua concepção de realidade.
Aos 110 anos de seu nascimento só a poesia pode ter voz ao grande mestre
estético e humano autor de um ensaio tão clarividente e profético como Van
Gogh, o suicidado pela sociedade:
Artaud
a Europa se esgotou
e tu vieste à América dos tarahumaras primitivos
dançando a força de seus rituais
até chegar ao estágio da visão.
Você queria entender o sol
participar do transe de secretas ordenações
como se tudo fosse uma espécie de lição
e agora alguma coisa te restitui
ao que existe do outro lado de ti
aprende Artaud
a reconhecer os sinais
os deuses nos contemplam dos rochedos
e eles nada pedem
só o físico sobrenatural
só a matéria de tua pele
em carne viva desde sempre
a refletir um sonho que se vai
agora conheces os que curam através do sonho
e sabes que um branco é apenas um homem
que os espíritos abandonaram
agora sabes das cruzes com os espelhos amarrados entre dois sóis
raiz hermafrodita
labareda
faz teu apelo às forças obscuras
Artaud
grande mestre curandeiro
o rito da aurora negra
na noite eterna do sol.
*****
Organização a cargo de
Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado:
Salvador Dalí
Agradecimentos a Hernán
Alejandro Isnardi
Imagens © Acervo Resto
do Mundo
Esta edição integra
o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista
de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano
Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No
biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o
título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano
Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação
editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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