quarta-feira, 16 de agosto de 2017

LEILA FERRAZ | À luz do paradoxo


LF | Estamos em 2017, em poucos dias você completará 60 anos. Há quase meio século você convive com a literatura e com a poesia. Quando você olha para trás, me diga, qual foi a origem de seu primeiro motivo de satisfação?

FM | Evidente que não foi literário. A vida nos chama primeiramente a atenção pelo arrebatamento de alguma imagem. A vida nos chega com distinta intensidade de várias partes, dos inúmeros partos de nossa percepção, de lugares tão diferenciados que sua riqueza radica justamente em estar aberto aos sinais inesgotáveis de sua presença e ausência. O básico da boa escrita é o domínio da linguagem, não há dúvida. Porém só um tonto imagina que a força poética dependa exclusivamente desse domínio. Uma das razões de ser da criação exige justamente uma independência em relação à lógica. Não há uma sismografia decisiva na criação. Ela atua de algum modo, como uma surpresa: um teste para a nossa capacidade de absorvê-la. Eu lembro muito fragmentariamente a minha infância. Fui criado em duas casas. Pela mãe e pela avó materna. Eu posso recordar muitas felizes evidências – e até seria divertido aqui relatar algumas –, mas eu penso primordialmente naquele momento em que fui tomado por uma satisfação ao mesmo tempo prazerosa e crítica, que me descortinou algo na vida, e este momento não foi senão ali por volta dos 16 ou 17 anos, quando justamente em uma festa de meu aniversário, recebo de presente algo absolutamente inesperado em minha vida: o disco A música livre de Hermeto Pascoal. Aficionado até então do minério do rock, eu não sabia o que fazer com aquele disco. No dia seguinte, ao ouvi-lo, ele me deu a primeira bússola estética de minha vida: ao ouvir inúmeras vezes este disco eu fui buscar outro em minha prateleira, a ópera-rock 200 Motels, do Frank Zappa, e descobri que eram estranhamente similares. Creio que foi aí que comecei a me interessar pela construção de pontes.

LF | Você fala que "não há uma sismografia decisiva na criação". Nesse sentido, você mesmo alargou, insuflou e explodiu seus limites segundo que critérios de criação?

FM | A exuberância sempre foi um desafio e não um conflito. Sinceramente não sei a quem creditar minha inquietude sempre elástica. Nada que me dissessem me parecia o suficiente, eu tive uma dessas infâncias em que o mistério não me convencia nunca de seus estratégicos limites. A adolescência foi uma espécie de reiteração dessa caixa de pandora que todos temos dentro de nós. Turma de rua, turma de colégio, visitas frequentes de parentes, meu pai que me levava ao estádio de futebol, mas também ao cinema e aos palcos de luta livre… Eu nunca senti a pressão de ninguém na família tentando me conquistar, sobretudo no plano religioso, porque a parte materna era muito carola. Não sei por que cargas d’água eu fui poupado de alguma catequese. Naturalmente eu fui definindo meus limites, limites existenciais, antes mesmo do que critérios de criação. Eu fui muito arisco e essa volúpia me foi benéfica. Salvo por alguns acidentes alcoólicos, nunca me trouxe nenhum grave problema. A vida me dizia: vai lá, experimenta. Eu lhe atendia prontamente.

LF | Vejo em sua obra, tanto poética como plástica, uma abertura à possibilidade de se viver com tal intensidade uma emoção que, ao narrá-la, você nos remete, como leitores, a compreender os meandros da alma. A totalidade de seus signos e de suas fábulas. Mergulhar em um abismo de volúpia e imagens em que, para não nos perdermos, precisamos gritar em voz alta o nosso próprio nome. Como pode o poeta viver essa precipitação sem perder sua identidade?

FM | Eu não sei. Este é um aspecto que sempre me pareceu tão natural que jamais me levou a especular sobre sua ocorrência. Creio que somos vários. Dificilmente compreendemos a totalidade desses personagens em que nos dissolvemos. O nome é uma espécie curiosa de assinatura do que representamos. O nome nem sempre é o que somos. Com o tempo, fomos desprezando essa relação entre o nome e o homem. Um Altamiro pode ser tudo menos um guerreiro. Uma Valéria pode ser uma criatura sem saúde alguma. O nome perdeu sentido. O batismo tornou-se uma cerimônia sem significado, uma espécie de negação da essência ontológica. Hoje todos nós somos um ente qualquer. Creio que uma singularidade valiosa da criação é que devemos abrir as janelas e demais frestas, para que tanto entre como saia tudo o que tem que cumprir seu destino. Eu não tenho ferrolhos em minha alma. Mas naturalmente fui configurando um modo de expressar essa intensidade, o que destaca uma assinatura que se impõe, assim que toda essa precipitação de que falas, ao chegar, já sabe qual papel desempenhar. Creio eu.

LF | Como a sua fonte jorra sem fim e se completa ao mesmo tempo? Como você cria os paradoxos e nos maravilha com os resultados dessa busca incansável? Como você se molda ao mundo, sem se perder em ideologias?

FM | Talvez devamos procurar juntos, uma resposta para tudo isto. Mas não creio que eu me molde ao mundo. Disse em uma entrevista que dei ao Alfonso Peña que me sinto como um navegante do paradoxo. Por vezes esta é uma verdade desconfortável. Desenvolvi uma habilidade intensa, como um observador. Ironizo dizendo que em outra encarnação eu devo ter sido alfaiate. Não à toa o acaso deu à minha revista o nome Agulha. Não à toa escolhi como referência de trabalho a poesia, o surrealismo e a América Hispânica. Uma arte, um movimento, um lugar, onde é preciso uma dose imensa de perseverança para tocar seus mistérios e descobrir suas conexões mais invisíveis. Não sei se atendo ao que me indagas, mas diria ainda que possivelmente as implicações me seduzem mais do que as explicações.

LF | Ao contrário do que diziam os antigos poetas, que focavam a beleza e a verdade como as principais qualidades da obra literária, você acredita que no transcorrer de um século as obras de um artista podem mudar de gênero? A retórica do tempo afeta, de alguma forma, a imparcialidade do livro e do leitor? Além do valor estético, sentimentos, lembranças, nostalgias criam elementos capazes de mudar a interpretação de uma página? Estas questões foram trazidas por Adolfo Bioy Casares em seu livro A Outra Aventura e de alguma forma atingem a todos nós, poetas, quando nos envolvemos nessa viagem solo. Como você viaja por esse continente?

FM | Esta surrada discussão entre fundo e forma ainda hoje persiste, por mais óbvio que seja que a estética não reina isoladamente em um extremo ou outro da linguagem. Até deveríamos dispensar o ornamental e o desabafo. Seja na criação, seja na crítica. Evidente que há padrões de linguagem que demarcam o raio de ação dos gêneros, falemos de um poema, de um romance ou de um ensaio, por exemplo. No entanto, é plenamente possível, nos bastidores da criação ou da reflexão, buscar uma feliz convivência entre os gêneros. Quanto à imparcialidade, não estou seguro de sua existência. Ao tratarmos da sintonia do leitor, por exemplo, com determinada obra, inclusive a obra crítica, é natural que ele apreenda apenas aquela fatia que se insere em seus sentimentos e em sua visão de mundo. E é sadio que seja assim. As inúmeras perspectivas de interpretação igualmente se definem a partir desse caudal de afinidades. Se pela mudança de gênero queres abordar, não o plano alquímico, mas sim uma sucessão de usos da linguagem, é bem possível haver tais mudanças, embora não tão frequente. O século XX projetou um acento mais intenso nas relações entre criação e crítica, e viu surgir poetas que também escreviam estudos críticos, inclusive de natureza política, assim como escritores, em uma maneira geral, que cultivaram o exercício criativo em outras áreas. Não creio que haja uma regra, qualquer que seja ela, no tocante a esse desentranhamento afetivo que constitui a criação artística. Eu lido com tranquilidade com a utilização de várias linguagens: o poema, a prosa (poética, narrativa, ensaística, jornalística), a colagem, a fotografia, a tradução etc. E seguramente este exercício múltiplo enriquece o ambiente de cada gênero. Assim como enriquece igualmente a minha pessoa.

LF | Já que você considerou a mudança de gênero alquímica, muito nos interessa saber como você encara essa sucessão de estados anímicos.

FM | Mais do que sucessão, insisto, eu penso nessas mudanças de gêneros como uma arquitetura múltipla que, ao final, tem por finalidade substantiva a definição do ser criador. Já no tocante aos estados anímicos, olha, tenho a impressão que se aqui tratássemos de uma obra narrativa ou dramatúrgica, não haveria tal indagação. Em grande parte pelo entendimento do espírito lírico que mais genericamente define o poema. No entanto, a presença, em minha poesia, de personagens, cenários, argumentos, exige este exercício de despersonalização, para melhor expressar a sutileza de um discurso que não se interessa por convencer seu leitor, mas antes por lhe despertar novas perspectivas de concordância ou discordância. Também o criador, mesmo no caso de um poeta essencialmente lírico, vivencia suas oscilações anímicas na medida em que a vida de alguém não se constrói em um plano linear.

LF | Em A Vida Inesperada, você fala em sentir-se vivo. Em revelar a si mesmo, segundo suas palavras: “o que é possível encontrar em seu íntimo”. Reúne neste livro diferentes épocas de sua vida e eu pergunto: como você se multiplica em vários personagens e como retorna ao Floriano para novos recomeços? O que muda entre você e outro?

FM | O que pretendi ao montar o livro A vida inesperada está mais além do que a simples recolha de uma obra completa. A começar pelo fato de que ali se trata essencialmente de obra incompleta. Para mim, era o momento de definição de uma poética, de recolher os escritos, éditos e inéditos, sondar até que ponto eles resistiam ao tempo e ao meu entendimento poético, e, a partir desse mapeamento, buscar os fios mais invisíveis de modo a alcançar uma nova unidade, uma aventura alquímica. Deste modo foi preciso recorrer a vários truques, tais como fusão de poemas, cortes de versos, ajustes de imagens, desmonte do corpo integral dos vários livros já publicados etc. Desenhei uma nova estrutura, sem ferir o plano cronológico do volume, criando uma série de capítulos de uma espécie invulgar de poema único. O desafio radicava, não apenas no componente estético, mas na definição de um tempo singular onde eu posso ser simultaneamente os inúmeros Florianos com quem convivo ao longo de minha vida. Mais do que propriamente uma mudança entre eles, o que verifico é um estímulo perene à leitura jamais conclusiva do que se é e do que se pode ser. Mesmíssimo caso se passa com o amor, a relação amorosa que dá uns traços no tempo é justamente aquela que é um sistema de afinação perene das naturezas distintas entre si de uma parelha. Meus quarenta anos casados com a Socorro é uma grande confirmação do que digo.

LF | Faço-lhe esta pergunta, porque em algumas ocasiões, você “pariu” poemas a quatro mãos. Ou seja, com outros poetas. Em algum momento, as afinidades foram tantas e tão intensas que acreditamos ler o poema de uma só pessoa. Digo-lhe isto por ter sido uma de suas parceiras nesses poemas, mesmo estando a mais de 3.000 quilômetros de distância. E jamais termos nos encontrado pessoalmente. Como você definiria tal afinidade poética?

FM | Aqui estamos em um plano bem próximo, porém distinto. O que se exercita na criação conjunta é uma alteridade que não se entrega propriamente ao modo de escrever do outro, mas sim que ousa a afinação de dois modos (o meu e o do parceiro), ciente de que só é possível alcançá-la através da mais pura magia. Uma magia da identificação de dois mundos, do reconhecimento do outro como parte nossa. Talvez possa parecer estranho que este exercício se dê à distância, sendo aparentemente mais fácil desenvolvê-lo no ambiente de uma proximidade física. Devo confessar que, no meu caso, apenas uma única vez escrevi algo lado a lado com o parceiro, porém não resultou nada a ser considerado. Não pelo método, certamente, mas sim pela falta dessa afinidade mágica. Já escrevi livros inteiros, sejam poemas, seja peça de teatro, a quatro mãos e à distância. Mais ainda, sem sequer conhecer pessoalmente o outro. Creio que o mexicano Manuel Iris – juntos criamos o livro Overnight medley – é o único caso em que eu conheci o parceiro antes da aventura criativa comum. Os demais – Viviane de Santana Paulo, Leila Ferraz, Zuca Sardan – são todos queridos amigos no plano virtual. E houve um caso ainda mais incomum: um ensaio, sobre o pintor Antonio Bandeira, que escrevi a quatro mãos com o crítico Jacob Klintowitz. Sabes que há pelo menos dois tipos de criadores, aquele que sente o domínio de sua obra e aquele que crê que, em essência, permite que a obra crie a si mesma. Pensar assim, de um modo ou de outro, é cair em um ardil, da consciência ou do desprendimento, ou seja, uma armadilha do ego. Encontrei um parceiro para criar conjuntamente de modo bem espontâneo, porém algo em meu íntimo sentia o desconforto do estado pesado de solidão que é a vida do escritor. Escreve sozinho, alguém o publica e jamais sabe que sensação desperta em seus leitores. Por isto foi me cativando, pouco a pouco, este mundo aberto em que posso criar com outro poeta, em que aprendo o ofício de design e edição de livros e revistas, e em que posso ler a público meus poemas. Tudo isto me dá a sensação legítima de que melhor participo do mundo.

LF | Eu gostaria de saber sobre a fonte interior que o faz movimentar, essa força enorme, inteligente e sensível que o move? Como você trabalha esse movimento na maravilhosa obra plástica que produz? Como a fotografia revela seu mundo interior em colagens ou sobreposições inauditas, imagens sempre novas, surpreendentes e marcantes, sobressaindo-se dentre o trabalho de outros artistas que a utilizam.

FM | Na infância eu lia muitos gibis de super-heróis e gostava de recortar as figuras e brincar com elas, fantasiando sua animação. Isto me foi muito benéfico tanto como adubo da imaginação quanto também pela utilização de pequenas tesouras. Meus olhos iam aos poucos se enchendo de minúcias. Antes mesmo de começar a fazer colagens passei por uma breve fase de utilizar recortes dos quadrinhos como elementos de composição do poema. Desta época cheguei a publicar um libreto intitulado As contradições terríveis (1987). Quando chegou o momento das colagens eu tinha já uma boa experiência com as tesouras e pude então lidar com a criação de minúsculas peças, recortando detalhes de inúmeras obras plásticas, em especial aqueles pintores flamengos barrocos belgas e holandeses, tais como Jacob Jordaens e Pieter Aertsen, cujas naturezas-mortas me enfeitiçavam. Eu próprio me imaginava personagem saído das páginas de algum livro, o que me levou a criar colagens como se fossem planos labirínticos que tinham por base livros, janelas e instrumentos musicais. Intuitivamente eu estava compondo naturezas-mortas. A fonte interior é uma conjugação de todos os tempos em um momento mágico.

LF | Vejo que as imagens – poéticas e plásticas – se complementam em intensidade. Sinto também que você não se prende a Ismos. Trabalha livremente, como um visionário da vanguarda artística. Como o Surrealismo surgiu em sua vida? E como esse movimento influiu em sua obra? Quais os surrealistas que mais atraíram seu olhar de artista plástico e poeta?

FM | Acrescentaria as imagens sonoras, porque a música sempre foi um fertilíssimo estuário de metamorfoses. Não encontro distinção de influências entre o que eu via, ouvia e lia. A rigor, creio que o olfato era o menos intenso de meus seis sentidos. Creio que foi o Rubén Darío quem disse que conhecer diversas línguas é a melhor maneira de evitar a tirania de uma delas. A minha intuição, aliada a meus guias, me levaram sempre por esse caminho do múltiplo. Já a vanguarda, o instinto por buscar novas formas de expressão foi convertido em mera obsessão por uma novidade de pouca extensão no tempo, o que acabou tornando o criador, em nossa época, uma marionete vulgar nas mãos de um mercado voraz. Quando surge o Surrealismo em minha vida já não havia modo de aceitar qualquer ortodoxia. Além do que eu já vinha de boa convivência com Da Vinci, Brueghel e Bosch; Milton, Shakespeare e Drummond de Andrade; Hermeto Pascoal, Frank Zappa e Agostinho dos Santos… O que faz o Surrealismo é me dar maior firmeza no ambiente vário e acidentado que eu já vinha trilhando. Do ponto de vista estético o movimento rejeitava toda forma de ortodoxia, o que refletia uma de suas contradições. Na plástica o primeiro surrealista que me atraiu foi Lorca, seguido de Dalí e daqueles fascinantes tableaux vivants de Yves Tanguy, bem como Hans Belmer e Kati Horna, cuja “Ode à necrofilia” me levou a descobrir que o mundo fotográfico poderia ter uma dimensão mágica muito maior, e novamente os tableaux vivants de fotógrafos como Jan Saudek e Sára Saudková. Como vês, a casa sempre se abria toda, com suas portas e janelas, telhas fora de lugar e gretas no assoalho. O Lorca surrealista não vem do poema e sim de seus desenhos, refinado exemplo de criação automática, assim como de uma parte de seu teatro, principalmente Assim que passarem cinco anos e O público – peças dos primeiros anos 1930.

LF | Algo que me impressiona – e deve impressionar seus leitores – é o seu trabalho de editor? Gostaria de saber como você se situa nesse universo? Como fio condutor do pensamento contemporâneo? Você também trilha o caminho das traduções – e o faz de forma brilhante, principalmente em espanhol. Acredito que teu trabalho de grande difusor da cultura hispano-americana é apenas a ponta de um iceberg.

FM | Começaria por acrescentar o trabalho de pesquisador e ensaísta. São fios de uma mesma tapeçaria e os vejo em perfeita harmonia com o trabalho de criação. O primeiro marco como editor vem de 1988, com a criação de um jornal chamado Resto do mundo. Em dois anos saíram apenas quatro edições, em tiragem que imagino tenha sido de 1.000 exemplares. Desde o princípio a ideia era dar passagem ao mundo desconhecido da criação artística, aí incluindo entrevistas e o pensamento crítico a seu respeito. Não havia, portanto, distinção, em essência, do que faço até hoje com a Agulha Revista de Cultura. Este é também o paradigma utilizado na tradução, exceto quando a realizei sob o prisma contratual, ocasião em que traduzi autores já bem conhecidos do leitor brasileiro, ao menos é o que suponho, como Garcia Lorca e Cabrera Infante. A um idêntico paradigma recorri no caso da pesquisa e do ensaio. Este espectro diversificado nos leva a uma triste paisagem: em grande parte por danosa condução do mercado, no Brasil apenas uma coisa excede a avalanche de autores e obras desconhecidas, que é justamente a persistência da rejeição a conhecê-los. A opção inicial por me concentrar na América Hispânica é porque sempre julguei abusiva a nossa relutância – uma forma muito deprimente de presunção – em aceitar o convívio em esfera continental com nada menos do que 19 países de língua espanhola. Vem daí a publicação de um extenso volume de estudos sobre poesia e surrealismo na América: Um novo continente, assim como as traduções de livros de Aldo Pellegrini, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Vicente Huidobro, Pablo Antonio Cuadra… O único lado positivo que vejo nessa nossa aculturação é que sempre terei uma vultosa agenda de trabalhos na mesa.

LF | Overnight Medley é um livro de arte, com seus manuscritos, sua intrínseca relação com o jazz e a presença singular da alteridade, considerando que o livro é um projeto a quatro mãos que você realizou com um poeta mexicano residente nos Estados Unidos.

FM | Aqui está uma fagulha valiosa de minha vida. De algum modo tudo começou a partir de minhas pesquisas sobre as vanguardas hispano-americanas, então descobri uma das figuras máximas na insistência de permanência histórica do Nadaísmo na Colômbia, o poeta e ensaísta Armando Romero. Graças a ele eu fui ministrar um curso para mestrandos na Universidade de Cincinnati, nos Estados Unidos. Logo na recepção no aeroporto Romero me apresentou um jovem poeta mexicano, Manuel Iris, que seria um de meus alunos, mas também a pessoa indicada pela Universidade para cuidar de mim. No primeiro abraço e na conversa delongada a caminho da hospedaria, algo nos antevia uma amizade. Ali ficamos, minha mulher e eu, por três meses, durante os quais Armando Romero foi uma firme confirmação de amizade e Manuel Iris um guia pelo organismo subterrâneo da universidade e da cidade. Um dia ele me mostrou uns poemas que estava criando como leituras críticas de dois mestres do jazz estadunidense. Lembro que o estimulei a seguir viagem e quando regressei ao Brasil indaguei de seu interesse por elegermos uma dezena de nomes ligados ao jazz e escrevermos um poema dedicado a cada um deles. O traçado seguinte é que poderíamos eleger não mais um compositor, mas sim uma de suas músicas mais tocantes, para nós, e então criaríamos um poema a quatro mãos dedicado a 10 peças musicais. Aquela foi a decisão de extração de um minério feliz. Recordo que logo viajei para a Austrália, então o livro abria suas páginas para mais um pomar de riscos salutares: em poucas semanas um mexicano nos Estados Unidos fechava as páginas de um livro escrito a duas mãos com um brasileiro então ancorado na Austrália. Esta experiência foi muito interessante. Quando fomos escolher cada um os 10 compositores de nossas afinidades, Manuel aportou com uma dezena de nomes ligados a um jazz clássico, tais como Duque Ellington, Charles Mingus, Charlie Parker… Enquanto eu punha no tablado um jazz rompedor de gêneros: Astor Piazzolla, Hermeto Pascoal, Frank Zappa… Ao final reunimos os manuscritos originais dos poemas, batemos um papo, os dois poetas, a título de making of, convidamos dois tradutores amigos, para que o livro fosse publicado em português, espanhol e inglês, e, pedimos ao Jovino Santos Neto, bastante conhecido por integrar desde cedo o grupo do Hermeto Pascoal, para escrever um pequeno texto para contracapa. De algum modo este livro é também um disco.

LF | O que você poderia nos contar do estreito e articulado relacionamento intelectual com Zuca Sardan.

FM | Ah o meu grande mestre do absurdo saudável! Quando comecei a pesquisar sobre a lírica hispânica, e me aproximei de suas grandes vozes, de muitos ficando amigo, a minha mulher tratava a minha mesa como um asilo de velhinhos (risos). Ao longo dos anos convivi com a morte de muitos deles, aqueles que eu conheci pessoalmente e os que me foram importantes embora apenas vivenciando uma amizade postal e digital. No caso brasileiro também com o tempo fui descobrindo vozes fundamentais que eram bem mais velhas do que eu e com um reconhecimento aquém do brilhantismo de suas obras. Assim é que fui me aproximando de muitas instâncias quase fantasmais. Zuca Sardan era para mim o nome mais relevante daquela antologia hoje clássica organizada pela Heloísa Buarque de Holanda. Havia ali um time de poetas rompedores de cerca dos quais me tornei amigo: Leila Míccolis, Afonso Henriques Neto, Roberto Piva. Alguns outros até hoje não entendi o que faziam naquele cercado. Bom, fui lendo e relendo Zuca Sardan por algum tempo, tinha notícias de que vivia na Alemanha etc. Um dia criei coragem e lhe escrevi. Acho que nos tornamos amigos no instante em que ele abriu a carta. É algo impressionante, não apenas considerando as duas décadas de farta aventura existencial que nos separa, como também as nossas experiências de vida, a Europa para ele, a América Hispânica para mim. Não recordo o start, de um momento para outro eu o estava entrevistando e logo começamos a criar a quatro mãos. Já publicamos uma trilogia de peças de teatro, intitulada O iluminismo é uma baleia. Depois fizemos uma aventura dramatúrgica mais ousada, que batizamos de Teatro Automático, com publicação prevista ainda para este 2017, pelo selo Sol Negro Edições. Escrevemos ainda um livro mágico, alheio a qualquer gênero, onde mesclamos relatos, desenhos, colagens etc. Todas as minhas experiências de uma criação compartilhada são excedidas pela relação com Zuca Sardan. Agora mesmo eu estou escrevendo um livro sozinho, mas a sua presença já está tão entranhada em mim que vou lhe mostrando cada novo capítulo e ele me faz valiosas sugestões. Ainda ontem me disse: "Tua mente de vasos-comunicanos surrealista é tão intensa, que basta você narrar: as meditações já vêm (inconscientemente) juntas".

LF | Eu ia dizer que em O Iluminismo é uma baleia já observamos a criatividade deste livro a começar pelos agradecimentos. É de um humor outstanding, como diriam os adeptos do humor negro inglês.

FM | O iluminismo é uma baleia possui (ou por ela é possuído) toda uma intensa singularidade baseada no humor, no mais amplo sentido, aquele princípio maior defendido por Marcel Schwob de que “rir é deixar-se surpreender por uma negligência das leis”. Este arquivo de negligências é o que descarnamos impiedosamente em todo o livro, seja na capa, no texto, nas imagens internas e, como bem recordas, na página inicial de agradecimentos aos patrocinadores.

LF | Sim. As ilustrações são de uma riqueza imensa. Ao mesmo tempo em que nos remontam àquelas do início do século XX – como as de A Vida Moderna e as da coleção de obras de Jules Verne (edição portuguesa), ao trazê-las à luz vocês lhes dão um cunho de universalidade fantástico! Em 1912, por exemplo, os ilustradores trabalhavam como videntes. Pareciam antever as incríveis mudanças pelas quais a humanidade passaria nos próximos anos. O livro O iluminismo é uma baleia possui esse caráter crítico da sociedade atual? É visionário? Ou suas falas prenunciam certa inocência? Uma nostalgia sobre uma época em que o conhecimento ainda não se deixava poluir por excesso de informações desarticuladas?

FM | A rigor é um truque de negação do tempo, que certamente deixaria Einstein muito feliz. Como lemos em uma de suas orelhas, um enigma recortado com todas as lâminas do humor: “– Pode sair. / – Sim, e pode entrar. / Muito bem, quem sabe ainda nos vemos. / – Que não seja lá dentro. / – Muito menos lá fora.” Fazemos uma troça entre passado e futuro, o livro é visionário na proporção em que ilude o leitor com certo ar nostálgico. Escolhemos três enredos que aguçam tanto a memória quanto a imaginação. O livro é uma irrequieta trilogia teatral, aquele teatro mambembe, levado de cidade em cidade por uma carroça mágica. Como a carroça hoje esquecida do Garcia Lorca. Nossa trama gira em torno da reinauguração de um circo de bairro, a viagem impossível de um trem que sai de Fortaleza a caminho da China, e os esforços para impedir a demolição de uma célebre casa de cinema no Rio de Janeiro. Ao final ainda incluímos um making of, os bastidores de nossa caravana. A trilogia traz o passado e o futuro para o picadeiro do cotidiano lembrando que quanto mais o presente procura ser distinto ele apenas se repete e repete, incansavelmente. Como alguém que tenta ser artista, quando na verdade deveria apenas viver.

LF | Gostaria também que você falasse mais sobre o vasto universo que abriu para as artes e literatura brasileiras, através de anos na militância como editor, responsável pela organização e realização de mostras internacionais. E mais: sobre as palestras/temas que proferiu na América Latina e Europa.

FM | Acho um desdobramento natural, ou seja, na medida em que um artista brasileiro é convidado para um palco qualquer em outro país, é o momento ideal para que apresente sua arte, mas que bem reaja à oportunidade de divulgar as obras de outros brasileiros. Há um momento em particular que soma fortuna e infortúnio. A Feira de Livros do Zócalo, na capital mexicana, tinha então um perfil bem atrativo e solidário, que destinava cada edição ao convívio cultural entre uma cidade mexicana e uma cidade do país convidado a cada ano. No ano em que a cidade mexicana era Guadalajara, outro ponto mágico no mapa cultural mexicano, sobretudo pela realização de uma das mais importantes Feiras Internacionais do Livro, neste mesmo ano, graças a um extenso plano de cumplicidades culturais com o então curador da Feira, o poeta e editor José Ángel Leyva, a outra cidade foi Fortaleza, onde nasci. Ángel Leyva e o adido cultural do México vieram a Fortaleza, eu os levei para uma conversa com o prefeito e sua secretária de cultura. Recordo que à saída a primeira observação que fizeram os dois mexicanos era um espanto diante do fato de que o prefeito baixava ao chão seu olhar sempre que falava comigo. Todo lugar tem suas idiossincrasias e eu conhecia bem as da minha cidade. Resultado é que, apesar do extenso prazo dado para um bom cuidado da representação brasileira no México, os mexicanos tiveram ali uma imensa decepção, pelo amiudado inexpressivo do que para lá enviou o prefeito de Fortaleza. Considere aqui um detalhe quando menos risível: passagem e hospedagem minhas foram dadas pelo governo mexicano. Na época eu havia organizado uma edição especial de uma das mais destacadas revistas mexicanas, número dedicado à poesia brasileira, para o qual convidei o artista plástico cearense Hélio Rola que cedeu obras para capa e páginas inúmeras de ilustração da edição. Mas veja bem, o dilema se repetia em várias instâncias. O poeta Marco Lucchesi durante certo momento dirigiu brilhantemente a revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional. Pude com ele colaborar, destacando aqui uma seção com mais de 100 páginas que me cedeu para divulgar a tradição lírica peruana. Apesar do fracasso de representação na Feira do Zócalo, o Brasil foi convidado para a Feira de Guadalajara, oportunidade em que Lucchesi preparou uma bela edição da revista Poesia Sempre dedicada ao México. Por problemas protocolares na alfândega daquele país, aliados à inoperância do governo brasileiro que, naquele momento, optou por salvar os tambores do Carlinhos Brown, que enfrentava o mesmo impedimento burocrático, deixou de fora da mostra o lançamento da revista brasileira. O Estado ainda reluta em distinguir o grau de importância para nossa cultura: Carlinhos Brown e Poesia Sempre. Lucchesi, quando esteve à frente da revista, nos deu uma precisa e sofisticada lição de cosmopolitismo. O destino não tem culpa de nada. As escolhas é que sempre imperam.

LF | Todos nós, criadores, em um dado momento, já enfrentamos a muralha de eufemismos que segue erguendo o Estado, sempre que buscamos dar segmento internacional às nossas obras. Gostaria que você falasse de outras instâncias de frustração sua em relação ao Estado.

FM | Gosto do termo ignorantaço, utilizado por Zuca Sardan. Mas também acho de uma delicadeza fascinante a tua muralha de eufemismos. Cuidando de não tornar exaustivo o tema para o leitor, eu gostaria de recordar dois momentos: os efeitos da publicação de meu livro Escritura Conquistada pela Fundação Biblioteca Nacional e a curadoria da Bienal Internacional do Livro do Ceará. Temos aí uma cronologia que vai de 1998 a 2010. Escritura Conquistada teve uma primeira edição demarcada pelos limites de uma bolsa fornecida para FBN. Ali concentrei um número de 24 poetas por mim entrevistados na América Ibérica. Em 2005 recebi uma homenagem do governo venezuelano pela publicação do livro, uma noitada na Embaixada da Venezuela, em Brasília, que culminou com a leitura de alguns poetas entrevistados por poetas brasileiros. Com isto se deu uma aproximação maior com a cultura daquele país. Livros meus, como La noche impresa en tu piel (2006), Teatro imposible (2007), Un nuevo continente – Antología del surrealismo en la poesía de nuestra América (2008) foram ali publicados e, em seguida, fui convidado pela direção da Fundação Biblioteca Ayacucho para organizar e prefaciar a primeira antologia bilíngue, de sua respeitada coleção, dedicada ao brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Em uma de minhas idas a Brasília, em conversas com o Embaixador daquele país, ele me informou da existência de um navio diplomático venezuelano que costuma vir ao Brasil, entrando pelo porto de Recife. Declarou intenção de vir ao porto de Fortaleza, desde que eu organizasse um encontro com nosso governo de Estado. O navio aportou em Fortaleza, estava previsto jantar seguido de baile dançante, com apresentação de danças típicas venezuelanas. Todo o corpo oficial do governo havia sido convidado. Chegou primeiro o vice-governador, um historiador que não sabia uma palavra em espanhol. O atraso dos demais convidados beirava o inaceitável, quando então sobe ao navio o secretário de cultura, um comunista que fazia parte da memória política local, defensor do bolivarianismo – o que quer que isto signifique – justamente quem me convidou para ser curador da Bienal, e surpreende a todos (em mim, sobretudo) por desconhecer o espanhol. Atende ao celular inúmeras vezes e logo engendra seu plano de fuga e desaparece. Eu e minha esposa – já não recordo quantas vezes – nos desculpamos com o adido cultural e o capitão do navio. Logo depois era a vez da realização da Bienal Internacional do Livro do Ceará. Fui convidado a expor ante o conselho geral do Ministério da Cultura venezuelano o plano da Bienal. Foi uma tarde memorável, em Caracas, em que discutimos qual seria a melhor participação venezuelana no evento brasileiro, e inclusive tratamos do apoio financeiro que aquele país poderia dar à presença cubana. Saímos da reunião com praticamente tudo resolvido, porém houve senões burocráticos que não impediram de todo a presença dos dois países na Bienal porque pude buscar outras fontes de apoio. Se pensarmos somente na Venezuela eu ainda teria muito a relatar em termos de infortúnios. Tenho uma caderneta de exemplos equivalentes relativos a quase todos os países hispano-americanos. A miséria intelectual do Estado brasileiro – que hoje domina de norte a sul as páginas do jornalismo criminal – me fez desistir de compactuar com sua agenda superficial.

LF | Impossível não dar uma boa risada com a imagem que você nos deu de Lula! O que me encoraja a lhe fazer uma pergunta capciosa, principalmente aqui no Brasil. Digo isso, porque quando estive em Paris em 1968 pude vivenciar uma revolta política e suas consequências dentro do movimento surrealista francês. Ficou muito clara, durante aquela primavera a questão vastamente discutida pelos surrealistas, sobre a tomada de partido: arte pela arte ou arte engajada? Nesse momento houve uma cisão no movimento surrealista francês. Minha pergunta, portanto, é como se comportam os artistas perante as questões políticas de nosso país.

FM | Não temos – jamais tivemos – uma consciência do papel que um artista pode representar no ambiente político. A consecução de qualquer plano – criativo, científico, religioso – sempre foi percebida no Brasil como uma oportunidade de destacar o gênio e não de avultar o teor de sua descoberta. Eu não perderia meu tempo me referindo ao Lula. Ele apenas copia, de modo exacerbado, os nossos dilemas mais perenes. É impossível relacioná-lo ao perfil do intelectual brasileiro, exceto pelo aspecto em que os dois se ausentam da realidade para atuar em um mundo idealizado pelo próprio umbigo. O ambiente político em nosso país soa como uma caixa de momentos esplêndidos da qual participam não os que defendem uma utópica justiça social, mas antes os que azeitam a máquina no sentido de uma exposição de méritos inquestionáveis.

LF | Sei ainda que você tem em mira a Austrália. Quero que nos conte a respeito.

FM | É uma história bem curiosa. Certamente eu jamais teria conhecido a Austrália não fosse pelo fato de minha filha mais velha ter casado com um australiano e ir com ele morar em Sidney, onde já está há mais de uma década, com seus dois filhos. Tenho ido ali diversas vezes e sempre em períodos dilatados de dois meses. Posso assim descortinar uma Sidney até então minha completa desconhecida. Pude também ter contato, em seus museus, com muita arte asiática e europeia que não chega ao Brasil. Sem falar no doutorado em civilidade que ali se aprende. A paisagem cosmopolita de Sidney parece fílmica. Nela descobri o intenso esforço de um de seus poetas, Max Harris, por tornar o país um dos polos criativos centrais do Surrealismo. Ao mesmo tempo conheci a obra máxima de James Gleeson, um dos grandes artistas plásticos do Surrealismo. Ambos estiveram juntos em um agrupamento de criadores, orientados por Max Harris e a revista que ele havia criado: Angry Penguins, movimento que falhou graças ao convencionalismo da sociedade australiana da época. Tenho observado que Max Harris foi banido do cânone literário de seu país, e que James Gleeson, embora encontremos algumas de suas obras em museus, após a sua morte, os livros e catálogos editados em vida foram ausentados de circulação. Atualmente incluo essa dupla, e o desdobramento de suas iniciativas, em minhas pesquisas.

LF | O que você tem a nos dizer sobre a ARC Edições?

FM | ARC Edições surgiu há algum tempo, como uma coleção de livros virtuais, de circulação gratuita. Logo eu resolvi arriscar pequenas tiragens de livros impressos. Desde então fizemos 12 livros, a maior parte meus (sozinho ou em parceria com Valdir Rocha, Manuel Iris, Viviane de Santana Paulo e Zuca Sardan), além da poesia completa de Sérgio Campos – notável poeta brasileiro que morreu jovem e ficou completamente esquecido – e uma edição crítica com poemas, desenhos e cartas do surrealista português Cruzeiro Seixas. Paralelo ao surgimento da ARC Edições, tivemos também a Sol Negro Edições, em Natal, dirigida pelo Márcio Simões, coeditor comigo da Agulha Revista de Cultura, cúmplice inesgotável. Eu e ele assinamos o projeto gráfico de todos os livros de meu selo. Estas parcerias são a fonte mais valiosa de minha resistência, e se verificam também na Agulha Revista de Cultura, assim como nas canções e na aventura plástica. Neste ambiente de quase coprodução, há três pessoas às quais sou imensamente grato: Leontino Filho, Valdir Rocha e naturalmente Márcio Simões. Na revista e na editora temos alcançado um estágio raro na relação com os direitos autorais, todos eles cedidos pelos colaboradores ou por seus herdeiros.
[Pausa para um vinho imaginário]
O homem foi, ao longo do tempo, catalogando na vala de certa desconsideração, aspectos fundamentais da constituição de seu caráter: o sonho, a imaginação, o desejo. E mesmo a memória foi sendo enfiada em um balaio de melancolia. Também foram expurgadas as crendices, como sinal de que o moderno era a casa de uma consciência bem polida. Está tão descartado crer que beber o sangue do cordão umbilical desenvolva mais a memória da infância quanto evocar espíritos-guia para a grande travessia da existência. Quando menos lembrarmos e mais desolados nos sentirmos, melhor a calúnia aduba a morfologia de seus truques. Foi pensando nisto que surgiu a nossa boa conversa sobre a urgência de recuperarmos a credibilidade da palavra dada à imprensa. Manter um tom de jornalismo responsável, ascético, sempre sério, à volta com temas escabrosos, mortes, assassinatos, desastres, quedas de gabinetes, naufrágios, esplêndidas vedetes, belas letras, artes plásticas, filosofia, anúncios, fotos catárticas etc. Isto sem esquecermos jamais que a cola bem feita é privilégio dos grandes mestres.

LF | O que acho maravilhoso é que em certo momento desta entrevista, simplesmente podemos trocar os papéis. Você responde primeiro a uma pergunta que faço depois! Essas reflexões, por exemplo, merecem uma pergunta. Elas tocam exatamente naquele ponto quase intangível que existe no limite entre a luz e a sombra. Ou entre o espelho e o reflexo nele contido. Neste momento da entrevista, passamos para outro plano. O mesmo plano que transitamos quando em transe somos parceiros em um mesmo e único poema. Por onde andamos? O que nos une? Quanto tempo nós ignoramos? O que acontece nesse estado onírico em que você e seu parceiro ou sua parceira se movimentam?

FM | Não há melhor diapasão, para o amor, o sexo, a criação, a amizade, do que o sentido de entrega ao outro. Se há algo que não podemos temer é o erro que eventualmente decorre da entrega. A frustração também é parte da receita para uma vida intensa. O tempo não faz nenhum sentido nessa equação mágica repleta de incógnitas. Não cabe sequer ignorá-lo, ele sequer existe. Não é em função do tempo ou do espaço que nos movimentamos. A obra a quatro mãos é como a dança, em que os parceiros se deixam conduzir, não um pelo outro, mas sim pela própria dança.

LF | Em seus poemas você trata o feminino como uma realidade em ação. Algo que transborda em si mesmo e se completa em imagens. Você concorda?

FM | Antes de tudo trata-se de um símbolo fortíssimo. Ao emprestar voz a personagens femininos, evidente que haverá uma maior tensão no discurso, pois ela haverá de tratar, de distintos ângulos, de um tema revelador: a ocultação do ser. Além disto, é um símbolo completo, de integração dos dois sexos, que se presta com mais amplitude aos desígnios da criação. Mais do que o feminino como gênero eu diria que a presença majoritária de personagens femininos em meus poemas alude à conjunção de fertilidade e fecundidade. Há em todo o cenário de minha criação uma busca das fontes construtivas e reconciliatórias das divergências, e não um rito destrutivo. O erotismo transbordante das imagens não é senão a celebração de um mundo em que a imaginação reine absoluta.


LF | Você revela um erotismo masculino raríssimo de encontrarmos, na maioria das vezes. A sensação que suas colagens e poemas me passam é a de que tem a rara capacidade de transcender a questão dos gêneros e transita pelo mundo mágico dos andróginos primordiais.

FM | Verdade mais cristalina impossível. Porém desconfio que este é um daqueles caminhos que quando buscado resulta em mero artificialismo. Desde cedo me fascinaram, nas relações entre erotismo e feitiçaria, as inversões, em um primeiro plano, até o alcance da fusão, de gêneros. Para compreender o mundo era preciso meter-se na pele de todos os seus ritos, evocar êxtases e sacrifícios e então despir-se de tudo. Daí me veio a atração pelo três, com sua síntese espiritual, juntamente com os sentidos de multiplicidade e paradoxo. Essa volúpia existencial que me levou até Abraxas, a harmonia dos contrários e toda a simbologia alquímica, onde nos encontramos com o andrógino primordial. Certa vez alguém observou que em mim se nota mais a presença do feminino do que do masculino. Através da criação é que o homem encarna a magia da maternidade. É impossível ser um criador sem trazer dentro de si as forças do masculino e do feminino. Só há fecundidade em uma dimensão alquímica. Sou, portanto e naturalmente, homem e mulher.


LF | William Blake o surpreende e o fascina. Ao observarmos sua obra, vemos um fio condutor forte o suficiente alinhavando todos os seus trabalhos. Uma identidade revelada de imediato em suas profecias, poesia, pinturas e gravura, bem como em suas melodias. Em Blake, a mente imaginativa cria um mundo que possui uma realidade, uma coerência, um clima e uma atmosfera própria. Vejo que o mesmo acontece com o conjunto de sua obra. Fale-me sobre os arquétipos que o fazem mostrar suas visões imaginativas.

FM | Não há motivo para criar uma nova realidade se não a permeamos de coerência e vida própria, sem, no entanto, esquecer a presença determinante do paradoxo, que é, afinal, a casa de força de toda realidade. Que bom que me indagues sobre chave-mestra, arquétipo, léxico e outros truques. Mais do que mera recorrência estilística, as minhas imagens primordiais provêm de uma vertente obsessiva, são a minha caixa de pandora que esvazio a diário e quando a lacro ela volta a se encher. Creio que a presença mais indicativa é a do abismo e todos os nomes e formas que o mesmo assume em minha vida: o sentido de entrega, a busca do outro, o mergulho no vazio, a paixão transbordante, a alegria de viver… Tudo caminhando para uma definição daquilo que o poeta Sérgio Campos certa vez destacou, em mim, como sendo uma poética do paradoxo. Blake é um desses grandes pais da criação. Outros poderiam ser Shakespeare, Jorge de Lima, Fernando Pessoa. Porém Blake é de uma totalidade tão cativante, imperativa, hipnótica, que foi justamente ele quem tomou a minha mão e me levou a escrever algumas anotações biográficas suas, no capítulo final de meu novo livro, A grande obra da carne. Certa vez escrevi uma peça de teatro a quatro mãos com outro William, o Burroughs. Na ocasião utilizei sua técnica do cut-up, interferindo crítica e poeticamente em seus escritos: narrativas, ensaios, palestras, entrevistas. Também escrevi ensaios biográficos de Alberto Nepomuceno, Antonio Bandeira, Drummond de Andrade e Robert Graves, porém nada com a mesma tensão psicográfica da experiência que vivi com Blake.

LF | Você não acha que esteja hoje liderando um movimento importantíssimo, descobrindo e revelando, sem reservas, novos surrealistas? E ainda trazendo à tona muitos outros esquecidos ou deixados de lado por questões de idiossincrasias… ou mesmo aqueles que não puderam ou não encontram voz no movimento?

FM | Jamais havia pensado nisto. Liderança é uma palavra pesada cujo significado é sócio de um desprezível clube de ortodoxias. Líder de torcida, de movimento artístico ou de qualquer outra forma de capelinha, nada disto me interessa. Desde cedo me indago por que os crimes de lesa cultura não são passíveis de condenação. Não serão jamais. Ao menos trato de, ao invés de me disfarçar de cruzado ou vigilante, ocupar-me da tarefa de trazer à tona nomes e detalhes esquecidos injustamente ou simplesmente não percebidos. Desde a adolescência me interessei pela prática do que se chama jornalismo cultural, aí incluindo a edição de revistas e a tradução. E aos poucos fui definindo uma meta, criando um sistema próprio com o qual eu me identificasse. Porém jamais pensei em liderança. Do que me orgulho: de certo altruísmo. Entendo que domínio de técnicas, conhecimento e informação são conquistas que só se completam quando são compartilhados. Recentemente, por exemplo, doei quase 12 mil livros de minha biblioteca para a criação de um Centro de Estudos em uma Universidade na Bahia. Há exatos 18 anos publico a Agulha Revista de Cultura. O mundo ganhou um código de velocidade que é autofágico. Como a nau já está à deriva, é importante ao menos manter um quarteto de cordas na proa, executando as partituras mágicas de doação e dedicação.

LF | Você transita com mestria entre a literatura e as artes plásticas. Nesse sentido, como você transforma a obra de arte em sentimento? Acredita que o pensamento o conduza a um sentimento? Qual a sua recorrência narrativa?

FM | Meu trânsito mais intenso é pelas estradas da curiosidade. Eu penso que a mecânica é inversa à que sugeres, ou seja, são os sentimentos que se transformam em obras de arte. Uma ação conjunta entre percepção, domínio técnico, visão estética, vai criando um ambiente propício à revelação de uma obra de arte. Igualmente inversa a relação entre pensamento e sentimento. O que sentimos é que vai, singularmente, moldando ou confirmando o que pensamos. Eu sou a medida inexata de tudo quanto vasculho com a minha curiosidade, com a minha natureza obsessiva, a minha gula existencial. Nisto os seis sentidos atuam em igualdade de forças. Por isto posso sair de um poema para uma foto para uma letra de canção para um ensaio para uma peça de teatro. A minha recorrência narrativa se chama vida, simplesmente.

LF | Em relação às artes plásticas, colagens, desenhos, fotografias, esculturas, arquitetura como cenário, como você trabalha o ciclo das cores e imagens e como se movimenta por elas? E quanto o suporte influencia na concepção final de uma obra?

FM | Leila, eu toco o ambiente mágico da criação como um amplo universo que se manifesta sob as mais incontáveis perspectivas. Seja no plano da forma ou do conteúdo, até porque esses elementos são univitelinos. Não reconheço os limites que separam os gêneros. Certa vez eu preparei uma série fotográfica a partir da construção de maquete de uma galeria labiríntica, paredes moduladas de isopor com fotos minhas em tamanho postal; piso espelhado e teto de isopor; alguns objetos espalhados pela cena… Foram três dias montando, umas duas horas filmando e uns poucos minutos desmontando o cenário. Na edição acrescentei a voz de uma cantora, Elaine Guedes, lendo um poema meu. Quantas linguagens envolvidas nessa aventura! Já por diversas vezes trabalhei com maquetes para a composição de séries fotográficas. As cores se procuram, são determinações do acaso. As imagens, por sua vez, atuam como elementos de uma representação. Fotos, colagens, poemas, para mim tudo são uma obra de teatro. E nisto o suporte entra como um personagem a mais decisivo para a construção de cada episódio criativo. Creio que a concepção final de uma obra é influenciada, sobretudo, pelo entrosamento de suas partes constitutivas, onde o suporte não representa papel distinto dos demais atores.

LF | Qual a relação da obra de arte e da poesia com o seu corpo e seus estados de espírito e como você faz a passagem para o estado criativo?

FM | Não há propriamente um rito de passagem. Gosto da observação do Valdir Rocha, de que eu vivo em estado de criação. Eu tenho uma perene concepção estética do cotidiano, de modo que o mais simples gesto – trocar uma lâmpada, preparar uma comida, ver um filme – implica a mesma chama acesa dos seis sentidos, igual a que me atende quando crio um poema, por exemplo. O meu corpo naturalmente é parte disto, até porque ele não vai a parte alguma sem a minha companhia. Na companhia teatral de meus estados de espírito o protagonista é sempre o humor.

LF | Quando você se surpreende com a poesia?

FM | Há alguns bons estágios do surpreendente, quando um detalhe da criação evoca algo que lhe antecede ou está por vir. Quando alguém comenta sobre determinado ângulo que não houvera conjeturado, ou quando o comentário confirma algo que considerávamos uma percepção apenas nossa. Quando encontro algo na obra de outros criadores que aponta uma entranhável cumplicidade. O inesperado é uma dádiva perene.

LF | Seus poemas refletem seu estado de alma, suas paixões e cotidiano. Para você o erotismo é um elemento transgressor que alimenta os poemas? Fale a respeito, pois suas obras refletem a latência do desejo.

FM | Eu não gosto de separar os elementos essenciais constitutivos da natureza humana. Nenhum de nós, e por consequência nenhuma obra de arte, se caracteriza por um estado de ânimo em isolado. Se os poemas, como dizes, refletem o íntimo de seu criador, quanto mais abrangente melhor se definem como obra de arte. Não somos feitos apenas de dor, ansiedade, desejo, morbidez, ilusão, alegria etc. Observo que a latência do desejo, no que me diz diretamente respeito, é uma espécie de mecanismo para despertar toda espécie de trava que nos priva da plena atividade dos sentidos. Neste sentido, entendo que o desejo seja um elemento mais eficaz do que a comoção social ou a cantilena religiosa.

LF | Encontro em seus poemas uma situação penetrável. Quero dizer, seus poemas penetram e transformam a minha percepção, estado de alma e sentimentos. O mesmo deve acontecer com muitos dos seus leitores. Você constrói essa relação com o tempo?

FM | Não se trata de uma construção, mas antes do mais puro reflexo de uma mecânica existencial. Eu tenho uma natureza penetrável, meus sentidos percorrem aquela cartografia por muitos dada como improvável, dos 360 graus. Mas esse percurso tem o sentido de uma aventura. Certa vez uma amiga me falou que meus poemas lhe deixavam excitada. Outra amiga me agradeceu por haver mudado muitas coisas em seu modo de ver o mundo, graças aos meus poemas. Mais recentemente outra me disse que a forma como eu exponho meu pensamento tem lhe ajudado a reconectar os fragmentos de sua própria existência. Talvez indagues por que o acento no leitor feminino. Certamente também terei leitores masculinos, porém o que observo é que, em geral, posto que não há regra para nada, os homens se aproximam do poema mais como se fosse apenas um objeto literário, enquanto que as mulheres tendem a observar cada coisa no mundo, incluindo o poema, como parte de um ambiente maior.

LF | Esquecemos alguma coisa?

FM | Considerando a fórmula ideal que revela que o desejo será sempre maior do que o objeto, somente os tolos creem no preenchimento absoluto da realidade. Nós dois nos descobrimos inesgotáveis, trasbordantes, de modo que ficaríamos aqui por várias eternidades, sem o menor risco de repetição estéril – a única que deve ser evitada. Aqui estivemos por uns 20 dias, em nossa ponte virtual, pois ainda não nos conhecemos. E certamente inventaremos mais capítulos para esse nosso teatro impossível. Não praticamos o desnudamento da alma como uma exibição, mas antes como uma revelação que em seu íntimo abre novas perspectivas de existência. Portanto, esquecemos não apenas inúmeros outros temas como também – e talvez principalmente – de voltar a tratar daqueles que foram lembrados. Viva o esquecimento, que é outra forma com que se mostra o paradoxo.

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Organização a cargo de Márcio Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Entrevista realizada em junho e julho de 2017.
Artista convidado | Floriano Martins
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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