quarta-feira, 16 de agosto de 2017

SYLVIA COLOMBO | Surrealismo e América Latina


SC | Você inicia o livro – O começo da busca – O surrealismo na poesia da América Latina (São Paulo: Escrituras, 2001) – pedindo que o leitor dirija um olhar “sem preconceitos” para a questão e reforça a ideia de que o surrealismo hispano-americano não é um simples reflexo da vanguarda europeia. Por que acha importante fazer essas ressalvas?

FM | A Europa dos anos 1920 via no Surrealismo uma forma de situação-limite, o encerramento de algo, o que diferia do âmbito hispano-americano. O que era conclusão em um lado do Atlântico era expansão na outra vertente. Se pensarmos nos antecedentes que definem a entrada na modernidade dessa poesia – e aí podemos citar o chileno Rosamel del Valle, o venezuelano José Antonio Ramos Sucre e o peruano José María Eguren, teremos que buscar uma leitura distinta entre Desnos e Paz, Breton e Molina, Eluard e Westphalen. Minha ressalva previne em relação aos lugares-comuns que reduzem a atividade surrealista a uma condicionante parisiense.

SC | Você dialoga muito com as ideias de Stefan Baciu. Por que?

FM | Há uma bibliografia muito resumida acerca do Surrealismo na América Latina. Alguns livros são de importância fundamental, mas não circulam além de um estrito círculo de leitores. Neste sentido, há uma imensa história do Surrealismo a ser recuperada. Por alguma razão, seguramente ligada a interferências stalinistas, o romeno Baciu fez circular uma leitura surrealista restritamente escolástica e pautada por inúmeros equívocos. Se eu recorro a ele com certa insistência é por que há uma interferência considerável a ser entendida e questionada.

SC | Você diz que no Brasil, uma visão positivista, relacionada a uma concepção política da história, impede o diálogo da literatura brasileira com o surrealismo. Por quê?

FM | O “surrealismo à brasileira” do Murilo Mendes era uma maneira de não ferir a si mesmo e a um ambiente castrador que ele sabia existente no Brasil. País extremamente católico onde o desregramento de sentido proposto por Rimbaud era inaceitável, todas as proposições das vanguardas foram lidas apenas no plano literário. Forma de extravasar os limites da realidade, como seria o caso do barroco, foram como que anuladas no Brasil. Houve certo casticismo da linguagem poética, firmado e continuado ao longo dos anos. Se pensarmos em Parnasianismo, Concretismo e essa diluição pós-qualquer coisa que se tem hoje em dia, tudo se encaixa. Não entendo o assombro da crítica, concordante ou não.

SC | Acha correto dizer que o princípio do surrealismo latino-americano deu-se na Argentina, Chile e Peru e que o Brasil só responderia a essa tendência algum tempo depois? Por que esses países ofereciam um cenário mais propício naquele momento?

FM | O Surrealismo implicava atividade ao mesmo tempo grupal e individual, como já disse o Octavio Paz, inclusive justificando sua presença, em um determinado momento, tendo por base completa ausência de atividade grupal no México. Tua indagação requer um largo ensaio a respeito. Se observarmos bem havia uma continuidade na experiência do Barroco e do Simbolismo na América Hispânica que no Brasil fora cerceada ao longo da história. Nossa entrada na modernidade foi caótica e padeceu, sobretudo, de uma consciência estética. Como seguimos até hoje sem abrir diálogo com qualquer outro ambiente cultural, uma presunção retórica nos encastela em si mesmo.

SC | Por que você acredita que uma interpretação tradicional que liga o surrealismo brasileiro apenas à figura de Murilo Mendes contribui para uma visão excludente sobre a influência que o movimento teve no Brasil?

FM | Essa limitação se baseia irrefletidamente na afirmação de Murilo em torno de “um surrealismo à brasileira”. Foi usada e abusada pela crítica no sentido de restringir atuação do Surrealismo no Brasil. Muitas vezes serviu de pano de fundo para ocultar a própria importância de Murilo em nossa poesia, como no caso da rejeição injustificável que tem a este poeta um crítico como Wilson Martins.

SC | Você destaca a importância de Mariátegui e sua revista Amauta para a criação de um espaço onde as vanguardas europeias circularam na época. Mas a principal preocupação de Mariátegui em seus escritos era política. Acha que é possível relacionar, em algum instante, o surrealismo latino-americano com a proposição política de pensadores como Mariátegui?

FM | Já se tentou de todas as maneiras a aproximação entre política e poética. Os políticos sempre se beneficiaram do assunto e os poetas acabaram sendo estigmatizados por certa inocência. Amauta propiciava uma abertura de discussão sobre variados temas. Hoje constitui documento importante o espaço cedido à discussão de assuntos poéticos sem interferência política da editoria. O assunto morre aí. Um particularismo peruano não vale para o restante do continente.







SC | Por que decidiu lançar a revista eletrônica Agulha? Em que medida ela auxilia no intercâmbio da poesia latino-americana?

FM | Agulha Revista de Cultura é uma publicação de reflexão crítica sobre a produção artística. Não se limita ao âmbito latino-americano, mas lhe dá prioridade. Surgiu de uma experiência frustrada de produzir uma revista impressa de ampla circulação nacional. E tal frustração permitiu descobrir na Internet um veio extremamente ágil e ainda hoje mal explorado. Como circulamos em português e espanhol, e superamos a marca de 50 mil endereços cadastrados, representamos um vínculo entre as duas culturas, em termos idiomáticos, jamais alcançado. Um último obstáculo seria fazer a mídia impressa entender a existência de uma virtualidade expressiva.

SC | Além de Agulha e da Banda Hispânica, você também atua como colaborador em revistas latino-americanas de literatura. Acredita haver um terreno fértil para a formação de uma cadeia de intercâmbio entre poetas e escritores no continente? O que acha que poderia ser feito para que a troca entre esses países fosse mais intensa?

FM | As revistas literárias têm sido a única forma de relacionamento entre os diversos países que conformam a América Latina. A grande maioria é dirigida por poetas. O mesmo se passa com as duas revistas que dirigimos, Claudio Willer, Soares Feitosa e eu. As formas de intercâmbio possíveis são óbvias, embora não praticadas. Sistematizar encontros internacionais (simpósios, mesas-redondas, leitura de poemas etc.) que não sejam pautados por interesses incomuns, definir uma política editorial que atenda a uma veiculação mútua, buscar gestões que propiciem ampla difusão. O assunto não pode seguir entregue a iniciativas isoladas de uns poucos abnegados. É uma falácia o estado brasileiro falar em integração latino-americana e permitir o que se passou com a revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, na Feira Internacional do Livro em Guadalajara, México, no final do ano passado, quando todo o lote de exemplares levado para lançamento ficou retido na alfândega, sem qualquer providência por parte da embaixada brasileira.


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Organização a cargo de Márcio Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Fragmento desta entrevista foi publicado no caderno Folha Ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo, 2002.
Artista convidado | Floriano Martins
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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