segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

FLORIANO MARTINS [sobre] Péricles Prade



Uma comédia, esta em que os segredos / ficam pendurados no esqueleto do tempo / à espera de novo conflito brotando. Este fascinante ninho que traz em si a potência aclaradora de toda uma poética, lemos no interior de um poema do livro Este interior de serpentes alegres, com que estreia Péricles Prade em 1963. O espírito da renovação perene se encaixa no drama sensual da própria existência. Representação, metamorfose, conflito e vitalidade. Indicativos de um léxico singular, corda estendida vibrante de sentidos, mirante obsessivo que lambe as cicatrizes do horizonte. Tudo isto encontramos nessa caudal de imagens fiadas pelo poeta. Fina estamparia com que descortina o campo de possibilidades flamejantes que a criação lhe destina.
Ao cruzar os acidentes simbólicos que desafiou a si mesmo conhecer, mantém aceso um manifesto equilíbrio, atrativo essencial de uma expedição devoradora, que revela a própria natureza faminta da criação. Péricles Prade persegue o cálculo do mistério sem perder o fascínio elegante de seu enigma. Transcende a semeadura de todas as virtudes, posto que acima de tudo a ele o que interessa é decifrar os caracteres da vertigem, do sonho, da memória. Como um agrimensor voraz do intangível.
Ao darmos um salto, de 1963 a 2017, pousamos em outro ninho tormentoso: Sol branco que me cega, / réplica da cabeça humana, / concedei-me / neste instante / a senha da
divindade. Novamente uma imagem múltipla encontrada no presente livro, O retorno das serpentes. Nela abundam os argumentos da síntese, os truques vitais do conflito: o sacrifício em nome da unidade. Sacrifica-se, em muitos casos, o verbo, para garantir a mecânica do ser. De um livro a outro assumiu todos os papéis que lhe cabiam. Foi santo e trapaceiro, idealismo e circunstância, renúncia e rejuvenescimento…
E trouxe sempre consigo esse perfil icônico da serpente. Personificação de impulsos e domínios. Tábua da fortuna, repleta de entidades díspares que se deixam penetrar umas pelas outras, casulo profano de constâncias e desvarios. Sempre, em sua bagagem de transmigrações, Péricles Prade manteve réplicas e originais de incontáveis serpentes. A contradição de um serialismo infinito. O paradoxo de um círculo que se descobre outro a cada volta cumprida. Este é o enigma vital da criação.
Círculo ou espiral? O poeta confabula sua partitura como um ilusionista. Não se trata de revelar um segredo, mas antes de ampliar o encantamento pela busca. O que vemos na poética de Péricles Prade, ao percorrer o território múltiplo de sua aventura criativa, é o que pressentimos no avanço sinuoso de seus temas, o truque de suas correspondências, as raízes analógicas de seus vultos… Deserto e floresta, mar e vulcão, o cálculo mítico de cada tesouro decifra nossa alma de leitor. Somos prazerosamente esse misto de amante e vítima. E cada personagem que representamos em seu teatro alquímico se multiplica em perfis ondulantes que refazem o enredo desde suas raízes.
Cada verbo que tocamos se associa a um novo matagal de assimilações. Exige que sua leitura seja tão convulsiva quanto são as premissas de sua fundição. O verbo aclimatado aos quatro elementos e aos cinco sentidos. Uma resposta distinta a cada frequência do inconsciente. Descemos ao íntimo sorrateiro da criação para evocar – jamais para elucidar – os estratos primitivos do que imaginamos e recordamos. Ao mistério queremos agregar mais mistério, até que o enigma se complete e se renove. Por isto o verbo devora a própria cauda. E cria raízes no éter. E incendeia os mares anímicos. E triunfa na intempérie do desejo. E escreve mil vezes que o deserto e o abismo se completam numa mesma viagem.
O que devoro é a prova do milagre. O livro improvisa seus truques como uma fábula retorcida. Uma história contada através de seus reflexos. Através do espelho astutamente mudo de seus alçapões. Um relato mudo como um ardil. Como uma senha enganosa deixada na soleira de cada entrada: retorno. Mas qual retorno essa arapuca poética exige de nós? A trama encoberta a encontramos no título de outro livro seu: Casa de máscaras, de 2013. Ou na reveladora epígrafe de Po Chü-i à qual ele recorre no capítulo Máscara do tempo, do livro Sob a faca giratória, de 2010: Todas as substâncias carecem de substância. Barroco e simbolismo se irmanam não na decantada impenetrabilidade, mas antes, em sua vitalidade poética, no perene desafio à decifração de um enigma que a todo instante muda de forma e lugar.
A evocação de todas as serpentes, como é possível encontrar na vastidão arenosa deste livro com que Péricles Prade encerra um essencial capítulo de sua criação – toda uma vida –, expressa uma insaciabilidade que ele agora devota unicamente a seu leitor.  Uma bênção à iniciação nos meandros da transfiguração. Todas as serpentes: Satã, Esculápio, Loki, Ouroboros, Kundalini, Quetzálcoatl, Aidophedo… – Cada uma delas olhando para si e as demais, encerrando princípio e fim na extensão de seus corpos sinuosos. Como as máscaras ritualísticas que guardam em sua origem o próprio fim. Árvore, oráculo, druida. O andrógino, o ilusionista, o alquimista. As três cabeças do mito.
Aqui observamos uma cilada desenhada pelo agudo senso de humor de Péricles Prade: a partição em conjuntos de cinco a cinco poemas que caracteriza a estrutura de boa parte de seus livros de poemas. Ele próprio insiste em aclimatar essa charada mística, recordando que os mistérios antigos eram divididos em cinco partes. Em essência, como nos recorda Juan-Eduardo Cirlot, o cinco é o símbolo do homem, da saúde e do amor, o que nos remete à síntese espiritual que caracteriza o número três. A quinta casa da expedição numerológica nos leva de volta à terceira, em uma espécie de reiteração constante da qual o viajante (leitor) só poderá escapar se decifrar a própria presença em tão serpeante território.
Meu voo poético também é circular. Charada ígnea. O singular humor negro de Péricles Prade. Ilude quando insiste que sua poética apenas tangencia o nonsense. Desvia a atenção da crítica quando situa em outra margem sua eventual afinidade com o Surrealismo. Sob cada pedra deixa oculta uma pista que somente nos levará à raiz de sua poética se as reunimos todas, como ele próprio cuida de fazê-lo, em relação às serpentes, no presente livro.
É quase nenhum o parentesco com este poeta que se possa reclamar na tradição lírica brasileira. Em um gesto de quem procura uma afinidade entre pares, Péricles Prade chega a referir os dados cubistas de Murilo Mendes, a fragrância lúdica de alguns de seus experimentos líricos. A perene conversão de uma coisa em outra que, com medida sagacidade, o leva a recorrer a elementos tanto do ocultismo quanto do erotismo. Eu o vejo como um viajante solitário, a exemplo do cubano Lorenzo García Vega (1926-2012) no âmbito da tradição hispano-americana. Ao situar no tabuleiro a presença de uma árvore imutável, García Vega logo pondera que, com sua ilusão de um eterno instante apenas copia, o calígrafo, a cópia do copiado no dia anterior. Sempre uma charada, repleta de nonsense no cubano, copiosa de fetiches no brasileiro. Em ambos, o mesmo sumo de um ardil transgressor e voraz. Ambivalência e subversão. Disfarces analógicos. Dilaceração sigilosa dos vestíbulos da linguagem.  O eterno retorno que as serpentes iludem.
A vocação obsessiva do poeta é a mesma de um parente distante apenas no tempo: o holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). Ambos são ferreiros refinados na escritura de suas evocações. Ambos mergulharam no ambiente ocultista, não como se fossem associados de uma ortodoxia, mas antes como quem busca os argumentos mais potentes para descrever a saga existencial pela qual se aventuram. Satíricos sutilíssimos, ambos, embora distintos no tratamento da ironia, na derrocada de mitos e outros vícios de linguagem. Dois felizes calígrafos dos deslizamentos da alma humana.
Eis a paisagem visionária em que Péricles Prade tange os fios de sua epifania. Uma saga sinuosa que percorre o espinhaço de cada verbo. Personagens manifestos em casas ambivalentes que revelam o que são como uma imolação do sentido. Esfinge que descrê do que decifra ao mirar o espelho da página. Segundo seus argumentos mais secretos, a criação é fruto de um delicadíssimo dom que não se permite presilha de espécie alguma. Ela não se restringe aos guizos de qualquer ortodoxia, seja no âmbito estético ou na astuciosa retórica dos cantos religiosos. Ao contrário, progride por decantação voluptuosa e reintegração a todos os símbolos radicais, sempre deixando em cada ser e objeto uma fatia de seus fundamentos. Todas as serpentes dentro de uma mesma pedra, a gema negra que permite ao homem devotar sua vida ao mistério. Não é outra senão esta a gema iluminada da poética de Péricles Prade.


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FLORIANO MARTINS (Brasil). Poeta e tradutora. Página ilustrada com obras de Vicente do Rego Monteiro (Brasil), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 106 | Janeiro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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