● TRÊS OU QUATRO PEDRAS NA LUA
1. O silêncio não vai a parte alguma. Nem mesmo
tem como nos dizer isto. O silêncio costuma ser surdo. Quando a noite
progride ela inveja tudo o que permanece de pé. Um estafeta de Deus bate à nossa
porta para garantir que as falhas aos poucos são prescritas. Aguardamos em casa,
resignados até certo ponto, que o destino acaba mudando de opinião. O que me parece
esteja por trás de tudo isto é que o mundo em sua atuação banal, cotidiana, não
requer nossa paixão por sua dinâmica. Busquemos trabalho em outras comarcas. Esqueçamos
os princípios da retribuição. A jogada contemporânea estaciona nos lugares menos
esperados. O homem se deixou adotar por uma ideia de que seu espírito criativo se
alimenta dos reparos necessários a que se considere um bom servidor. Um truque fiduciário
hoje já impossível de ser removido. Cabeça para cima, cabeça para baixo, os lugares
ficam próximos ou distantes, a realidade se torna cúmplice ocasional ou uma reprimenda
por mau comportamento.
O contexto
em que a simples dúvida atue como sugestão de ajuste já não se entende sequer como
utopia. A ficção científica adotou taxas absurdas de um serviço sem concorrência
para locomoção e abrigo. A inação é perpétua e preenche a nossa vida carente de
preferências. O homem tornou-se o grande aparelho receptor de suas virtudes e agonias
intransferíveis. Clínicas do sono se tornam tão frequentes quanto os tratamentos
de regressão hipnótica. A política é uma caixa de discursos programados com suas
mutações dissuadidas de que a flexibilidade seja a trilha ideal a caminho da satisfação
da posse. O inferno é um serviço de controle de ambiente. Ninguém mais entra pela
porta da frente. Este deslize estético foi razão quase única do malogro da arte
contemporânea.
Como traduzir
as teorias de abandono com que depredaram a alma humana? Pensamos em grana, em ideologias,
em ilusões de toda toada. Teríamos que combater ao mesmo tempo a guerra e a futilidade,
a submissão e a conjuração. Que atenção prestar ao fracasso? O ramo familiar se
expande e consagra todas as formas de violência. O batismo levou por terra a ilusão
de inocência. Nossos esforços buscam costurar uma malha menos punitiva de nossos
pecados. Uma vez, indagada sobre o destino da humanidade, uma jovem antropóloga
respondeu: Nenhum de nós será vítima de sua
própria confissão. O sol pode exceder-se à vontade. O homem pode refazer em
seu íntimo inúmeros devaneios. De que modo permanece sua mais confiável evidência?
Querem mesmo
resposta para tudo? Quantas vezes a filosofia admitiu que o homem é somente semelhante
a ele mesmo? O que criamos não está acima ou abaixo de nós. O homem não tem como
livrar-se de si. Um dia acaba por compreender que em seu íntimo não existem senão
outros homens que ele cuida de preparar para o ato seguinte. A eternidade não negocia
com tarjetas morais. Indo e vindo, haverá um momento em que a humanidade não voltará
a parte alguma. Nada de lágrimas. Ou dominante consideração. O mundo é um erro despropositado.
Caminhemos pela rua. Não procuremos por mais nada. Isto há de durar uma eternidade.
2. Não estou
bem certo se nenhum de nós tem argumento suficiente para irmos à direita ou à esquerda.
Os próprios demarcadores ideológicos já foram de um extremo a outro e agora oscilam
de acordo com a conveniência. Tornou-se mais viável crer no acaso do que nos marcadores
da ideologia. Todos nós temos direito ao mais pleno erro. Erro de opção, uma fruta
colhida antes do tempo, uma desilusão amorosa antes de sua cartada magnética, um
país naufragando quando nem de longe sua população defendia que se começasse uma
guerra. O mundo cai de tudo quanto é queda, porque talvez o mundo melhor se entenda
caindo do que ascendendo a algo. A ascensão é uma ilusão humana. Até onde vamos;
do que nós somos capazes; de que marco nós jamais recuaremos. A vida é essa fragrância
de abismo. Quando divido teto com alguém não me oponho a compartilhar os riscos,
o que significa não me opor a programar um sentido comum de existência. A vida comunitária,
convertida em célula política, torna essa simples demarcação de terreno um pouco
mais complexa. Mas o sentido é o mesmo. Quando somos sobrepujados na base é apenas
uma jogada inicial da última cartada. Os mesmos mecanismos que aferem o erro são
astutamente azeitados para aferir o acerto. Quantos somos até que um de nós venha
a dizer quantos somos? E quantos somos mesmo assim? E de que servimos? Até onde
somos temidos por algum inimigo? O que podemos fazer claramente diante desse inimigo?
Alguém comece a me responder essas questões, antes de qualquer coisa. Antes de pegarmos
uma velha espingarda e começar a atirar no vento.
3. Sobre a morte
recente do compositor Belchior (1946-2017), superada a dor de sua ausência física,
preocupa-me em muito o aspecto de direção a ser dado a sua obra, sobretudo a obra
inédita. São inúmeras canções, letras, desenhos, pinturas, manuscritos, traduções,
além de seu acervo fascinante como colecionador de obras. Tudo isto ficará em mãos
de quem? E qual tratamento será dado a essa relíquia imensa? Aqui mesmo em uma edição
anterior da Agulha Revista de Cultura tivemos uma matéria acerca do caráter
por vezes criminal dos herdeiros de incontáveis artistas brasileiros. Nas últimas
semanas, envolvendo também a canção popular no Ceará, tivemos um pequeno ensaio
de insensibilidade, para dizer o mínimo, da parte da viúva do compositor Petrúcio
Maia (1947-1994), disparado contra Mona Gadelha, então autora de uma breve biografia
do compositor. O caso de Belchior avulta, pela variedade e quantidade do acervo
deixado, sem esquecer também o destino a ser dado a sua obra edita. Boa sugestão
me parece que um amigo mais próximo chame para si a responsabilidade de organizar
tudo isto e encontrar uma solução jurídica. Aqui nos dispomos a ajudar no que for
necessário em termos de fornecer pistas e discutir detalhes de algum plano de registro.
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Uma
das anomalias mais preocupantemente comuns nos dias atuais é a declaração que acompanha
– explícita ou não – cada gesto de que o mesmo está “fazendo a história”. A história
não segue um curso planejado. Ela é de tal forma inesperada que muitos historiadores
sentem dificuldade em prever o passado. Soa ridículo um ato, qualquer ato, não importa
seu teor ou alcance, vir acompanhado da declaração de que se trata de um ato histórico.
Por obviedade ou presunção. No Brasil eu observo o quanto que estamos todos desesperados
por fazer parte da história. É infinitamente triste quando uma sociedade chega a
este ponto de esfacelamento. Todos querem um pedaço da história, como se fosse a
calçada da fama. A declaração de um ministro do STF comunga em carne & credo
com a declaração de um compositor baiano. O primeiro comemora a soltura de um criminoso
já de todo incontestável, em contraste absoluto com a realidade carcerária brasileira.
O segundo mal espera o cadáver de outro compositor esfriar para mostrar-se superior
a todas as críticas que dele recebeu em vida. Evidente que estou a tratar de Gilmar
Mendes, José Dirceu, Caetano Veloso, Belchior. Todos estão fazendo a história. Como
todos nós. Porém dois deles, em particular, estão obcecados por terem algum significado
perante o juízo perene da história. Este é o aspecto que mais nos preocupa no momento:
o fato de que no Brasil, dentro em muito breve, não sobrará ninguém para afirmar
a dignidade da espécie humana.
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De um modo ou outro estamos teimando contra o Nada.
Os livros que seguimos fazendo, ARC Edições e Sol Negro Edições, são um sinal de
que somente os corpos queimados provam a existência do fogo. Agulha Revista de Cultura está agora fazendo
um inventário de seu acervo, do material que fomos recolhendo na expectativa de
que planos editoriais ainda pudessem ser cumpridos com um mínimo de obstáculo. Qualquer
editor com uma ou duas gotas de consciência sabe que hoje se tornou inviável nadar
até mesmo a favor da corrente. Ainda este ano será a inauguração do Centro de Estudos
Literários Latino-americanos Floriano Martins na Bahia. Paralelo a isto preparamos
uma série de edições virtuais especiais que certamente vão alimentar o desejo legítimo
de pesquisa de quantos se aproximem de nós. É nossa inversão de valores, porque
tudo isto está sendo disponibilizado sem ônus para o visitante. Apenas os títulos
impressos das duas casas editoriais ainda são comercializados. Em todo o resto o
acesso é gratuito. Como deveria ser a água.
Os editores
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ÍNDICE
ADÁN ECHEVERRÍA | Mirar desde Clarice Lispector
ALFONSO
PEÑA | Surrealismo en Centroamérica: un manojo de llaves mágicas…
DÉBORA
BUTRUCE, RICARDO H. RODRIGUES, SERGIO RESENDE E T.W. JONAS | Roberto Piva na Interzona
ESTER FRIDMAN | Todos os
nomes do bem e do mal
FLORIANO MARTINS | Leila
Ferraz e a delicadeza do abismo
JUAN ANTONIO
VASCO | Bicéfalo, de Juan Calzadilla
KATIA IANELLI | Lembranças
de Arcangelo Ianelli
MARÍA INÉS NOGUEIRAS | Ana Ribeiro y los personajes reales
de la historia
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/05/maria-ines-nogueiras-ana-ribeiro-y-los.html
MARIA LÚCIA DAL FARRA | A
mística em Agustina Bessa-Luís e Clarice Lispector
PAULA VALÉRIA ANDRADE | Plinio Marcos, um maldito
simplesmente genial
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/05/paula-valeria-andrade-plinio-marcos-um.html
Artista Convidado | Arcangelo Ianelli | JACOB
KLINTOWITZ | Arcangelo Ianelli, o silêncio das formas
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Página ilustrada
com obras de Arcangelo Ianelli (Brasil), artista convidado desta edição de ARC. Agradecimentos especiais a Kátia Ianelli, Mariana Ianelli e Valdir Rocha.
Obras de Arcangelo Ianelli que constam desta
página:
1. S/Título,
óleo sobre tela, 180x145cm, 1973, Coleção particular.
2. S/Título,
óleo sobre tela, 180x130cm, 1978, Coleção particular.
3. S/Título, escultura em mármore Espírito
Santo Exportação, 280cm, 2003, Acervo do Museu Brasileiro da Escultura (MUBE-SP).
4. Outono
silencioso, escultura em mármore Espírito Santo Exportação, 220cm, 2002, Acervo
da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
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Agulha Revista
de Cultura
Número
97 | Abril de 2017
editor geral
| FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente
| MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design
| FLORIANO MARTINS
revisão de textos
& difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados
não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não
se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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Linda edição! Só tenho a agradecer, querido Floriano Martins. Viva a arte e e cultura!! Viva Ianelli e vivas ao Plínio Marcos. Evoé [Paula Valéria Andrade]
ResponderExcluirConvido os amigos a lerem, debaterem e compartilharem este número da Revista Agulha. Há inclusive uma entrevista que Floriano Martins fez comigo. Ficou muito boa. Obrigada, Floriano por abrir um espaço onde eu posso colocar meu trabalho e minha maneira de pensar, de forma livre a aberta. ABRAXAS! [Leila Ferraz]
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