sábado, 14 de julho de 2018

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Sonny Labou Tansi, Aimé Césaire e o teatro negro



I
O TEATRO DE SONY LABOU TANSI OU UM RIO ENTRE AS DUAS PERNAS

A Sônia Oliveira Almeida[1]


INTRODUÇÃO | Apresentar Sony Labou Tansi, desaparecido há pouco mais de vinte anos[2], num projeto editorial da universidade brasileira sobre teatro contemporâneo em francês é um desafio por diferentes razões. Por um lado, a obra do poeta, ensaísta, romancista e dramaturgo congolês (dos vários Congos, criados artificialmente por diferentes colonizações) é extensíssima, sem sombra de exagero (a publicação recente dos seus Poèmes[3], na grande maioria inéditos, ocupa mais de 1200 páginas); por outro lado, a sua produção, nas suas várias vertentes, é não só instigante mas por vezes igualmente desconcertante, inclusive para a crítica, por problematizar, transbordar as margens e até mesmo sabotar, por dentro, alguns dos modelos de análise mais em voga.
Do ponto de vista estritamente teatral, Sony Labou Tansi, que se define como Kongo, fundou em 1979/1980 e dirigiu até a sua morte uma companhia teatral, o Rocado Zulu Théâtre, em Brazzaville: apesar das dificuldades iniciais da sua carreira literária, pode encenar as suas peças in loco e em diferentes cidades da Europa e dos Estados Unidos como gozou, e goza mesmo depois da sua morte, do apoio fundamental do Festival de Limoges (Festival des francophonies en Limousin) e de outros festivais francófonos.
Em busca de simplicidade e alguma eficiência, optou-se por apresentar o dramaturgo no seu contexto de formação e origem, resumindo as suas posições teóricas frente ao teatro africano e ocidental[4], para analisar em seguida de mais perto uma das suas últimas peças, Une vie en arbre et chars…bonds[5] destacando algumas das suas intertextualidades: daí o nosso plano.

A TERRA DE ORIGEM

Je suis un homem où sont embourbés tous les Autres.

Sony Labou Tansi.

Les cultures sont de contamination et de saveur humaine.

Kossi Efoni, in Encre, p. 9

Na peça de Césaire, Une saison au Congo, no último encontro entre Lumumba e sua mulher Pauline (III, 2), esta lhe diz: “Je n’ai pas nom de pays ni de fleuve!” e o marido responderá, num diálogo que exalta a importância da mulher no confronto com o herói: “Tant pis, je t’ai toujours appelée en moi-même, Pauline Congo” (Une saison, p. 96).
Nascido Marcel Ntsoni em Kimwenza (Léopoldville) a 5 de junho (ou julho) de 1947 e falecido em Brazzaville a 14 de junho de 1995 aos 48 anos, Sony Labou Tansi reúne os dois Congos atuais, além da memória do antigo Reino do Congo descrito pelos cronistas portugueses dos séculos XV e XVI[6].
É o filho mais velho de uma fratria de sete irmãos da segunda mulher do seu pai (polígamo) e toma literariamente o sobrenome materno, que combina com uma homenagem ao escritor igualmente congolês Tchicaya U Tam'si (1931 - 1988)[7].
Alfabetizado em Kikongo, uma das línguas banto, numa missão protestante sueca[8], é enviado em seguida por um tio para a escola francesa. Sobre esses anos de formação e de aprendizagem, dará um testemunho por vezes cômico, por vezes brutal:

J’écris en français parce que c’est dans cette langue-là que moi-même j’ai été violé. Je me souviens de ma virginité. Et mes rapports avec la langue française sont des rapports de force majeure, oui, finalement. Il faut dire que s’il y a du franaçis et de moi quelqu’un qui soit en position de force, ce n’est pas le français, c’est moi. Je n’ai jamais recours au français, c’est lui qui a recours à moi. (in Encre, p. 50)

Diante da pergunta sobre as razões de escrever, Sony responde, citando sem citar Jahan: “j’écris parce que je suis kongo, c’est-à-dire muntu, c’est-à-dire homem” (ibid., p. 80). Resumindo a sua posição, o congolês escreve sobre o silêncio de 600 anos da África:

 J’appartiens à la partie de la Terre qui aujourd’hui compte six-cents ans de silence. Ce silence nous a enseigné deux ou trois choses capitales: la beauté de la différence, les rapports avec la nature, l’ouverture vers l’autre. Je ne veux pas dire que nous soyons les meilleurs. J’écris sans doute pour témoigner de ma différence, pour garantir celle-ci; parce qu’elle est un enrichissement pour l’humanité, parce qu’elle est la seule vraie possibilite d’ouverture sur l’ “autre”; la seule vraie voie de reencontre avec l’autre; enfin, la seule garantie contre l’uniformisation, l’intolérance et le fascisme. (in Encre, p. 80)
  
SONY LABOU TANSI, PENSANDO O TEATRO AFRICANO | A leitura de alguns textos teóricos de Sony Labou Tansi sobre o teatro[9], obriga o leitor a refletir o que vem sendo feito, no Brasil, no duplo campo dos estudos francófonos e lusófonos, e na sua necessária e desejada articulação. Ele é de longe o autor com maior experiência de teatro em África não só como produtor de textos, mas também como encenador e diretor teatral[10].
Como compreende Sony Labou Tansi o teatro e a obra teatral? Sua primeira resposta está num ensaio de 1983:

…je crois qu’on appelle aujourd’hui théâtre le fait d’emprisonner dans un texte (visuel ou oral) un certain nombre de symboles liés au profond besoin, à notre besoin fondamental d’une expression totale; car le but c’est justement l’expression totale. Là est la logique profonde du spectacle. (in Encre, p. 70).

Na abertura do mesmo texto, Sony declara não querer ter antepassados nem na Grécia nem na Pérsia. A passagem é característica da sua ironia:

Dans l’entendement de l’Euro-Occidental, le mot théâtre renferme trois couches d’alibis qui se résument en trois mots: jouer, montrer, toucher. L’acte théâtral, si je peux me permettre de parler ainsi, serait consacré par d’autres petits alibis plus ou moins extérieurs. Masi je ne partirai pas du théâtre comme l’indiqueraient ses origines, sa croissance, sa récupération par le texte, la salle, les metteurs en scène, l’argent. Je n’ai aucune envie de me frapper des ancêtres en Grèce ou en Perse, aucune envie de fouiller dans le culte de Dionysos les senteurs de l’esthétique nègre. (in Encre, p. 65).

Sony estabelece uma diferença de olhar entre o Ocidental e o Africano, não apenas entre jouer e se jouer, mas sobretudo na função do mediador/ator, desqualificado ou valorizado socialmente:

En Occident le métier d’acteur porte en lui, un peu comme le sexe, une forme de honte, profonde, indélébile, une allure de besogne magouillante. [….] Chez nous, par contre, le nzonzi [médiateur, arbitre, juge] était l’homme adore et envié de tous. Il avait les meilleures faveurs et la meilleure admiration. (in Encre, p. 66)

O seu texto mais conhecido sobre o teatro é aquele em que pergunta “Césaire, père du théâtre africain?”, modelo de ironia e de sabotagem consciente de certezas universitárias. Uma primeira resposta paradoxal nasce da oposição postura curva vs postura vertical:

Mais parlons de Césaire et de l’Afrique. De l’Afrique d’abord, parce qu’elle existe avant 1960. Du lien sacré qui la lie à Césaire et j’ose dire à Fanon. Le centre de ce lien est le fait que l’Afrique est le plus recourbé des cotinents – or le drame césairien reside grosso modo dans un rapport douloureux avec la station verticale; il est celui de la reconquête de la verticale. (in Encre, ibid., p. 96).

Para Sony, o problema central da África é o seguinte: um continente que não pensou durante 450 anos. “N’a pas pensé, n’a pas rêvé, n’a pas parlé… mais pose des questions
(ibid., p. 96). Entretanto, apesar da tendência ocidental para generalizar e centralizar, é preciso descobrir e identificar diferenças:

Même si, pour le monde entier, l’Afrique est un bloc (agenouillement) et une unité culturelle (on y danse partout à l’ombre des fusils) nous serions plus prudents de parler des Afriques et des théâtres de ces Afriques. Je ne parlerai que du monde que je connais le mieux, le monde kongo. (in Encre, ibid., p. 97)

Sony, no seu panorama dos teatros tradicionais no grande espaço Kongo, enumera quatro tipos diferentes:

a) o teatro sagrado do Wala e do Lemba, cuja devisa era “Mia ku lemba ka miteko” (só se diz o que se passa no Lemba aos mortos e a Deus), implicando sempre um longo aprendizado e diferentes etapas de iniciação;
b) o teatro dos Nkoloba ou marionetas, mais popular: um contador narrava uma história, geralmente trágica, com a ajuda de bonecos de madeira, para que o corpo humano não fosse poluído por certos atos;
c) o Kingizila (teatro ou dervir, etimológica e literalmente) é um ato teatral de cura de um doente a partir do papel que devia representar uma vez e ainda de novo, no interior de uma história (cenas, costumes, texto);
d) o Bumungu ou teatro da purificação, o mais íntimo de todos, reagrupando um certo número de curandeiros (nganga) em espaço com quedas de água, grutas, fontes etc., a representação durando do nascer ao cair do sol. Neste caso, o nganga-e-bunungu devia viver uma história que podia atrair a atenção do Grande Espírito.

A conclusão de Sony é simples: outras formas de teatro (Yoruba, Fang, Ewe…) existem em África, monstrando que Césaire, dito o Africano, não é exatamente o pai, “mais le témoin (important) de la tragédie des agenouillés qu’ils soient d’Afrique ou d’ailleurs” (in Encre, ibid., p. 98). Em suma: Sony Labou Tansi encaminha os críticos que supõem ou afirmam uma filiação externa (antilhana, no caso) para o novo teatro africano, para o estudo antropológico das sociedades do universo banto, sem negar a importância de Césaire e a sua análise.
Há ainda dois outros textos de Labou Tansi interessantes do ponto de vista teatral: o “Avertissement”, provavelmente de 1989, que precede a sua peça “Qui a mangé Madame d’Avoine Bergotha?” (in Encre, p, 113 - 116) e ainda uma reflexão sobre o teatro possível num mundo doente de “um vicioso traumatismo cinematográfico de essência americana” (ibid., p. 128 - 130).
Na realidade, a grande novidade que traz o dramaturgo Sony Labou Tansi ao teatro africano é o seu próprio método de trabalho que parte do corpo e da improvisação do ator a partir de temas nascidos da observação das ruas ou dos estádios.
O escritor congolês Caya Makhélé[11] (1952, Pointe Noire, Congo), numa entrevista gravada, assim descreve o método de trabalho de Sony:

 Son théâtre est avant tout un théâtre d'improvisation avec des thèmes choisis pour que chaque comédien, chaque membre de la troupe puisse apporter quelque chose. Et ensuite, il écrivait le texte à partir des propositions qui étaient faites. Et souvent ces textes évoluaient énormément et devenaient des textes d'une grande qualité littéraire et théâtrale en même temps. Mais il pensait également que les fondements du théâtre traditionnel congolais étaient importants pour comprendre et pour avoir la capacité de changer la manière de faire le théâtre. Et donc, en partant des bases traditionnelles, il a transformé le théâtre congolais et africain. Il a influencé le théâtre africain de telle sorte que la structure même des textes, la manière de mettre en scène, et la capacité de donner de l'espoir aux gens, a fait que son théâtre, comme il disait, ‘était le théâtre du corps, de la chair, de la sueur, du sang, et de la parole’.

Caya Makhélé assim descreve a origem do teatro do Outro, a observação atenta das ruas:

Sony disait qu'il s'inspirait de tout ce qu'il y avait autour de lui, il était souvent dans des endroits impensables, auprès de la population, il se rendait souvent dans les marchés pour écouter les gens et pour voir ce qui se passait, il allait beaucoup aussi sur les lieux de sport. Mais ses sources d'inspirations étaient également dans ses lectures.

Essas leituras podiam ser os amados latino-americanos (lidos em tradução francesa), Kafka ou Jules Verne.

UNE TRAGIQUE JOUERIE” | Assim é apresentada a peça Une vie en arbre pelo próprio autor na última linha do prefácio (in Théâtre 2, p. 7). Jouerie é um termo do período que os linguistas denominam “Moyen français” (período da evolução da língua francesa correspondendo ao final da Idade Média e início do Renascimento), reutilizado por escritores do século XIX e XX. Significa: brincadeira, divertimento leve, fácil. Liga-se ao verbo jouer (brincar, representar). [12]
O termo nos permite estabelecer uma primeira diferença entre Une saison e Une vie en arbre: Césaire faz, a partir de uma documentação extremamente sólida do ponto de vista histórico, um panorama das forças em confronto (neocolonialismo belga, tribalismo, influência da Igreja, memória do profetismo e do messianismo, ingerências estrangeiras, intervenção dos capacetes azuis da ONU, pretensa neutralidade da ONU, guerra civil e anarquia, secessão do Katanga, desordem econômica etc.) enquanto Sony cria uma espécie de “moralidade” ao mesmo tempo alegórico-medieval e pós-moderna, reunindo cientistas loucos (americanos e europeus), duas jovens suecas apaixonadas, um ancião centenário, verdadeira encarnação da frase tornada proverbial “un vieillard qui meurt c’est une bibliothèque qui brûle[13], uma criança que permanece anônima e morre enforcada representando o futuro incerto não só dos Congos como de toda África e uma multidão de personagens igualmente sem nome num cenário simbólico que reúne os semas da árvore-mãe da humanidade, das águas que fertilizam da terra, da poluição física e moral da natureza anunciando sempre possível cosmocídio. Tentemos destacar algumas camadas de significação dessa “jouerie”.

NUM CEMITÉRIO DE AUTOMÓVEIS JUNTO A UMA ÁRVORE MUITAS VEZES MILENAR | O título da peça, Une vie en arbre et chars….bonds, é um jogo de palavras, o primeiro de muitos outros jogos, praticamente intraduzível em português. Brincar com os Significantes e Significados, provocar curtos-circuitos ou contaminações imprevistas de sentidos, é falar a língua do trickster (ou seja: a língua de Exu, de Elegbá ou Legba). Esse personagem, tão comum nos cultos africanos e essencialmente mediador, fala por enigmas, adivinhações ou trocadilhos, na intersecção explosiva dos conceitos e conotações: o trickster dialectiza o real e contorna as contradições lógicas.[14] Sua linguagem desabrida e sem regras encontra a do fool shakespeariano.
Ainda sobre o título: a árvore constitui um modelo de vida ao mesmo tempo enraizado e ascendente, unindo as profundezas da terra ao céu. Para que a árvore possa crescer para o alto é preciso descer cada vez mais na terra. É o grande modelo oculto do ponto de vista antropológico do imaginário de Césaire. Note-se a preposição en (Une vie en arbre): não se trata de uma vida de árvore mas como, à maneira de árvore. Enfim as sonoridades do último segmento do título fazem o espectador/leitor entender primeiramente charbon e não chars …bonds. Como se obtém o carvão vegetal? Pelo corte da floresta, pela queima das árvores em fornos primitivos. Ao separar por reticências dois segmentos chars….bonds (= carros aos saltos ou carros de assalto?), o autor prenuncia a entrada inquietante em cena do Homem-monstro e seus sequazes (o Homem-relógio, o homem H e seu adjunto, o genitor de empregos, o enviado-viajante, o preposto, os touros chicoteadores, as multidões). Essas personagens sem nome próprio inicialmente, pretendem, sob a direção do Homem-monstro, transformar o espaço da floresta e do grande estuário já poluído pelas carcaças dos carros abandonados e pelos ratos e baratas, numa aldeia planetária dos novos tempos e das novas políticas transnacionais. A própria descrição do cenário inicial - uma árvore, não centenária, mas multimilenar perto de um grande estuário de águas amareladas - apresenta-se como a grande metáfora visual de uma situação histórica: o desenvolvimento dos impérios coloniais (por ordem cronológica no caso do Congo: português, francês e belga) vivido pelos europeus como aberturas exaltantes de espaços de vida e de ação, tem como reverso da medalha, a experiência dos colonizados com o esfacelamento, poluição e apodrecimento dos seus lugares de vida. É desse espaço em decomposição que o autor interpela o seu público, cada um de nós.
As cenas da peça, não numeradas como é habitual, seguem-se, indicadas através de um cromatismo metafórico. Ao todo são dezasseis, distribuídas em dois grupos separados por um período de seis meses. No primeiro grupo, encontramos sucessivamente: 1) scène jaune d’oeuf (p. 9 - 23), 2) entre-scène jaune (p. 23), 3) scène mère (p. 23 - 33), 4) scène rouge à lèvres (p. 34 - 36), 5) scène bleu de nuit (p. 36- 41), 6) l’anti-scène bleu d’urgence (p. 41 - 42), 7) avant-scène blanche (p. 42 - 43), 8) scène blanche (p. 43 - 48), 9) scène noire de charbon (p. 48 - 49), 10) scène pourpre ( p. 49 - 50); no segundo grupo, temos: 11) scène gangue et boue (p. 51 - 52), 12) scène bleu de méthylène (p. 52 - 53), 13) scène-mère (p. 53 - 54), 14) scène cuivre et thé (p. 55 - 57), 15) scène noir de carbone (p. 58 - 59) e finalmente 16) scène rouge (p. 59 - 61).
O cromatismo simbólico de cada cena constitui o primeiro fio de Ariadne na opacidade do texto. Note-se que as tonalidades podem repetir-se mas vão escurecendo com a entrada do Homem-monstro e seus acompanhantes a partir da cena nº 4: a ação desenrola-se do amarelo ovo, cheio de luz e prenhe de promessas de vida, ao negro carbono, que anuncia o fim sangrento.
Digamos uma palavra sobre os personagens iniciais. Ao levantar o pano, duas irmãs gêmeas (Colette e Charlotte) chegaram da sua Suécia natal para chorar a morte do seu irmão Georges, grande cientista interessado em estudar a estranha árvore. Fora atraído por um certo Balthasar de quem as irmãs falam mas nunca se saberá de quem se trata: é um dos enigmas da peça. Lembrança longínqua de um antigo Rei mago africano que seguiu outrora uma estrela?  O irmão morto viajou da Suécia em busca de uma árvore. Acompanha as irmãs um rapaz, Mensfields, louca e servilmente apaixonado por uma das gêmeas, Colette. Para esta, no entanto, é já o tempo do desprezo impaciente e do desamor.
As irmãs, acampadas ao pé da árvore, são visitadas todos os dias por um velho (este centenário: tem 116 anos) e por um adolescente sem nome, de 13 ou 14 anos. Colette apaixona-se com fúria pelo “menino[15] a ponto de desejar comê-lo. A área semântica da boca é uma das obsessões em Sony Labou Tansi[16]. Aliás também a árvore parece marcar o lugar de uma boca do mundo ou melhor do seu umbigo fechado pelo tronco portentoso. Um omphalos que reage, vivo.
O velho conta às jovens suecas dois contos ou fábulas sobre a árvore e o que a rodeia: a árvore não só provoca mortes porque ela se mexe (“bouge”, Théâtre 2, p. ) e causa acidentes mortais (assim terá morrido o irmão das gêmeas, já enterrado) como brinca com o grande rio e as curvas da estrada. Esta não leva a lugar nenhum e o viajante volta sempre, mesmo sem o querer, em direção à árvore. Estamos assim num lugar mágico ao mesmo tempo com poderes misteriosos e em decomposição.

A PRIMEIRA CENA-MÃE

Je n’aime pas l’amour en soi. J’aime le poids savoureux qu’il prête à notre être fragile.

Colette, in Une vie en arbre, p. 29

Não podendo analisar a fundo cena por cena, optamos por concentrar nossa atenção sobre os seus momentos chaves.
A cena inicial, a mais longa de toda a peça, intitulada scène jaune-oeuf (ibid., p. 9 - 23), desenrola-se segundo o seguinte esquema: apresentação dos três estrangeiros (as gêmeas e Mensfields), entrada do ancião com o menino sem nome, este anuncia repetidas vezes a chegada terrificante dos américasseurs/américassés[17] no horizonte, o ancião decide dormir enquanto todos esperam o ataque iminente.
A primeira scène-mère[18] (ibid., 23- 33) constitui uma espécie de intermezzo lírico. Colette, inspirada e radiante, diz o seu amor com conotações evidentes de um novo Cântico dos cânticos pelo menino que a trata cerimoniosamente por Madame e as duas irmãs conversam sobre as suas concepções opostas sobre o amor, enquanto a árvore, no final da cena, põe-se a uivar. A natureza em pânico grita.
O diálogo lírico das gêmeas, sobre fundo sonoro de uma cavalgada furiosa, desenvolve-se a partir do célebre amare amabo de Agostinho de Hipona: o leitor atento percebe que está diante de uma discussão com o verso e o reverso de uma corte medieval de amor provençal. Colette canta longamente em versos sensuais a sua paixão súbita e incoercível pelo menino: a paixão a faz renascer, outra. Charlotte, por sua vez, faz o elogio do amor na sua diversidade e variação, desfiando o elenco dos seus amantes: de forma reveladora, como uma reincarnação feminina de Don Giovanni (o de Mozart) inclui até mesmo o ex-amante da sua irmã Colette, Mensfields. Por outras palavras: Charlotte brincou, num determinado momento, de ser a Outra, igual a si própria. E ambas já conheceram e viveram a tentação de amar o Mesmo, isto é, o seu próprio irmão, como nas teogamias do antigo Egito em que os deuses se casam entre irmãos e irmãs[19]. O tema aparece sub-repticiamente em ambas as gêmeas.[20]

A REESCRITURA DA NARRATIVA DE JOSEPH CONRAD, HEART OF DARKNESS

J’ai fini d’être Wattmans. Je me suis sacré Homme-Monstre et croyez-m’en, ça ne sera pas pour des bagatlles.

In Une vie, p. 47.

O núcleo central da peça que vai, de certa forma, da scène rouge à lèvres até a scène pourpre (in Théâtre 2, p. 34 -51) parece-nos inicialmente uma releitura alucinante da novela de Joseph Conrad sobre o Congo, Heart of darkeness. [21]
Todos conhecem a assustadora novela de Conrad[22] (publicada pela primeira vez em folhetim em 1899) em que um jovem oficial da marinha mercante britânica, Charles Marlow, sobe o curso de um grande rio em busca de um certo Kurtz, aventureiro cruel que criou um reino seu no interior do Congo belga, se não pelo texto em inglês, pelo menos na genial transposição feita por Francis Coppola, para a guerra do Vietname, no seu Apocalypse now (1979) em que o sádico louco tem, para cada um de nós, o rosto de Marlon Brando de cabeça raspada. Sony Labou Tansi, que certamente conhecia a narrativa de Conrad (não esqueçamos que ele foi, inicialmente, professor de inglês) elimina a busca rio acima e concentra-se na organização do novo reino sob o comando do Homem-monstro ao pé da árvore gigantesca junto ao grande estuário de águas barrentas.
O espectador descobre por acaso que o Homem-monstro e alguns dos que o cercam, já tiveram nomes americanos ou europeus. Wattmans é o verdadeiro nome do Homem-monstro e o Homem-relógio, seu principal auxiliar, chama-se na realidade Angelotte. Aventureiros mercenários empreendem agora a criação ex-nihilo de um reino, uma aldeia global para turismo de massa com previsão de três milhões de visitantes por mês (ibid., p. 35) em torno da árvore. Os Opositores patéticos ao projeto louco são apenas cinco: um menino sem nome, duas gêmeas, um velho mais um “pantin” (um mamulengo[23]). Com esse turismo de massa pretendem o Homem-monstro e seus acólitos criar pequenos “empregos” suplementares (ibid., p. 38) porque descobriram que os pobres não dão mais lucro no mundo de hoje: “personne n’a plus besoin des pauvretés non rentables et non payantes” ( ibid., p. 38).
Na sua peça, Sony retoma um dos temas centrais dos seus ensaios. A nova forma de escravização prescinde da violência, exercida de forma fulminante ou teatral apenas quando necessária:

Toute la nuit durant, nous avons essayé de faire enttendre à ces mulets que cette idée grandiose est à la base de l’entreprise. Nous l’avons fait suivant une logique claire telle que l’eau de source: plus de boulots égale moins de chômage et moins de chômage égale moins de vagabondages migratoires. C’est-à-dire plus de paix, du moins socialement parlant. Et plus de paix égale paradis sur terre, au moins pour quelques quarts de siècle. (ibid., p. 38)

Dentre os Opositores ao Homem-monstro, o mais patético é Mensfields que fala de si próprio em termos quase ridículos de herói trágico grego (furar os olhos, tapar os ouvidos, perder-se) num universo sem regras para serem quebradas, tornado absurdo. Ele é definitivamente um homem do passado, vítima da paixão e da idolatria. O comentário final do ancião sobre Mensfields é revelador. A Charlote que pergunta: “quel vide avons-nous creusé en cette pauvre âme?”, o velho responde: “Il s’en va vivre d’autres métiers. Lui au moins ne verra pas la vanité des vanités des américasseurs. Mourir aujourd’hui a plus de sens que vivre demain” (ibid., p. 43).
O preposto do novo Rei absoluto do centro do mundo em torno da árvore recebe a visita do enviado do Rei dos Sete, que pretende fazer uma visita a árvore em condições “civilizadas”. O espectador deve imaginar esse novo Rei como o chefe supremo do consórcio dos centros mais poderosos do mundo. Uma querela ridícula (ibid., p. 43 - 46 ) tem lugar entre um aristocrata regional (du coin) e um aristocrata mundial (de sang et de jus). A cena em questão termina por uma declaração reveladora do Homem-monstro: “Notre monde ne saura plus vivre que de folie furieuse” (ibid., p., 48). Loucura shakeasperiana de Ricardo III , de Macbeth ou do Rei Lear, loucura hitleriana nas ruínas fumegantes de Berlim, loucura de Bokassa no seu trono dourado, loucura de Idi Amin Dada com seu exército inspirado no King's African Rifles, regimento colonial britânico, loucura do Apocalyse now.
Uma diferença no entanto impõe-se. A scène noire de charbon dá um passo a mais no desvelamento da realidade: o espectador descobre que as duas figuras mais inquietantes, Wattmans e Angelotte, o Homem-monstro e o Homem-relógio, fazem parte de um grupo de cientistas. O antigo nome do Homem-relógio revela que este ainda tem pruridos de educação religiosa ou veleidades de antigo seminarista. Wattmans vai além. A morte de Angelotte, de forma irônica, aparece no texto através de datações de tipo cristão: “Je n’ai point d’autre déclaration à donner en pâture avant mon jour fixé au 10 du mois de Marie” (ibid., p. 49). Todos os que se deixaram levar por Angelotte, assim como o seu líder, serão mortos par “ces traîtres de conjurés de la Pentecôte” (ibid., p. 51). Por quem exatamente? A resposta cabe ao espectador/leitor.[24]
Uma cerimônia de bobos (profissionais) para bobos (que se ignoram como tal) é encenada sem maiores comentários: quem quiser nela acreditar só revela o seu grau de ingenuidade e a sua incapacidade de ler a realidade. O Homem-monstro, joelho ao chão antes de cair por terra de dor fingida, representa teatralmente o seu pesar diante do corpo morto do seu maior Adjuvante até então:

L’Homme - monstre: (écroulé sur un genou): Mort, que me fais-tu là, à quels sinistres baisers m’as-tu voué? Quelles noces tragiques veux-tu me faire fêter? Parle!… je ne suis plus qu’un chiffon de chair périmé. (Il titube jusqu’au corps de Angelotte) (ibid., p. 51).

SEIS MESES DEPOIS, UMA VIRADA INESPERADA E MAIS OUTRA AINDA

A História se repete duas vezes, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

Marx, Le 18 Brumaire de Bonaparte.

Virada inesperada para quem tem em mente a novela de Conrad ou o filme de Francis Coppola.
A scène gangue et boue (ibid., p. 51 - 52) passa-se seis meses depois dos funerais pomposos de Angelotte, o Homem-relógio. O espectador/leitor acha-se agora diante do imprevisto ou melhor: do inimaginável. Aliás, como em Césaire, a lama da mangrove (pântano, charco, mangue à beira-mar etc.) é o lugar primevo, fecundo de todas as metamorfoses e nascimentos inesperados. O Homem-monstro ama e põe-se a falar a linguagem do amor quase cortês. Ele confia ao seu escudeiro os seus novos sentimentos:

L’Homme monstre:
Ecuyer, comprends, réalise comme à mon tour j’appelle cette femme du haut de mon être effondré. Colette amie, rigoureuse Colette, c’est de vous que mon coeur gonfle. Et c’est vers vos mains nues que toute mon âme vient béamment rêver […..] Colette aimée. Ah si je pouvais, dans les bras de cette nuitée, boire tes lèvres par petites gorgées insensées, et être ivre mort de tes mains et de ton sein effréné…. (ibid., p. 52)

Interrompemos a citação que poderia continuar e parece sair de uma peça desconhecida de Claudel. Na cena seguinte, intitulada scène bleu de méthylène (ibid., p. 52-53), o Homem-monstro declara-se diretamente a Colette. A recusa desta provoca uma tirada digna do teatro barroco ou romântico. O espectador/leitor hesita, num primeiro momento, em levar a sério, ou não, essa nova linguagem. O exagero anuncia a paródia.
A cena seguinte, intitulada scène-mère (ibid., p. 53 – 54), entre o preposto e Colette elimina qualquer dúvida. Estamos diante de uma mistura de paródia, farsa rasgada e artifício de malandro. A lembrança das Fourberies de Scapin ou da commedia dell’arte italiana impõe-se. O preposto encarregado de pressionar a jovem sueca para ceder aos avanços do seu senhor todo-poderoso, confessa que colocou um sonífero no café do Homem-monstro, o que lhes dá 48 horas de descanso.
Na cena seguinte, dois dias depois, – scène cuivre et thé (ibid., p. 55 - 57 ) - prepara-se a execução dos rebeldes declarados culpados, amarrados a quatro postes. O discurso do ancião repete o velho Panoramix, criação de Uderzo e Goscinny. O leitor de histórias em quadrinhos reconhece várias frases entre as quais: “il faut arrêter cette galère avant que le ciel ne nous tombe sur la tête”. Duas palavras medievais voltam no discurso: “jouerie” e “menterie”. Mas o ancião morre, o que nunca acontece nas histórias de Astérix e Obélix, nem nas pantomimas jocosas dos jograis medievais.
A farsa continua com a entrada de Colette nua e aos gritos perseguida pelo Homem-monstro em pelo (sic). Colette ajoelha-se e pede pela vida do menino. A explicação do preposto é de farsa rasgada[25]: cansado de ser sodomizado pelo Homem-monstro, ele decidiu fazer o seu amo amar uma mulher (ibid., p. 56). Assim, foi ele que convenceu o Homem-monstro de que Colette o amava. Estamos diante de um conto para rir, digno dos Contes drolatiques, de Balzac[26].
Colette, numa longa tirada, volta-se contra o menino, “imposteur marmot”, como ousa ele “importuner un coeur fatigué”? Nova versão feminina, do cansaço atrasado e romântico de um Rolla, ela afirma: “je suis en ce monde périmé, venue quelques siècles trop tard”, frase patética que retoma as confissões de um dandy[27] do século XIX, antes de apelar para o mito degradado do andrógino primordial, dividido como as duas metades de uma laranja cortada ao meio: “tout homme fut créé inachevé: il faut une femme pour l’accomplir dans cette putain de vie” (ibid., p. 57). A resposta desabrida e vulgar do menino encerra o diálogo: “Nous sommes arrivés au merdier de la fin et à la fin de tous les haricots”. A cena se encerra com a última réplica de Colette que ordena em vão: “je t’en prie, fais de moi ta putain de femme” (ibid., p. 57).[28]
A penúltima cena da peça - scène noir de carbone (ibid., 58 - 59) - é o falso clímax. É a retomada da cerimônia da Revolução de 1792, aprendida na escola francesa, da Fête de l’Être suprême, celebrada pouco antes do Terror, a 20 prairial de l’an II ou seja a 8 de junho de 1794. Mas agora são multidões “imundas” que desfilam e vêm visitar a árvore: homens “com números” vão e vêm. O Homem-monstro acabou de fazer o seu último número para a plateia: perdoa o escudeiro que o acusou de pederasta, os reféns são libertados. Ele anuncia: “ce monde va changer de fesses” (ibid., p. 58).
Se o fim das grandes peças históricas de Shakespeare é sempre o fim do caos com a volta da linhagem legítima e o restabelecimento (mesmo temporário) da ordem no mundo, o fim da peça de Sony Labou Tansi faz-nos pensar: e se Marx estivesse enganado? A História se repete ainda uma vez, mesmo depois da farsa, uma derradeira vez, ainda mais assustadora.
Diante do Homem-monstro, surge agora o Homem H (com H maiúsculo) e anuncia uma nova reviravolta: “nous sommes venus protéger l’arbre du professeur Wattmans”. A árvore da época do ictiossauro[29] será transferida para a Califórnia. A criança que protesta será enforcada em cena sem mais delongas. Dois gigantes oferecem os seus braços que servem de forca improvisada para o menino que morre. Colette desmaia. As últimas palavras são do novo Senhor que tem nome de rap, Pick Mc Powell:

L’homme-H (à son adjoint): Quand madame aura retrouvé ses esprits, emmenez-la dans mon bureau. Je lui expliquerai comment le monde désormais va être actionné et par qui. (A l’attention des indigènes) NOus brûlerons la cervelle à tous ceux qui se comporteront ou bien agiront en dehors des normes attendues par notre lourde mission. Le monde n’a plus de temps à jeter. Rompez! (ibid., p. 61)

À GUISA DE CONCLUSÃO PROVISÓRIA | Autor prolífico, ao mesmo tempo dramaturgo e crítico, encenador e diretor de companhia teatral, representado com sucesso na cidade onde viveu na maior parte da sua vida (Brazzaville) e em festivais internacionais, herdeiro (ou bebedor noturno) de uma tradição ancestral e iniciador de um teatro popular, tudo isso faz de Sony Labou Tansi não só uma figura incontornável em África como uma espécie de homem encruzilhada do teatro contemporâneo na África. Praticamente ausente dos programas universitários brasileiros, nossa primeira preocupação foi apresentá-lo de forma sintética sem escamotear a sua complexidade. Para tal, escolhemos abordar uma única peça e escolhemos uma das suas últimas obras. Demos particular atenção às notas: por um lado, era preciso fornecer indicações precisas e por outro lado, sugerir novas pesquisas comparadas entre lusofonia e francofonia, textos clássicos e modernos, literários e não-literários. Deixamos de lado, no entanto, os incontáveis jogos de palavras que exigiriam uma análise ainda mais próxima do texto.
Enfim, imaginamos os dois textos sobre Aimé Césaire e Sony Labou Tansi interligados e articulados entre si, o que explica as inúmeras remissões entre as duas obras teatrais sobre o Congo, a do antilhano e a do congolês, sem que haja uma estrita filiação do mais velho para o mais moço, cada um dos poetas guardando a sua originalidade e a sua geo-poética particular assim como sua bagagem cultural.[30]
A obra de Césaire constrói-se sobre uma base cultural que só pode impressionar os seus leitores: conhecimento aprofundado das literaturas clássicas e modernas não só bom latinista como anglicista precoce que faz o seu mémoire de fim de curso na Ecole normale supérieure de Paris sobre os poetas negros americanos, dotado de enorme curiosidade e rigor intelectual que o leva a tomar nota de legendas em museus de Belas Artes ou de Ciências (Antropologia ou Etnografia sobretudo), leitor apaixonado de enciclopédias e dicionários antigos, livros de botânica e/ou zoologia assim como de História etc. Qualquer exploração atenta da sua intertextualidade, abre novos caminhos com resultados por vezes muito surpreendentes.
A bagagem de Sony Labou Tansi é a de um congolês nascido no espaço colonial belga e enraizado no espaço ancestral do Congo, consciente da diversidade étnica do seu país natal e da unidade supranacional, - obscurecida mas profunda -, do universo banto, formado na infância por missões estrangeiras (católicas e protestantes) e pela escola francesa, alfabetizado em Kikongo e aprendendo o francês em condições pelo menos duras, um autodidata apaixonado por literatura francesa e francófonas certamente mas que descobre o que chama la littérature sud-américaine (na verdade, latino-americana) através de traduções. Estas constituem sempre um filtro: quem trabalha com tradução sabe disso. As cartas escritas a Sônia Oliveira Almeida o confirmam: Sony usa a língua francesa para descobrir o mundo europeu e americano. Seus conhecimentos de geografia podem às vezes fazer sorrir: numa carta sobre uma possível viagem ao Brasil (partindo evidentemente de Paris) sonha que poderá sobrevoar o México ou os Incas.
Foi realizado em 1999 um filme documentário sobre Sony Labou Tansi que deveria ser analisado porque, de certa forma, é revelador ver o homem de teatro em ação, no contato com seus atores, com seus amigos congoleses e no estrangeiro, seu sorriso e sentido de humor, sua audácia e sua franqueza desarmante. Os centros de estudos francófonos brasileiros deveriam comprá-lo. O filme chama-se Le Diogène de Brazzaville, de 1999, de Léandre-Alain Baker e Ferdinand Batsimba. O filme foi distribuído igualmente com outro título Le hasard en se mouchant fit l’homme. Un film sur Sony Labou Tansi

Le Diogène de Brazzaville, 1999
Pays Concerné: République du Congo
Réalisateur: Léandre-Alain Baker, Ferdinand Batsimba
Pays du réalisateur: République du Congo
Avec: Sony Labou Tansi
Production: Huit Production (La), Tv10 Angers
Pays de production: France
 Distribution: La Huit Production
Diffusion:TV 10, C.F.I., Canal+Horizon, T.V.5
Durée: 52'
Genre: portrait
Type: documentaire
Festivals: Vue d'Afrique Montréal, Amiens, Fespaco, Namur, Milan, Lisbonne.

Ce documentaire raconte comment un jeune homme, Sony Labou Tansi, né à Kimwanza, un petit village des bords de la Loya, petit affluent du fleuve Congo, est devenu un écrivain de réputation internationale après la parution de son premier roman La Vie et demie aux Editions du Seuil en 1979. Cet homme de théâtre, modèle incontournable pour toute une génération, fut le témoin majeur de la vie sociale, politique et intellectuelle du continent africain, et un acteur important de la francophonie, jusqu'à sa disparition des suites du sida le 14 juin 1995.

O primeiro título do filme-documentário não deixa de ser interessante. A quantidade de anedotas legendárias sobre o filósofo cínico da Antiquidade – as mais conhecidas sendo: “procuro um homem” com a sua lanterna acesa em pleno dia nas ruas de Atenas ou “sai do meu sol”, resposta ao rei da Macedônia, Alexandre, que viera perguntar, ao homem semi-nu que vivia reduzido ao estritamente essencial no seu tonel, se precisava de algo – correspondem de certa forma à independência surpreendente do jovem dramaturgo e autodidata congolês que escreve uma carta aberta ao presidente Mitterrand sobre a política econômica e cultural francesa em relação à África mas não diz a sua sensibilidade exacerbada nem a sua preciência aliada a uma certa dose de ingenuidade de quem olha a realidade com olhos de criança. Desse ponto de vista, o segundo título - Le hasard en se mouchant fit l’homme – sob a forma quase de um enigma corresponde melhor à aparição desse meteoro imprevisto. Esperemos que a edição crítica do seu teatro venha à lume rapidamente.



II
O TEATRO DE AIMÉ CÉSAIRE: UNE SAISON AU CONGO

Ao poeta Daniel Maximin, amigo de Aimé Césaire e de Sony Labou Tansi, em homenagem.

INTRODUÇÃO | A bibliografia crítica sobre Aimé Césaire cresceu exponencialmente em 2013, ano em que se comemorou na África, na Europa, nas Antilhas e nas Américas o centenário do seu nascimento. Multiplicaram-se os encontros universitários na França, na Martinica, no Senegal, nas Américas. Uma importante atividade editorial acompanhou os colóquios, revistas, encenações, testemunhos sobre o artista e o homem político. Novas Atas estão ainda por sair sobre os encontros de Dakar, Fontevraud, Fort de France, Cérisy, Paris etc.
Dentre as muitas publicações sobre Césaire, seria necessário destacar três obras importantes: a) os dois volumes de Kora Véron e Thomas Hale, publicados em junho de 2013, intitulados Les Écrits d’Aimé Césaire. Bibliographie commentée (1913 – 2008)[31] analisando o conjunto dos textos do autor e sobre o autor até o ano de 2008; b) o ensaio de Daniel Maximin, Aimé Césaire, frère volcan[32] e no final do ano, c) a grande edição crítica da obra do poeta, dramaturgo e ensaísta, coordenada por Albert James Arnold[33]. Em 2015, saíram dois outros volumes sobre o conjunto da obra de Césaire, ambos publicados em francês, pela editora Königshausen & Neumann, de Würzburg (Alemanha): a) o de Ernstpeter Ruhe, intitulado Une oeuvre mobile. Aimé Césaire dans les pays germanophones (1950 – 2015) [34] e b) Césaire hors frontières. Poétique, intertextualité et littérature comparée, de minha autoria[35].
A produção teatral de Césaire marcou definitivamente o teatro contemporâneo de língua francesa, não só do ponto de vista textual como do ponto de vista da mise-en-scène. Da e para a representação das suas peças surgiram companhias teatrais e revelaram-se grandes atores negros[36].
Por que escolher Une saison au Congo e não uma outra peça? Por várias razões: a) Une saison ainda é a peça de Césaire menos estudada pela crítica; b) ela nos permite fazer dialogar a produção do poeta antilhano com a do congolês Sony Labou Tansi, seu principal herdeiro africano francófono (ser herdeiro, no caso, não significa simplesmente seguidor ou epígono) e c) foi objeto de uma encenação recente na França particularmente importante.
Note-se ainda de saída que Une saison possui, não três, mas quatro versões[37]: Seuil, 1966; Seuil, 1967, já com o discurso final do joueur de sanza das “duas garrafas”; Seuil, 1973; Désormeaux, 1976, esta coordenada pelo filho do poeta, Jean-Claude Césaire. As duas edições do Seuil de 1967 e 1973, foram consideradas “definitivas” sucessivamente pelo autor. Sem entrarmos em maiores detalhes, nossas citações, por comodidade, fazem referência à edição Seuil, 1967, embora indiquemos igualmente as páginas da edição crítica (Aimé Césaire, Arnold) em notas de pé de página.

A DOCUMENTAÇÃO DE CÉSAIRE SOBRE O CONGO E O KONGO

Je peux me situer dans une culture qui passe au moins cinq
frontières: je suis kongo.

Sony LABOU TANSI. Encre, sueur, salive et sang. Seuil, 2015, p. 83.

Césaire escreve a sua peça, na realidade, a partir de uma muito sólida tríplice documentação: a) histórica (documentação recente e antiga, abarcando o tempo da curta, média e longa duração), b) antropológica e c) linguística.


A DOCUMENTAÇÃO LINGUÍSTICA E LITERÁRIA | Um pequeno cartão postal bilingue, distribuído pela delegação de língua portuguesa num encontro internacional na Polônia ainda nos anos 50 do século passado, nos servirá de ponto de partida para compreender o extremo cuidado de Césaire com a documentação linguística e literária da sua peça sobre o Congo e a trajetória de Lumumba.
Em 1955, no festival internacional da juventude, em Varsóvia, a delegação portuguesa, composta sobretudo por africanos das então colônias[38], distribuiu aos participantes, um pequeno cartão postal ilustrado: de uma lado, uma gravura[39] com duas angolanas, torso nu, pilando juntas num grande pilão e do outro lado, um poema escrito em quimbundo, língua africana do grupo banto, acompanhado da sua tradução em francês. O tema do poema: uma mãe angolana chora o desaparecimento do seu filho, preso e enviado a São Tomé, porque fora encontrado na rua sem documentos pela polícia portuguesa. O nome do autor do poema (Mário Pinto de Andrade) não é indicado no cartão postal. Césaire, também presente à reunião de 1955, guarda o cartão e a canção reaparece, onze anos mais tarde, na sua peça teatral sobre Patrice Lumumba.
A iconografia do volume Césaire hors frontières, reproduz o cartão pertencente ao fundo Mário Pinto de Andrade da Fundação Mário Soares, de Lisboa.[40] O poema “Chanson à Sahalu” é com certa frequência reproduzido hoje em duas versões bilingues: em quimbundo, acompanhado da tradução em português (nas antologias de poesia lusófona africana) ou seguido da tradução em francês (aquela que foi distribuída aos delegados dos diferentes países em Varsóvia).
Entre o momento em que Césaire recebe e guarda o cartão nos seus papéis, e 1966, data da primeira publicação da sua peça sobre o Congo, o poeta veio a conhecer e frequentar mais de perto o intelectual angolano Mário Pinto de Andrade, em Paris. Este, exilado de Lisboa, tornara-se o secretário de Alioune Diop, na editora e revista Présence Africaine em 1955[41].
Como explicar a inserção do poema sobre Angola e São Tomé em Une saison? Duas razões são importantes: a) Césaire deseja evocar não apenas o Congo belga, nação artificial nascida da colonização que isolou/separou grupos étnicos, ignorando a geografia e as zonas culturais e b) busca ultrapassar fronteiras que dividem etnias, fazendo entrar na sua peça não só a antiga zona cultural banto (parte importante da África Ocidental) além de evocar o continente negro em toda a sua grandeza e miséria. Isso explica ainda, por exemplo, que Lumumba ele próprio canta, acompanhando-se numa guitarra, para sua mulher Pauline um poema em swahili.[42]
Num momento de melancolia, Lumumba dirige-se a Pauline que busca alertá-lo para os perigos e as traições que pressente:

Ce qui me vient à l’esprit est un air de tristesse…. Tu connais, Pauline, cette chanson swahili?
La lumière descend doucement, cependant qu’il chante sur la guitare.
T’appuierais-tu
même du doigt
sur un arbre qui pourrit?
Arbre pourrissant, la vie!
même du doigt
ne t’y appuie!
(Une saison, ibid., p. 73)

Swahili, lingala[43], quimbundo[44], kikongo[45]: de certa forma, diferentes línguas do Congo emergem na peça de Césaire nas canções do tocador de sanza e de outros personagens: além de Lumumba, as mulheres do bairro africano, o primeiro carcereiro, Mama Makosi, o coro, o hino do Katanga que faz secessão, os mercenários, até a voz ameaçadora da Guerra…
O poema-canção em quimbundo de Mário Pinto de Andrade reaparece portanto, onze anos mais tarde, na sua versão em francês, numa cena capital de Une saison: é uma maneira de fazer entrar mais um pedaço do antigo reino do Kongo, tal como os cronistas portugueses do século XVI o descrevem. A passagem, no texto césairiano, se insere no grande diálogo de Mokutu e Lumumba, dois antigos amigos e aliados, agora adversários. Patrice Lumumba, numa longa tirada, evoca o mapa doloroso da África, impresso na palma da sua mão:

…Tu y penses à l’Afrique, quelquefois? Tiens, regarde là! Pas besoin de carte épinglée au mur. Elle est gravée sur la paume de mes mains.
Ici, la Rodhésie du Nord, son coeur le Copper belt, la Ceinture de Cuivre, cette terre silencieuse, sauf de temps en temps, un juron de contremaître, un aboi de chien policier, le gargouillement d’un colt, c’est un nègre qu’on abat, et qui tombe sans mot dire. Regarde, à côté, la Rhodésie du Sud, des millions de Nègres spoliés, parqués dans les townships.
Là l’Angola! Principale exportation: ni le sucre ni le café, mais des esclaves! Oui, mon colonel des esclaves! Deux cent mille hommes livrés chaque année aux mines de l’Afrique du Sud contre du bon argent qui tombe tout frais dans les caisses vides de papa Salazar!
Y pendant comme un haillon, cet îlot, ce rocher, Sao Tomé sa petitesse bouffe du nègre que c’en est incroyable! Par milliers! Par millions! C’est le bagne de l’Afrique!
(Il chante):
Notre fils cadet
Ils l’ont envoyé à San Tomé
Parce qu’il n’avait pas de papiers
Aiué
Notre fils n’est pas revenu, notre fils
La mort l’a enlevé
Aiué
Ils l’ont envoyé à San Tomé
 (Une saison, Seuil, 1967, II, 9, p. 80 - 81)[46]

Lumumba canta a versão em francês do poema escrito pelo poeta angolano. O herói, depois de referir-se a Angola e a São Tomé (ilha no golfo da Guiné, lugar de degredo e punição no universo colonial português), resume o texto do Mário de Andrade agora sob forma de canção, citando o início e o fim do poema do outro. Segue-se a lista das tragédias de África: a África do Sul e outros países que ultrapassam largamente a região dos Bantos (Gana, Guiné, Senegal, Mali, Benin, Camarões, Togo etc.).
O testemunho de Daniel Maximin é interessante sobre os ensaios da peça: os atores de Christian Schiaretti, vindos de diferentes países africanos, emocionavam-se ao descobrirem canções dos seus territórios de origem. Na encenação de Schiaretti, fez-se uma retradução das canções para as diferentes línguas étnicas, realizada graças ao concurso do grupo do Burkina-Faso chamado a colaborar: este é provavelmente um dos pontos altos do espetáculo de 2013.[47]
Geograficamente, são evocadas na peça de Césaire as diferentes províncias dos dois Congos mais Cabinda e o Katanga, com as suas variadas etnias, entregues à tentação sempre presente de retorno ao tribalismo.
Do ponto de vista estritamente linguístico, é interessante notar que o nº de palavras dos diferentes idiomas bantos é muito mais elevado na peça de Césaire do que na peça de Sony Labou Tansi que analisamos a seguir. Virando rapidamente as páginas, encontramos sucessivamente: jikita, jibula (dois tipos de vestidos femininos, ibid., p. 15), Makosi (= femme puissante, nome da dona de um bar, ibid., p. 17), le matabich (ou seja o “matabicho”, a aguardente que se toma cedo, o que confirma a presença de palavras do português, ibid., p. 22) com o desenvolvimento de outro sentido figurado (o gorjeta ou suborno que ajuda a conseguir vantagens ilícitas), bwana Kitoko (ibid., p. 23, p. 26 “le petit roi blanc”), Uhuru (ibid., p. 29, ), kizola ko (= je n’accepte pas, ibid., p. 44), un Mbota Mutu ( ibid., p. 51), le malafu (le vin de palme, ibid., p. 64), la sanza (este belo instrumento de marcha que os angolanos chamam quissange e que aparece em pelo menos duas gravuras de Debret[48] sobre o Brasil do início do século XIX), o n’golo congolais (ibid., p. 94), Mahdi (ibid., p. 94), nzambi (ibid., p. 112), etc.


A DOCUMENTAÇÃO ANTROPOLÓGICA | A documentação antropológica aparece em vários passos. Está ligada a gestos e ritos que se referem ao nascimento, a antigas crenças, a textos iniciáticos.
No Parlamento congolês, na primeira sessão da Independência (ibid., I, 6, p. 25 - 32), o resumo do discurso histórico de Lumumba é acompanhado, na peça histórica de Césaire, pela evocação tradicional do nascimento de uma criança. Os termos políticos (“camaradas” ou “irmãos de combate”) são substituídos pelo sentido messiânico do filho prestes a nascer. O Congo torna-se ao mesmo tempo a Mãe dos seus filhos e o Filho, promessa de futuro, volta a ser grafado Kongo:

C’est le jour où le monde accueille parmi les nations
Congo, notre mère
et surtout Congo, notre enfant,
l’enfant de nos veilles, de nos souffrances, de nos combats.
Camarades et frères de combat, que chacune de nos blessures se transforme en mamelle!
Que chacune de nos pensées, chacune de nos espérances
soit rameau à brasser à neuf, l’air!
Pour Kongo! Tenez. Je l’élève au-dessus de ma tête;
je le ramène sur mon épaule
trois fois je lui crachote au visage
je le dépose par terre et je vous demande à vous; en vérité
connaissez-vous cet enfant? Et vous répondez tous: c’est
Kongo, notre roi!
Je voudrais être le toucan, le bel oiseau, pour être à travers le ciel, annoceur, à races et langues
que Kongo nous est né, notre roi! Kongo, qu’il vive!
Kongo, tard né, qu’il suive l’épervier!
Kongo, tard né, qu’il clôture la palabre!
(Une saison, ibid., p. 28 – 29)

Interrompemos a citação que poderia continuar ainda: o discurso de Lumumba, na peça Une saison, ultrapassa o nível simplesmente histórico/político e alcança o simbólico, reunindo o Congo (RDC e RC, ou os Congos belga e francês) do século XX e a evocação mítica do reino do Kongo, fundindo e reinterpretando crenças ancestrais. Outras passagens, na peça de Césaire, realizam essa mesma fusão e o leitor facilmente saberá identificá-las.[49]

Uma personagem, além do próprio Lumumba, funciona como comentador, ora irônico, ora lírico, ora sarcástico: é o tocador de quissange (“le joueur de sanza”). Misto de contador de histórias, de fool shakespeariano, de consciência crítica ou ainda de feiticeiro tradicional, o músico-griot atravessa todo o texto. É dele o epílogo final na versão já de 1967, cantando a balada dos tempos ambíguos ou das duas garrafas:

Cependant que le rideau tombe lentement, le joueur de sanza s’avance et chante en guise d’épilogue, la ballade des temps ambigus, ou des deux bouteilles.
Le sorgho pousse
L’oiseau quitte le sol
pourquoi refuser à un homme
le droit de changer?

Refuse-t-on à manger
à celui qui a faim?
Pourquoi contrarier un pays
que tient une soif:
celle d’espérer?
Mais minute! Il ne faut pas s’emballer.
Un début n’est qu’un début
et les parties, c’est non pas à moitié,
mais entières qu’elles se jouent.

Toi, donc, si tu pousses
il faut que droit tu pousses
et si tu quittes le sol
que ce soit pour planer.

Toute saleté déjoue la blancheur d’une bouteille
Maintenant que tu prends de la bouteille,
point de bouteille obscure!
Ce n’est point enfantillage
Blanche bouteille et bouteille blanche!
Ici finit mon babillage.
(Une saison, III, 7, ibid., p. 115 - 116)


A DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA | Por fim a documentação histórica sobre a qual se constrói a peça é extremamente densa, articulando, de forma sutil, acontecimentos antigos e recentes. A cada vez que se aprofunda a pesquisa, o que parecia simples detalhe sem importância ou fruto da imaginação, ganha forma, densidade e complexidade. Poderíamos multiplicar os exemplos. Césaire, ao traçar através dos seus personagens em ação, o seu panorama congolês, reúne elementos vindos da longa duração e da breve duração, segundo a lição de Fernand Braudel.[50] Ao lado da história tradicional, de datas e acontecimentos precisos, dita “fatual”, ou seja, das “oscilações breves, rápidas, nervosas” e da história cíclica e conjuntural (história econômica e social) caracterizada por fases mais lentas, Braudel introduz a história quase imperceptível e que escapa ao olhar, mesmo atento, do observador, interessando-se pelos fenômenos extremamente longos (evolução das paisagens, a repetição imemorial da transumância, o homem na sua relação com o meio, a emergência inesperada de crenças ancestrais, aparentemente desaparecidas ou esquecidas).
Já adiantamos que os nomes dos personagens históricos são levemente modificados, embora perfeitamente identificáveis: o rei Baudoin torna-se Basílio; o general Jansenss, Massens; Mobutu, Mokutu; o presidente Joseph Kasa-Vubu, Kala-Lubu; Moïse Tshombé, Tzumbi[51]; etc. E há os que não mudam de nome: Patrice Emery Lumumba; Pauline Lumumba; Dag Hammarskjöld; Okito; M’Polo: com exceção de Pauline, todos morrem em cena, são assassinados ou desaparecem pouco tempo depois em acidente estranho.[52]

 
ENTRE BAUDELAIRE E RIMBAUD: LA FÊTE QU'ASSAISONNE ET PARFUME LE SANG E UNE SAISON EN ENFER | O nome da peça de Césaire remetendo ao mesmo tempo a um alexandrino saído de um poema de Baudelaire, “Le Voyage”, publicado em Les Fleurs du mal (1861) e ao título de um volume de poemas em prosa de Rimbaud[53] (1873), é um verdadeiro achado: conjuga conotações fundamentais, ao mesmo tempo, de lirismo e massacre, desejo de evasão e revolta. Ganhou uma variação no volume de Présence Africaine de 1967, num artigo de Frédérique Dutoit, intitulado “Quand le Congo ne sera qu’une saison que le sang assaisonne[54]. Na verdade, a frase surge do núcleo central do segundo ato de Une saison: depois do massacre dos Balubas pelos Luluas, numa terrível guerra tribal logo depois da Independência, Lumumba decide fazer face e celebrar a tomada de Bakwanga, apesar do massacre entre etnias e dos mortos.
O poeta que, segundo sua mulher Suzanne Roussi[55], nunca soube dançar e que tinha dois pés esquerdos, compõe uma belíssima cena lírico-trágica sobre o dançar em que a dolorosa presciência do desastre e da morte próxima já se anuncia. Numa espécie de tango (ou cha-cha-cha) celebrando a vida e a morte ao mesmo tempo, Lumumba dança com uma rapariga Lulua, Hélène Bijou, na penumbra rosa e verde do bar “Chez Cassian”. Citamos apenas a conclusão da cena:

Lumumba:
C’est bien, Bijou! voilà dansée la danse de ma vie!
Bijou, quando je ne serai plus;
quand je me serai défait, comme dans
le ciel nocturne, l’aveuglant météore aveugle,
quando le Congo ne sera plus qu’une saison que le sang assaisonne
continue à être belle
ne gardant du temps épouvantable
que les quelques gouttes de rosée qui rendent plus émouvant d’avoir traversé l’orage
l’aigrette du colibri.
Allons, amie, point de tristesse: dansons jusqu’à l’aube et
me donne le coeur à marcher
jusqu’au bout de la nuit.
(Une saison, II, 6. Seuil, 1967, p. 68)

Hélène Bijou, da etnia Lulua (etnia que massacrou os Balulas, os chamados “judeus negros” da África), guardará desse tempo “épouvantable” apenas a “aigrette du colibri”, ou seja, a minúscula coroa de penas irisadas do colibri.
Este pássaro aliás é um tema importante na poesia de Césaire. Colibri é uma figura popular nos contos tradicionais antilhanos: depois de morto e decepado pelos seus inimigos, revive e volta para cobrar todas as suas penas perdidas e dispersadas. Césaire escreve, na revista Tropiques, sobre o herói popular um ensaio importante juntamente com René Ménil[56] e fará um dos seus mais belos poemas sobre Colibri, símbolo cifrado de resistência e de vitória futura.[57]
Publicada cinco anos após a morte de Lumumba, as primeiras leituras da peça Une Saison provocaram verdadeira comoção social em Bruxelas, com piquetes à porta do teatro e polícia nas ruas.[58] Os primeiros leitores e os espectadores da peça, inclusive da primeira encenação oficial em Paris, tinham ainda na memória a fotografia que correra mundo: Pauline Opango, viúva de Lumumba, seios nus, vestida apenas com um pagne tradicional amarrado à cintura, caminhando nas ruas de Kinshasa entre uma turba de homens prontos a humilhá-la, assim como a foto de Lumumba preso, num carro de assalto, cercado de militares, com o olhar esgazeado, o rosto voltado para cima porque um soldado o agarra pelos cabelos.


INTERTEXTUALIDADES | Como sempre em Césaire, a análise, mesmo rápida, da intertextualidade pode tomar caminhos aparentemente surpreendentes. A intertextualidade abarca jogos com diferentes tipos de textos, do próprio autor ou de autores outros, o que nos leva a considerar intra- e intertextualidade propriamente dita.
Na intra-textualidade césairiana, um leitor atento perceberá facilmente certas constantes nas peças de Césaire. O próprio poeta destacaria, numa entrevista, as relações entre Christophe e Lumumba: “C’étaient tous deux des poètes (…) des visionnaires très en avance sur leur époque. Pas plus politicien l’un que l’autre, lancés derrière un idéal très noble, ils perdent contact avec une réalité qui ne pardonne pas”.[59] No entanto, um leitor atento verá ainda facilmente que:

a) o diálogo entre Lumumba e sua mulher Pauline retoma, de certa forma, o diálogo entre Christophe e Mme Christophe, a figura feminina vendo mais longe e mais claro que o herói, confiante na sua utopia;
b) o tocador de quissange corresponde ao mesmo tempo ao comentador inicial da peça La Tragédie du Roi Christophe e a Hugonin, este o bufão autoproclamado da corte real e também face inquietante de Baron Samedi, o loa da morte do vodu haitiano;
c) a cacofonia do senado congolês em Léopoldville (Une saison, I, 11, p. 42 - 43) repete a confusão cômica e patética da assembleia de Pétion, na República do Sul que se opõe ao reino do Norte em São Domingos (aliás Haiti);
d) palavras que aparecem pela primeira vez em Une saison reaparecem na peça seguinte de Césaire, Une tempête, reescritura da última peça shakespeariana, como, por exemplo, o grito final de Caliban vitorioso diante de um Prospero diminuído e repetitivo: Uhuru e
e) do ponto de vista das imagens, apesar de uma adequação sempre atenta com a geografia, zoologia e/ou botânica da região em causa (Haiti, Congo e seus rios, Antilhas), há articulações recorrentes entre gestos e sobretudo animais simbólicos que perpassam toda a obra césairiana. Esta é finalmente a intratextualidade mais sólida que se dá no nível mais profundo, propriamente simbólico: é essa trama simbólica que dá a coerência de uma poética.

Na intertextualidade propriamente dita, buscamos mostrar em nosso Césaire hors frontières como textos aparentemente improváveis - a épica portuguesa, a leitura de W. H. Auden ou da Bíblia, referências ocultas a Dante, ensaios eruditos de antropólogos africanistas, a lembrança da Kundalinî saída do Mahabharata hindu, uma resposta lúdica a André Breton a partir de uma publicidade de tabaco para cachimbo do Canadá francês, as telas de Wifredo Lam, além de topônimos do Rio de Janeiro ou de Salvador da Bahia (sic), etc. - são referidos na trama textual dos poemas.[60]
Sem desejar alongar muito a questão, lembramos aqui, apenas a título de exemplo, três textos – aparentemente surpreendentes – que dialogam conscientemente em Une saison au Congo: Calderón de La vida es sueño, mestre Eckhart e Saint-John Perse. Por outras palavras: o teatro barroco espanhol, a Idade Média renana e a poesia das Antilhas francesas no século XX.
A. Tshitungu Kongolo, professor associado da Université de Lumumbashi (RDC), responsável pelo estabelecimento do texto, notas e comentários de Une saison, para a edição crítica dirigida por James Arnold, engana-se provavelmente quando, em nota em pé de página (ibid., p. 1123) explica a mudança do nome do rei dos Belgas de Baudoin para Basile, referindo Basílio o Grande que, juntamente com Cassiano e Bento, foram os legisladores do monaquismo da Alta Idade Média. Acrescenta ainda o crítico congolês que o Rei Baudoin fazia questão de exibir e reivindicar a sua fé católica. A explicação de A. Tshitungu Kongolo, em verdade, não explica muito: nada no texto de Césaire sugere qualquer referência a um monge eremita dos primórdios do cristianismo oriental. Basílio, no entanto, é o nome do terrível rei da Polônia, pai de Sigismundo, que encerra o seu filho desde o seu nascimento numa torre porque um oráculo anunciara que Sigismundo não podia ser livre por ser de índole perversa. Ou seja: Basile (pseudônimo do rei Baudoin) remete à obra-prima de Calderón, La vida es sueño (1635). O significado desta peça é o de uma aprendizagem do poder. Aprendizagem dupla: do pai e do filho. Segismundo aprende a ser rei com o erro do pai que o renegou e impediu-o de ser livre e tornar-se responsável; Basílio aprende com o filho que não soube ser rei. A indecisão de Basílio, de Calderón, é a indecisão de Baudoin, Rei dos belgas, pai simbólico de filhos coloniais e do Congo. A recusa em acreditar que o filho (o Congo) possa ser livre é a recusa do governo de Bruxelas (banqueiros e militares, ministros belgas e do seu rei).
A amplitude da leitura bíblica é sempre surpreendente em Césaire[61], mas primeira citação do longo discurso do diplomata sueco Dag Hammarskjöld (secretário geral da ONU, personagem sem mudança de nome) sai de um poema de Saint-John Perse[62], prêmio Nobel da literatura em 1960:

Je t’ignore litige, et mon avis est que l’on vive!
Avec la torche dans le vent, avec la flame dans le vent,
Et que tous hommes, en nous, si bien s’y mêlent et s’y consument
qu’à telle torche grandissante s’allume en nous plus de clarté… Irritable la chair où le prurit de
l’âme nous tient encore rebelles
Et c’est un temps de haute fortune, lorsque les grands aventuriers de l’âme
sollicitent le pas sur la chaussée des hommes, interrogeant la terre entière,
sur son aire, pour connaître le sens de ce très grand désordre, interrogeant
le lit, les eaux du ciel et les relais du fleuve d’ombre sur la terre
peut-être même s’irritant de n’avoir pas réponse…[63]
(in Une saison, I, 12, ibid., p. 45 - 46)

Ninguém aparentemente poderia ser mais distante de Césaire, descendente de escravos negros da Martinica, de Saint-John Perse, filho de uma linhagem aristocrática de békés, nascido em Pointe-à-Pitre, na Guadalupe. E no entanto, ambos se encontram na memória de uma infância e de um tempo/espaço antilhanos, e sobretudo na concepção de que a poesia ao utilizar o tesouro da imaginação, é instrumento autêntico de conhecimento[64].
Enfim, o embaixador sueco, enviado pela ONU, ao Congo recita, no seu discurso, o texto do teólogo e filósofo dominicano dos séculos XIII - XIV, Mestre Eckhart (c. 1260 – c. 1328), conhecido como o primeiro dos místicos renanos, buscando explicitar o seu modelo ideal do homem justo e neutro:

Ceux […] qui sont complètement sortis d’eux-mêmes; qui ne cherchent rien au-dessus ni au-dessous, ni à côté d’eux-mêmes; ceux qui ne poursuivent ni bien ni gloire, ni agréemnt ni plaisir, ni intérêt, ni sainteté ni recompense, mais se sont dégagés de tout cela. (in Une saison, I, 12, ibid., 46 - 47).

Mas resta saber se este ideal de liberdade transcendental, longe dos conflitos da terra pode ser seguido por chefes, políticos e diplomatas. O discurso do homem “neutro” e “justo” recebe um desmentido brutal na peça de Césaire: o fracasso de Dammarskjöld na peça precede o fracasso de Lumumba. Mas o feixe de textos religiosos pelos quais se guia esse protestante culto faz parte da intertextualidade da peça.


MORTE E METAMORFOSE: PATRICE LUMUMBA | A terceira peça de Césaire introduz um elemento novo. Até então, no seu teatro, havia uma oposição, por vezes discreta mas constante: herói deitado/vencido fertilizando com seu sangue a terra vs herói de pé; herói agrário vs homo faber; grão enterrado na terra vs semente da pedra. Este era essencialmente o esquema nuclear do Roi Christophe com a oposição Metellus vs Cristophe.
Essa oposição desaparece totalmente em Une saison. Não há quem se oponha a Lumumba.
Não é fácil imaginar o choque de 1966 provocado pela nova peça: o Congo é independente e Lumumba, 1º ministro, em 1960; tenta combater a secessão do Katanga; é destituído em 1961 e assassinado no mesmo ano e apenas cinco anos depois, Seuil publica a primeira versão de Une saison, posta em cena em Bruxelas já em março de 1967 por Rudi Barnet. Seguem-se os espetáculos de Veneza e a temporada de Paris, por Jean-Marie Serreau.
Consideremos portante Lumumba na sua diferença como personagem césairiano. Sua morte em cena é o lugar de uma metamorfose simbólica.
Lumumba, desde o início, é visto pelos demais personagens como aquele que está sempre em movimento, agitado e febril, voando de um lado para outro. Não tem nada de Colibri. Mais do que pássaro, ele é asa que voa. Na grande cena 2 do ato III, ele dirá, frente à multidão, ao tocador de quissange que lhe quer oferecer a pele do leopardo, símbolo do poder:

Un jour dans la brousse, j’ai rencontré mon âme sauvage: ele avait forme d’oiseau! Et mieux qu’une peau de léopard, c’est, élan et empan, d’un oiseau que tu ferais mon signe! L’oeil, le bec! Pour entrer aux temps neufs, de l’ibis la remige mordorée! (Une saison, ibid., p. 93)

Lumumba é profeta, anuncia e vê o futuro. Esta presciência dos tempos futuros coexiste, aliás, com uma certa cegueira sobre a situação atual; sua mulher percebe melhor do que ele a traição em marcha e a duplicidade dos que o cercam. Esse vidente parcialmente cego fala muitas vezes por imagens e alegorias em que recita mitos ancestrais. Já fizemos anteriormente alusão ao seu grande diálogo com Mokutu. Lumumba, depois de descrever a África gravada na plama da sua mão (exemplo de geografia corporal em que o herói contém todo o Continente) apela ao (falso) amigo afirmando que a neutralização pretendida por Mokutu provocaria a morte de dois animais simbólicos: “l’oiseau arc-en-ciel” e “le double serpent”. O texto parece misterioso e esotérico. Recordemos a passagem inicialmente:

Mokutu, sais-tu ce que tu t’apprêtes à faire? Le petit carré de lumière au haut de la cellule du prisonnier, tu tires là-dessus le rideau d’ombre! Le grand oiseau arc-en-ciel, qui visite le plafond de cent cinquante millions d’hommes, le double serpent, qui de part et de l’autre de l’horizon se dresse et s’obstine pour conjoindre une promesse de vie, une attestation de vie et de ciel, tu l’abats d’un seul coup de bâton et vois, sur le continent tout entier, tomber les lourds plis écailleux des maléfiques ténébres! (Une saison, II, 11, p. 82)

Mokutu lhe responde brutalmente:

Je ne te suivrai pas dans ton Apocalypse!
Je n’ai pas à répondre de l’Afrique, mais du Congo!
Et j’entends y faire régner l’ordre, comprends-tu? L’ordre!
(Une saison, II, 11, p. 82)

Já analisamos com mais vagar esse estranho par que aparece tantas vezes na obra de Césaire: o pássaro e a dupla serpente[65]. Ele está presente, de diferentes maneiras, não só no final do Cahier d’un retour au pays natal[66] em que a serpente sobe como “lambedor do céu”, como em outros poemas e nas peças teatrais. Um e outro ligam-se ao loa Damballah do Vodu haitiano e, de maneira mais larga, à noção do Dan africano.
Um dos aspectos mais interessantes de Une saison faz com que a peça possa ser lida por Antilhanos e Africanos que nela reencontram seus mitos e/ou crenças de origem. Uns e outros compreendem que a pretendida “neutralização” política de Lumumba, seu afastamento imposto, sua prisão (e depois sua morte) correspondem a uma diminuição da energia cósmica: o imobilismo estéril e maléfico daí resultante explicando-se, do ponto de vista mítico, como um ataque ao grande deus-serpente Dan e/ou ao poder do loa Damballah.
A cena da morte de Lumumba por M’Siri é particularmente importante: um é o pássaro que inventa o futuro, manifestação do Dan; o outro, a hiena, animal do passado que come os mortos. M´Siri enfiando a baioneta no corpo do prisioneiro, pergunta: “Alors prophète, qu’est-ce que tu vois?” (ibid., p. 110). Lumumba, agonizante, responde afirmando a sua presença nos campos e nas pastagens, nos montes e nos vales, e como vidente anuncia o futuro:

Oh! Cette rosée sur l’Afrique! Je regarde, je vois, camarades, l’arbre flamboyant, des pymées de la hache, s’affairent autor du troc précaire, mais la tête qui grandit, cite au ciel que chavire, le rudiment de l’écume d’une aurore.
(Une saison, III, 6, p. 111)

Lumumba se transforma assim ao morrer. Dialeticamente, para que o vencido seja vencedor, ele deve transfigurar-se, ou seja, mudar de essência e de forma: o herói que voava no momento de cair e morrer, volta à terra. Sua cabeça, como árvore, cresce ainda mais e pela primeira vez, Lumumba vê-se como árvore.
 Pauline avança e recita uma belíssima estrofe ao mesmo tempo surrealista e poética sobre Lycaon (Licáon ou Licaonte em português), o mítico rei da Arcádia que insulta os deuses do Olimpo ao devorar e fazer servir carne humana à mesa, sendo punido por Zeus que o transforma em lobo. Será o primeiro lobishomem. Para Paulime é o momento do “alfabeto do medo” e ela apela à “copulação dos astros e dos desastres”. Segue-se o discurso sibilino do tocador de quissange suplicando ao Nzambi, o deus supremo dos bantos, que coma com medida e moderação.[67] Assim, no texto césairiano, o canibalismo cruel não só dos homens como dos deuses têm uma versão sintética em que lembranças greco-latinas e crenças africanas se misturam e se respondem.
O enviado da ONU evoca o Cristo, os chefes congoleses clamam suas boas intenções ou a sua moderação, Mokutu anuncia que o nome de Lumumba será dado a um boulevar no que foi outrora Léopoldville e uma estátua será erguida à sua memória anunciando “une nouvelle saison” (Une saison, ibid., 115).
Na versão de 1967, o tocador de quissange canta a canção das duas garrafas, que poderia ser traduzida em português como a dos dois copos com água pelo meio: estão vazias ou cheias? Mas a partida se joga sempre com duas garrafas: “blanche bouteille et bouteille blanche”. Se lembrarmos da expressão corrente em francês, já utilizada desde o século XVIII pelo menos, blanc bonnet ou bonnet blanc[68], para apresentar como diferentes, coisas ou pessoas no fundo iguais, sabemos o que o “babillage” do tocador de quissange nos coloca, enquanto leitores e espectadores, diante de um final aberto e crítico, em que cabe a cada um interpretar o que leu ou viu.
O final da peça césairiana levanta um problema complicado de representação. O que fazer depois da morte do herói em cena? As diferentes versões da peça oferecem assim um largo leque de escolhas[69] ao metteur-en-scène, o que nos permite agora considerar de mais perto o espetáculo de Christian Schiaretti, de 2013.


A RECEPÇÃO DO ESPETÁCULO DE CHRISTIAN SCHIARETTI, NO TNP (THÉÂTRE NATIONAL POPULAIRE, 2015) | Une saison au Congo, o drama histórico de Césaire sobre o Congo e Patrice Lumumba, com grande número de personagens, é bastante longo em qualquer das suas diferentes versões e levanta vários problemas evidentes para a sua encenação, mesmo numa cena nacional subvencionada. Provavelmente, como no teatro de Shakespeare, a peça nunca é, e nunca será, objeto de uma montagem em que se representa o texto integral sem cortes por vezes mesmo invisíveis. A complexidade e própria “mobilidade” histórica do texto assim o indicam e haverá forçosamente uma leitura do metteur-en-scène que seleciona camadas de significação deixando de lado outras, menos exploradas ou, por ventura, consideradas menos atuais.
Para quem lê os jornais, o número elevado de intervenções dos diferentes governos franceses (de esquerda ou de centro-direita) naquilo que se chama hoje ironicamente a “Françafrique” (ou seja a África de língua francesa), apenas nos últimos 20 anos, é bastante revelador: contam-se facilmente mais de 20 intervenções militares, entre pequenas e grandes, rápidas e longas, solitárias ou solidárias (ou seja, a França juntamente com outros países europeus). A frequência das intervenções armadas forneceu provavelmente um dos fios condutores à montagem de Schiaretti. A sua encenação, seguindo a lição de Brecht, privilegia a luta entre facções, as reviravoltas dos grupos em conflito e as ingerências político-militares e econômicas. Um caco, introduzido, na representação de 2013, e retomado na temporada de novembro em Sceaux, articula a peça com o famoso discurso de Nicolas Sarkozy em Dakar, de 2007.[70]
A recepção da peça pelos críticos e público foi de certa forma preparada através da realização de um Cahier du TNP, o de nº 12, do qual constam uma série de textos:

a) “Aimé Césaire”, por Daniel Maximin, p. 3;
b) “L’Histoire hissée à la hauteur des mots, regard de Daniel Maximin” (trecho do ensaio Aimé Césaire, mon frère volcan, a sair em junho de 2013 pelo Seuil), p. 4 -13;
c) “Mon théâtre, c’est le drame des nègres dans le monde moderne”, citação da entrevista de Césaire ao jornal Le Monde no momento da criação da peça, a 7 de outubro de 1967, p. 15 – 19;
d) “Césaire, Vitez et la Comédie-Française”, pequeno texto de Jacqueline Leiner no programa da Comédie-Française quando a peça La Tragédie du Roi Christophe entrou oficialmente para o seu repertório, p. 20 – 21;
e) “La mort du héros. Trois exemples dans l’oeuvre dramatique de Césaire”, com citação de passagens de Et les chiens se taisaient… (p. 22 – 23), La Tragédie du Roi Christophe (p. 24 – 25), Une saison au Congo (p. 26 – 27);
f) Citação de trecho de um poema de Césaire, “Le temps de la liberté”, saído do volume Ferrements. Seuil, edição de 1994;
g) “Congo, une histoire. Les années mouvementées de l’Indépendance, 1960 - 1965”, passagens extraídas do livro de Reybouk, David van. Congo, une histoire. Actes du Sud, 2012, p. 30 - 31;
h) “Lumumba à son épouse”, carta integral de Lumumba, já na prisão, a Pauline, de 30 de janeiro de 1960, p. 32 -33;
i) “L’heure de nous-mêmes a sonné”, excertos do ensaio-panfleto de Césaire em que anuncia desligar-se do PCF, Lettre à Maurice Thorez, Présence Africaine, 1956, p. 34 - 35;
j) a reprodução de página manuscrita com o poema “Mot-macumba” e sua transcrição, do volume moi, laminaire… Seuil, 1994, p. 36;
k) um resumo assinado por Daniel Maximin sobre “Césaire poète”, p. 37, seguido de uma passagem do Cahier d’un retour, p. 39; “1941: le regard de André Breton”, p. 40 - 41; “1945: le regard de Suzanne Césaire, p. 43; “Césaire poète: regard sur Wifredo Lam”, p. 45; “…regard sur Léopold Senghor”, p. 46; “… regard sur Léon Damas”, p. 47; “… regard sur Frantz Fanon”, p. 48.

O dossier, didático e muito bem feito, é uma excelente introdução à obra de Césaire nos seus diferentes aspectos para o grande público. Foi evidentemente feito em colaboração com Daniel Maximin.
Sobre o espetáculo de Christian Schiaretti consultamos vários dossiers da imprensa[72]:

a) os jornais franceses nacionais (Le Monde: Fabienne Darge e Odile Quirot), Le Figaro (Armelle Héliot) , Le Nouvel Observateur (Andrea Genovese), Les Inrocks (Fabienne Arvers), AFP mondial, Les Trois coups (Trina Mounier), Les échos (Philippe Chevilley);
b) os jornais e sites culturais de Lyon ( Le Progrès (Antonio Mafra, mais uma entrevista com Marc Zinga, ator que incarna Patrice Lumumba), Le Petit bulletin (Antonio Mafra), Le Tout Lyon (Antonio Mafra), Lyon plus (Guillaume Beraud), Lyon 1ère (Gérald Bouchon), Lyon capitale (Caïn Marchenoir), IC Couleurs (sem assinatura), La Tribune de Lyon, Le Dauphiné, Hétéroclite ;
c) alguns jornais africanos (Les Dépêches de Brazzaville (Rose-Marie Bouboutou) e
d) outras publicações (Le Quotidien du médecin (Michel Cavalca).

Enfim, falta-nos ainda consignar que assistimos à encenação de Schiaretti na sua temporada no Théatre de Gémeaux, em Sceaux, no outono de 2013 (temporada de 8 - 24 de novembro), o que nos permite acrescentar algo à recepção da encenação.
Do ponto de vista pessoal, a encenação nos pareceu absolutamente magnífica e coerente a partir da linha de leitura adotada. No entanto, a solução de substituir o personagem do tocador de quissange (le joueur de sanza) por uma pequena orquestra ao vivo (piano, baixo, percussão e cantora) tocando música afro-cubana ou jazz, presente durante todo o espetáculo, se por um lado deu força ao coro e ritmo à ação, por outro lado eliminou não só uma referência intratextual de Césaire como igualmente uma referência cultural africana importante.
A retradução das canções em diferentes línguas da África Ocidental causou evidentemente impacto no público de origem africana. Se pensarmos que no espetáculo de Jean-Marie Serreau, de 1967, o joueur de sanza era representado pelo mesmo ator que anteriormente tinha feito o rei Christophe - Douta Seck - percebemos a importância que foi reconhecida à personagem pelo metteur-en-scène.
O griot oficia, há séculos, como comunicador tradicional em toda África ocidental e o quissange é ao mesmo tempo o instrumento daquele que caminha (na floresta ou na savana, à beira dos rios ou das lagunas) e do contador noturno de histórias ao pé da fogueira. Le joueur de sanza, imaginado por Césaire, era ao mesmo tempo um griot e um músico: estava ancorado fundo numa realidade cultural africana.
Ainda hoje a tradição dos griots está viva e atuante: o melhor exemplo disso é o diretor, ator e contador burkinabé, Hassane Kassi Kouyaté, atual diretor da nova cena nacional da Martinica, Tropiques - Atrium: nascido em 1964, numa linhagem de griots mandingas desde o século XIII, é o filho do ator mítico de Peter Brook, Sotigui Kouyaté (1936 – 2010)[73]. O que significa isso? Se por um lado, a pequena orquestra de Schiaretti foge ao “folclórico” ou o evita, segundo um dos críticos franceses, por outro lado, o folclórico no caso só existe para quem não tem consciência histórica de uma função secular africana. Gostaria de pensar que se Une saison fosse montada um dia na Martinica ou no Brasil, o tocador de quissange não fosse eliminado como personagem. [74]
Uma última observação ainda pessoal: o papel de Pauline Lumumba é mais importante do que o simples número das suas cenas poderia fazer supor. Ela faz o contraponto ao marido e anuncia/profetiza o que virá: a traição. É ela que num texto final, bastante opaco, reúne simbolicamente o canibalismo dos deuses ao canibalismo dos homens. O problema que se põe, ao encenar a peça é: como fazê-lo ressaltar isso para o público que ignora o texto? Criando uma cena ou uma presença muda?
A encenação de Schiaretti tem pontos altos: a sua Une Saison au Congo constitui uma aventura baseada na troca e no trabalho coletivo. Mais de trinta atores em cena: nove de origem africana, de diferentes etnias, aliás com alguns já vivendo há anos em Bruxelas; seis saídos do coletivo burkinabé Béneeré; três da troupe regular do TNP; dois da Maison des comédiens du TNP e quinze figurantes recrutados na grande Lyon para uma coralidade cenográfica. Isso significou uma certa diversidade de sotaques (belga, africano etc.)
A presença ao lado do director de um escritor amigo de Césaire, Daniel Maximin, -engajado ao mesmo tempo numa obra de criação pessoal, critico/editor respeitado ligado à defesa e ilustração dos poetas da negritude (Damas, Suzanne Césaire, etc.), ainda conhecedor da relação de Césaire com os seus encenadores anteriores (Jahn e Jean-marie Serreau) -, assegurou a Schiaretti uma certa liberdade em relação ao texto publicado (aliás bastante móvel, como sabemos) permitindo-lhe inscrever a obra no tempo contemporâneo ao memso tempo da África e da França dos nossos dias.
O trabalho com o coletivo africano nasceu em duas etapas. A proposta inicial surgiu do encontro entre Schiaretti e o grupo burkinabé[75] Béneerée em agosto de 2012. Um segundo encontro, de março de 2013, ocorreu na capital, Ougadougou. A proposta foi enriquecedora para ambos: a) por um lado, o coletivo permitiu a retradução das canções recolhidas em tradução e/ou escritas por Césaire para as línguas de diferentes etnias; b) por outro lado, os atores convidados puderam adquirir outras bases de trabalho, as de uma companhia nacional francesa (formação técnica essencialmente); c) por fim, melhor integração dos diferentes grupos num conjunto homogêneo e diversificado. Desse trabalho nasceu a proposta de abordar o texto de Aimé Césaire na sua dimensão política e histórica assim como a sua estrutura de dramaturgia.
Representado num palco nu para o qual os atores levam, quando necessário, accessórios vários (cadeiras, mesas, garrafas etc.), dentro de um grande círculo cuja circonferência é pintada de branco sobre o chão[76], tendo ao fundo à esquerda a pequena orquestra de quatro músicos ritmando a ação e uma espécie de balcão elevado de onde falam os dignatários antes de descerem à arena, o cenário muito simples e eficiente, ajudado por um excelente jogo de luzes, oferece uma leitura inteligente e direta dos diferentes espaços evocados. O espetáculo de Schiaretti é um modelo de concisão e coerência, capaz de sustentar e fazer passar a poesia do texto de Césaire.

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NOTA FINAL
Agradecimentos à Profª Sônia Oliveira Almeida, da UFF, pela comunicação de parte de sua correspondência com Sony Labou Tansi.


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Agulha Revista de Cultura
Número 115 | Julho de 2018
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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[1] Sônia Oliveira Almeida, professora de Francês da UFF, e não da USP, como aparece na edição crítica dos Poèmes, manteve uma correspondência importante com o autor a partir de setembro de 1982. A 3ª conferência internacional de l’AUPELF, em Lomé (Togo), em 1982, foi importante para a equipe de estudos francófonos da UFF. Foi Sônia Almeida que, de certa forma, introduziu Sony Labou Tansi à cultura e à literatura brasileiras. Ele já tinha um razoável conhecimento, através de traduções do espanhol para o francês, da narrativa hispano-americana. Reproduzimos duas cartas do autor à profª Sônia Almeida. Sony, sem possuir a cultura clássica de Césaire, procurou, como autodidata permanente, conhecer a poesia e a narrativa das Américas. Sony Labou Tansi participou das SEDIFRALE, de 1987, em Buenos Aires.
[2] Sony morre aos 48 anos incompletos de aids a 14 de junho de 1995, três dias depois da sua mulher Pierrette Kinkala. O casal deixou três filhas.
[3] LABOU TANSI, Sony. Poèmes. Edition critique. Coordinateurs Claire Riffard et Nicolas Martin-Granel en collaboration avec Céline Gahungu. Planète Libre, CNRS éditions, ITEM, août 2015, 1252 p. Daqui por diante: Poèmes.
[4] Ver LABOU TANSI, Sony. Encre, sueur, salive et sang. Avant-propos de Kossi Efoul. Edition établie et présentée par Greta Rodriguez-Antoniotti. Seuil, septembre 2015, indicado daqui por diante por Encre.
[5] LABOU TANSI, Sony. Théâtre 2. Une vie en arbre et chars…bonds. Une chouette petite vie bien osée. Lansman, 1995, edição indicada daqui por diante por Théâtre 2.
[6] Cf. a pesquisadora romena, naturalizada italiana RADULET, Carmen Maria. “O reino do Congo: manuscrito inédito do “Códice Riccardiano 1910”. Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1992, 160 p. Ver igualmente: BALANDIER, Georges. La vie quotidienne au royaume de Kongo du XVIe au XVIIIe siècles. Hachette, 1965 e GONÇALVES, António Custódio. História revisitada do Kongo e de Angola. Lisboa, Estampa, 2005, 224 p. 
[7] A escolha do último nome, ligeiramente modificado, é significativa: Gérald-Félix Tchikaya toma em 1957 o pseudônimo de U Tam’si (o que fala por/para o seu país, o Congo). Em Sony, há assim a afirmação de uma dupla filiação: filiação interna (propriamente congolesa, em que o mais jovem escolhe o seu “antepassado”) e filiação segundo a negritude (especificamente de Césaire, para quem a escolha do nome é um tema central do seu teatro).
[8] Césaire, em Une saison au Congo, dá testemunho indiretamente da presença, no Baixo Congo, da Mission évangélique suédoise (MES), que dispunha de sete missões na região a partir dos anos 1920. Isso explica por um lado, a citação de Mestre Eckhardt no texto de Dag Hammarskjöld e por outro lado, uma tirada do tocador de quissange diante de Lumumba: “Tu es notre guide inspire, notre messie! Rendons gloire à Dieu, mes enfants, Simon Kimbangu est de nouveau parmi nous!” (II, 2, p. 94). No Congo belga, Simon Kimbangu (1871 - 1951) está na origem da igreja kimbanguista. Ele profetizou a dipenda dianzole (a segunda independência em Kikongo). As autoridades belgas, alertadas pelos missionários católicos e protetstantes, prendem-no assim como seus principais seguidores em 1921. Condenado à morte, é graciado pelo rei Alberto I e sua sentença comutada em prisão perpétua. Hoje a Igreja Kimbangusita é membro do Conselho ecumênico das Igrejas desde 1969 na Inglaterra. Em suma, a documentação propriamente histórica da peça de Césaire é muito mais densa; ela praticamente inexiste em Une vie en arbre: a sua poética não busca escrever uma peça histórica mas alegórica.
[9] Ver “Donner du souffle au temps et polariser l’espace” (in Encre, 2015, p. 65 -71), “Pourquoi le théâttre” (ibid., p. 93 - 94), “Césaire, père du théâtre Africain?” (ibid., 95 - 98), “Avertissement” (ibid., p. 113 - 116), “Quel théâtre dans un monde atteint d’un vicieux traumatisme cinématographique d’essence américaine?” (ibid., p. 128 - 130).
[10] A experiência de Sony Labou Tansi é a de um Molière africano.
[11] Consultar indicação de filme-documentário no final deste texto.
[12] A palavra, que não consta do Petit Robert, é utilizada por Balzac numa narrativa pouco conhecida do grande público ou por Claudel nos seus poemas em prosa sobre a China. Os dicionários especializados dão os exemplos: Griffith a été la seule dans le secret de ma jouerie à la poupée” (BALZAC, in Mémoires de deux jeunes mariées,1842, p. 168). “Au printemps, dans la turbulence de sa jouerie, le dragon aux anneaux bouillonnants envahit nos rues et nos maisons (…) aujourd'hui c'est la fête du fleuve: nous célébrons son carnaval avec lui dans le roulant tumulte des eaux blondes” (CLAUDEL, Paul, in Connaissance de l’Est, 1900, p. 118).
[13] Na África negra, muitos provérbios são em realidade frases de pessoas cuja pertinência as transformou em “verdades”. A frase em questão seria a reformulação de uma parte do discurso de do escritor e etnólogo do Mali, Amadou Hampaté Ba na UNESCO em 1960.
[14] Um texto fundamental sobre a linguagem do trickster permanece ainda hoje o de Roger Bastide em homenagem a Lévi-Strauss: BASTIDE, Roger. “Le rire et les courts-circuits du sens”, in Echanges et communications: mélanges offerts à Claude Lévi-Strauss à l’occasion de son 60ème anniversaire. Mouton, 1970, p. 953 - 963. Exu (com seus diferentes avatares e nomes) aparece no teatro de Césaire sobretudo em duas peças: La Tragédie du Roi Christophe (no discurso de Hugonin que encarna Baron-Samedi por ocasião da morte do rei) e Une Tempête (sob a forma literal de Eshou, personagem que semeia a desordem na ordem injusta ou inversamente a ordem na desordem caótica). Nesta última peça, Césaire re-cita vários orikis colhidos diretamente de estudos antropológicos.
[15] Na peça de Sony, o menino ou adolescente sem nome é sempre chamado “enfant”, “bambin”, “marmot”.
[16] Vários ensaios críticos abordam a questão nos romances de Sony Labou Tansi. No entanto, o tema não é exatamente o do canibalismo nem da antropofagia brasileira. Uma análise comparada sobre o tema nos contextos lusófono e francófono traria resultados interessantes. Seria igualmente necessário alargar a análise para o conjunto do teatro de Sony Labou Tansi. Ver o ensaio “Bouche et cannibalisme sexuel dans Une Vie en arbre et chars…bonds”, de LOBLI BOLI, Armand, in La Bouche plurielle. Sous la direction de Michelle Tanon-Lora. L’Harmattan, 2011, 174 p.
[17] Os dois termos, criados evidentemente a partir de “américains”, é um duplo jogo de palavras sobre a forma ativa e passiva da ação de casser (= quebrar) dos que estão a chegar contra a árvore: casseurs e cassés. Os que vão chegar quebram e vão deixar quebras/ruínas. Os ensaios de SLT em Encre mostram como a guerra do Iraque de 1991 exacerbou o anti-americanismo do autor: ver “La guerre des menteurs”, ibid., p. 154 - 157. A peça que ora analisamos, na sua primeira versão, data de 1995.
[18] Note-se que haverá uma outra scène-mère depois da chegada do Homem-monstro, no segundo grupo de cenas, seis meses mais tarde.
[19] Ver: Shu e Tefnut, Geb e Nut, Osíris e Ísis, Seth e Neftis, incesto mítico repetido pelos faraós no tempo histórico. Uma pesquisa comparada deveria ser feita sobre as leituras feitas por Sony das teses de Cheikh Anta Diop sobre o Egito antigo e a África Negra.
[20] No volume Poèmes, há um duplo texto interessante “Parcours à deux voix autour d’Eros”, assinado recto/verso alternadamente por Sony Labou Tansi e por Daniel Maximin (ibid., p. 1195 - 1199): poderia ser o ponto de partida para uma análise comparativa entre o congolês e o guadalupeano sobre o tema do amor.
[21] O romance de Joseph Conrad tem duas traduções brasileiras, Coração das trevas: Hamilton Trevisan (São Paulo, Global, 1984) e José Roberto O’Shea (São Paulo, Hedra, 2008).
[22] Joseph Conrad é igualmente uma das leituras fundamentais de Césaire na composição da sua peça Une saison au Congo, e não se trata apenas do Heart of darkeness. Uma referência na discussão entre Dag Hammarskjold, o secretário-geral da ONU, e um dos seus auxiliares o comprova. Césaire re-cita uma situação que os leitores de Conrad identificam facilmente: “Vous n’allez quando même pas croire que je dirai comme Jim devant Doramin: ‘Je prends tout sur ma tête? Et que je me tairai?” (III, 4). A passagem sai de Lord Jim. Isso sugere que Césaire (e provavelmente outros) não escreve sobre a loucura cruel da colonização sem referir-se direta ou indiretamente à obra de Conrad.
[23] Este evidentemente é Mensfields, desesperadamente perdido no seu amor impossível (cf. Théâtre 2, p. 39, p. 41 e passim).
[24] A morte de Angelotte ordenada pelo Homem-monstro pode ser comparada à morte do Arcebispo Juan de Dios na Tragédie du Roi Christophe mas o registro é diferente: em Césaire, estamos ainda numa tragédia moderna, em Sony, numa farsa rasgada e grotesca.
[25] Para alguém com alguma memória da cena teatral brasileira, a reviravolta parece saída do teatro de rebolado da antiga Praça Tiradentes no Rio, de uma das improvisações enlouquecidas de Dercy Gonçalves na TV Globo ou das velhas chanchadas da Atlântida com Oscarito e Grande Otelo.
[26] Os Cent Contes drolatiques, de Balzac, publicados em 1832, são um projeto insólito de escritura lúdica e de imitação para “demourer soy-mesme en pastissant devant le moule d’aultrui”. O conjunto, pela sua verve truculenta e rabelaisiana, provocou escândalo na época.
[27] Cf. “Rolla”, de Musset ainda jovem, de 1833: “je suis venu trop tard dans un monde trop vieux.”
[28] Um estudo a ser feito poderia ser a rescrita em Sony Labou Tansi de um certo Shakespeare, em particular Tróilo e Créssida (de 1602, publicada em 1609), peça onde impera um tom ambíguo entre obscenidade, desmistificação dos heróis e história sombria sem sentido trágico. Em 1964, Roger Planchon fez uma admirável montagem da peça para o TNP. Consultar: Troïlus et Cressida - Spectacle - 1964 - Data BNF
data.bnf.fr/…/troilus_et_cressida_spectacle_1964/
[29] O ictiossauro (do lat. Ichthyosauria) era uma ordem de répteis marinhos extintos, que se extingue pouco depois da extinção dos dinossauros. Sony Labou Tansi brinca de parque jurássico, com Steven Spielberg: o filme é de 1993, pouco antes da redação de Une vie. 
[30] Sugerimos igualmente que uma pesquisa comparada triangular possa ser tentada: Aimé Césaire, Sony Labou Tansi e Caya Makhélé.
[31] Paris, Champion, 2013, 891 p. Aí encontrará o leitor, uma bibliografia documentada e comentada sobre cada obra de Césaire.
[32] Seuil, juin 2013: a obra interessa na medida em que um poeta, ensaísta e romancista, nascido na Guadalupe, analisa a criação poética de um outro poeta antilhano francófono.
[33] Aimé Césaire. Poésie, Théâtre, Essais et Discours. Edition critique. Coordinateur Albert James Arnold. AUF, Présence francophone, CNRS Editions, ITEM, décembre 2013, 1805 p. Daqui para frente: Aimé Césaire, Arnold.
[34] Com 293 páginas, o texto é particularmente importante porque descreve e analisa a mobilidade das obras teatrais de Césaire, seu contexto de publicação e de representação, sobretudo a colaboração do autor com seus diferentes metteurs-en-scène e tradutores.
[35] Königshausen & Neumann, 2015, 402 p. Daqui para frente: Césaire hors frontières.
[36] A colaboração de Césaire com Janheinz Jahn na Alemanha e Jean-Marie Serreau foi particularmente frutífera. Para representar o seu teatro, surgiram companhias como Les Griots (com Sarah Maldoror, Toto Bissainthe, Samba Babacar, Timothée Bassori e Robert Liensol) ou a Compagnie du Toucan e revelaram-se atores como Douta Seck, Doura Mané, Yvan Labejoff etc.
[37] Ver Aimé Césaire, Arnold, p. 1101 - 1182; Notes, p. 1183 - 1188; Annexes, p. 1189 - 1193. O responsável pela transcrição, notas e anexos de Une saison é o professor A. Tshitungu Kongolo (da RDC). Ele ignora o texto de 1967 sem que haja uma justificação para tal. Sobre a análise das modificações, - essencialmente acréscimos -, o texto fundamental continua a ser RUHE, Ernstpeter. “Mokutu et le coq divinatoire”, in Soleil éclaté: mélanges offerts à Aimé Césaire à l’occasion de son soixante-dixième anniversaire par une équipe internationale, édités par Jacqueline Leiner. Tübingen, Günter Narr Verlag, 1984, p. 355 - 373. O artigo de Ruhe tem ainda a grande vantagem de poder ser facilmente consultado pela Internet.
[38] Uma forte presença lusófona impõe-se progressivamente a partir dos anos 50 até os anos 70 nos festivais mundiais da juventude, organizados sob inspiração da antiga URSS.
[39] O desenho é da autoria de Antônio Domingues.
[40] Documento frente e verso de nºs 04354-001-004-001 e 04354-001-004-002, fundo Mário Pinto de Andrade, Fundação Mário Soares, Lisboa.
[41] Sobre a chegada a Paris e as primeiras relações de Mário de Andrade nos anos 1954 - 1955, consultar a “Chronologie parallèle”, in Césaire hors frontières, p. 53 - 124. Essa Cronologia, bastante longa, busca articular, pela primeira vez e de forma sistemática, a produção francófona com a produção de língua espanhola, inglesa e portuguesa sobretudo nas Américas. Sobre as relações entre os dois homens, Césaire e o angolano Mário de Andrade, consultar textos inéditos, ibid., p. 329 (“La récade de Césaire”) e p. 331 - 336 (“Discussion de deux poètes et hommes politiques sur le Roi Christophe”).
[42] O suaíli ou suaíle (Kiswahili), também chamado Swahili (como está em Une saison), é a língua banto com maior número de falantes ainda hoje. É uma das línguas oficiais do Quénia, da Tanzânia e de Uganda, embora os seus falantes nativos, os povos ditos “swahilis” pareçam ser originários das regiões costeiras do Oceano Índico, na África oriental. É falada por cinquenta milhões de pessoas no mundo, - além dos países que a têm como língua oficial -, como uma língua franca, ou seja uma koiné, língua de comunicação e comércio, supranacional. 
[43] O lingala é língua banto falada hoje na República Democrática do Congo (RDC), na República do Congo e ainda na República centro-africana, com 2 milhões de falantes como língua materna e uma dezena de milhões de locutores outros. Ao lado do francês, é uma das quatro línguas nacionais do Congo-Kinshasa (RDC), ao lado do kikongo, do swahili e do tshiluba.
[44] O kimbundu, quimbundo, dongo, kindongo, loanda, mbundu, loande, luanda, lunda, mbundu, n'bundo, nbundu, ndongo ou mbundu do norte é uma língua, igualmente do grupo banto, falada no noroeste de Angola, incluindo a Província de Luanda. O português possui muitos empréstimos lexicais do quimbundo, inseridos no vocabulário durante a colonização do território angolano e/ou através dos escravos bantos vindos para o Brasil. Por outro lado, expressões populares do português, como mata-bicho, aparecem com o mesmo significado em Une saison: pequena quantidade de álcool (aguardente ou cachaça) que se toma em jejum, geralmente de manhã; em sentido figurado: propina para facilitar um negócio ou transação, suborno.
[45] O kikongo (ou cabinda, congo, kongo, kikoongo) é a língua falada nas províncias de Cabinda, do Uíge e do Zaire, no norte de Angola, no Baixo Congo, na República Democrática do Congo e nas regiões limítrofes da República do Congo. É uma das línguas nacionais de Angola, tem diversos dialetos e era a língua falada no antigo Reino do Congo. O dramaturgo congolês Sony Labou Tansi que abordamos a seguir, foi alfabetizado, numa missão protestante sueca, em kikongo.
[46] Aimé Césaire- Arnold, Une saison, II, 9, p. 1160. Na transcrição do discurso de Lumumba a Mokutu, duas gralhas aparecem, inesperadamente: as passagens “Regarde, à côté, la Rhodésie du Sud,” e “bouffe du nègre que c’en est” foram cortadas.
[47] Voltamos à recepção da montagem de Schiaretti, de 2013, no final deste texto.
[48] Um grande músico africano da sanza foi Francis Bebey (Duala, Camarões, 1929 – Paris, 2001). Em Angola, o instrumento diz-se quissange. Em gravuras de Debret, de 1826, aparece a sanza/quissange, ver, por exemplo: “Passeio no domingo à tarde” (em que um grupo de oito escravos, endomingados e descalços no seu dia de folga, caminham ao som de duas sanzas) e “Carregadores de café” (em que um negro forte abre a marcha de uma fila de escravos que descem ao litoral, carregando grandes sacas de café às costas). A sanza é essencialmente um instrumento de marcha ou de contador de histórias: precisamente um “lamelofone”, sendo classificado nos idiofones. É construído sobre uma tábua com alguns centímetros de espessura, de forma rectangular, onde se fixam uma série de lamelas (de 7 a 22), cada uma com um tamanho diferente produzindo notas distintas, presas a um cavalete metálico. Por cima do cavalete é colocado um travessão transversal apertado por ganchos. As lamelas, regra geral, são espatuladas e ligeiramente levantadas dos lados. A sua construção varia consoante a região e a etnia, podendo ou não usar caixa de ressonância, as escalas também variam consoante o numero de lamelas. Estão identificadas, pelo menos cinco variantes de quissange. O mais disseminado é constituído por uma série de nove lâminas ficando a maior ao centro e as restantes dispostas de cada lado, reduzindo -se o tamanho, do centro para as pontas. O instrumento é seguro com as duas mãos e tocado beliscando as lamelas com o polegar de cada uma. É um instrumento de som fluido, muito utilizado durante caminhadas longas ou como acompanhamento quando um mais velho conta histórias à noite, em volta da fogueira. Pode-se ouvir facilmente a sanza de Francis Bebey consultando o You-tube.
[49] Na bibliografia especializada sobre a peça, não foram encontradas análises mais aprofundadas sobre a documentação antropológica de Césaire. O poeta leu sem dúvida nenhuma La Philosophie bantoue, do franciscano Placide Tempels, de 1945, expressamente citada no seu Discours sur le colonialisme e leu também, muito provavelmente, os volumes importantes do jesuíta Joseph Van Wing sobre os Bakongos. Sugerimos para uma nova pesquisa uma leitura sistemática de pelo menos três volumes: 1. Études bakongos: Histoire et sociologie. Bruxelles, 1921; 2. Études bakongos: religions et magie. Bruxelles, 1938; 3. Légendes des bakongos orientaux. Bruxelles, 1940.
[50] Em 1958, por ocasião da sua controvérsia com Claude Lévi-Strauss, Fernand Braudel aprofunda o que já fizera no seu magnífico La Méditerranée et le monde méditerranéen à l'époque de Philippe II, explicitando o conceito da “longue durée num ensaio com esse titulo, in Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 13e année, nº 4, 1958, p. 725-753, justificando o modelo da pluralidade dos tempos históricos (estrutural / conjuntural / fatual). Por outras palavras: a longa, a média e a curta duração. O modelo é retomado e explicado ainda in BRAUDEL, Fernand. Écrits sur l’histoire. Flammarion, 1969.
[51] Ernstpeter Ruhe commente: “l’allusion au zombie du culte de vaudou haitien, livré sans volonté propre au sorcier qui l’avait rappelé à la vie, con-vient parfaitement au rôle de Tshombé, marionnette entre les mains des banquiers qui, avec son aide, défendent leurs intérêts financiers au Katanga” (in “Le coq divinatoire”, op. cit., p. 358).
[52] Dag Hammarskjöld falece a 18 de setembro de 1961 em Ndola, Rodésia do Norte (hoje Zâmbia), numa controversa queda de avião. Na representação de Schiaretti, a personagem, logo após o seu discurso em que exprime a seu sentimento de culpa, cai ao chão, sugerindo, aos espectadores, a sua morte próxima.
[53] Une saison en enfer é o volume de poemas em prosa de Rimbaud, redigido em julho de 1873, depois da crise vivida com Verlaine em Bruxelas e do retorno a Roche, a quinta familiar perto de Charleville. O primeiro esboço do volume, começado alguns meses antes, chamava-se Livre païen ou Livre nègre. Rimbaud é uma das grandes leituras de Césaire juntamente com Lautréamont: consultar a respeito a revista Tropiques.
[54] In Présence Africaine, 1967, nº 64, p. 138 - 145.
[55] Suzanne Césaire é a colaboradora essencial do marido sobretudo durante os anos da revista Tropiques. Foi nessa revista que Suzanne publicou todos os seus ensaios, editados por Daniel Maximin, sob o título Suzanne Césaire: le grand camouflage. Écrits de dissidence (1941-1945). Seuil, 2009. O casal teve seis filhos. Suzanne morre a 16 de maio de 1966. Sobre a colaboração entre Aimé e Suzanne, ver o meu texto “Suzanne Césaire dialogue sur et avec Aimé Césaire ou Une autre diabase”, a ser publicado por Présence Africaine e que pode ser consultado na revista digital Agulha.
arcagulharevistadecultura.blogspot.com/…/lilian-pest
06/01/2016 - LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Suzanne Césaire dialogue sur et avec Aimé …. malgré son rôle très actif dans la revue Tropiques pendant la guerre, est … (prêt en 1943 et publié en 1947) et de Présence Africaine (de 1956).
[56] In Tropiques, nº IV, janvier 1942: Aimé Césaire e René Ménil assinam juntos “Introduction au floklore martiniquais”, em que lêm as aventuras de Colibri assim como é contada nas vigílias antilhanas.
[57] Ver, sobre o assunto, Césaire hors frontières, p. 300 - 301 .
[58] Ver, sobre a primeira representação da peça, o livro recente de Ernstpeter Ruhe. As primeiras representações têm lugar em Bruxelas, de 20 de março a 5 de abril, sob a direção de Rudi Barnet, da companhia Théâtre Vivant. Forma-se então um comité de apoio a Césaire e à sua peça de que fazem parte Sartre, Beauvoir e Jan Van Liezde. Em agosto de 1967, os mesmos atores, dirigidos agora por Jean-Marie Serreau, preparam a representação em Paris. Depois da Bienal de Veneza (La Fenice), a peça é representada pelo Théâtre de l’Est Parisien (TEP). Nesta montagem, Douta Seck representa o joueur de sanza. Um document da BNF (bibliothèque nationale de France) dá a distribuição e toda a ficha técnica do espetáculo. Consultar:
data.bnf.fr/…/une_saison_au_congo_spectacle_1967…
Représentation: Paris (France): Théâtre de l'Est Parisien - 04-10-1967. Contributeurs: mise en scène de Jean-Marie Serreau ; drame en 2 parties d' Aimé … 
[59] Entrevista várias vezes citada no dossier de imprensa, feito pelo TNP.
[60] Césaire hors frontières, p. 163 - 195; p. 209 - 217; p. 287 - 299; p. 307 - 314, etc.
[61] Ver sobre o assunto, in Césaire hors frontières, p. 163 -194.
[62] Cf. Vents, chant 5, p. 59- 60.
[63] O texto em questão, dito pelo personagem do secretário geral da ONU, aparece entre aspas: é explicitamente uma citação.
[64] No momento da morte de Saint-John Perse, Césaire dedicou-lhe um poema-túmulo que analisamos in  Césaire ou la rhétorique funèbre sur les héros et les amis disparus”, in Mémoire et métamorphose, p. 114 - 119 . O texto de Saint-John Perse ao receber o Nobel poderia ser articulado facilmente ao belo texto de Césaire pronunciado em Haiti, em 1944 e reproduzido na revista Tropiques nº 12, intitulado “Poésie et connaissance” (in Aimé Césaire, Arnold, p. 1373 - 1395).
[65] Mémoire et métamorphose. Aimé Césaire entre l’oral et l’écrit. Königshausen & Neumann, 2010, p. 376 – 383.
[66] Aimé Césaire. Cahier d’un retour au pays natal, 2e édition. L’Harmattan, 2012, p. 56 - 62, p. 178 - 181.
[67] Uma nota de A. Tshitungu Kongolo (Aimé Césaire, Arnold, p. 1181) informa que a invocação foi recolhida e traduzida por Van Wing em Etudes bakongo, sem indicar volume nem página. De todas as maneiras, uma leitura aprofundada dos textos do jesuíta e etnógrafo deveria trazer mais luz sobre a documentação antropológica de Césaire.
[68] Cf. o correspondente em inglês, two sides of the same coin.
[69] Lembrar o final múltiplo de Jacques le fataliste et son maître, de Diderot, com a sua primeira edição em livro (póstuma) de 1796: o autor oferece para a sua narrativa vários finais aliás bastante diferentes e se o leitor não gostar de nenhum deles, deve pegar a pena e escrever o seu. O mesmo acontece de certa forma com Une saison. Na versão de 1966, o tocador de quissange volta-se para o público e entoa o grito de guerra congolês: Luma! Luma!, grito repetido por Pauline. Em 1967, temos a canção ambígua das duas garrafas, já nossa conhecida. Em 1973, Mobutu, no seu gabinete, prepara o fim do luto pelo herói morto. Em 1976, Mobutu reabilita, em praça pública, Lumumba.
[70] O discurso foi pronunciado pelo presidente Nicolas Sarkozy e redigido pelo seu conselheiro Henri Guaino, no dia 26 de julho de 2007, na Universidade Cheikh-Anta-Diop, de Dakar (Senegal) suscitou várias críticas na França e por toda a África. Por um lado, a ausência da consciência dos erros cometidos durante o período colonial e por outro lado, o paternalismo visto como arrogante do presidente francês. Em 17 de setembro de 2008, o presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, defende ironicamente Nicolas Sarkozy, como “victime de son nègre”. Um dos sentidos de nègre em francês é aquele que escreve os textos assinados por outro. O discurso pode ser encontrado facilmente na Internet.
[71] Ficha técnica por ordem alfabética de sobrenome: Vincent Boute (iluminação) , Françoise Chaumayrac (Penteados) , Fabrice Devienne (Música) , Henri Dorina (Músico) , Laurent Dureux (Som) , Mathilde Foltier-Gueydan (Direção iluminação) , Fanny Gamet (cenografia) , Baptiste Guiton (assistente da mise en scène) , Jacques Largent (Músico) , Daniel Maximin (Dramaturgia) , Moïse Touré (colaboração artística) , Thibaut Welchlin (Figurinos) , Paul Zoungrana (Assistente da mise en scène) Fanny Gamet (Acessórios), Françoise Chaumayrac (Maquiagem), Fabrice Devienne (Piano), Henri Dorina (Baixo), Jacques Largent (Percussão).
[72] Indicamos entre parênteses os nomes dos autores das resenhas e críticas de cada jornal.
[73] Ator na adaptação do Mahabharata de 1985, em seguida filmado. Atuou em muitas peças de Peter Brook, no famoso Bouffes du Nord, em Paris: La Tempête (1990), L’Homme qui (1993), Qui est là? (1996), Hamlet (2000), Le Costume (2000), La Tragédie d’Hamlet (2003), Tierno Bokar (2004).
[74] Um pequeno artigo recente, publicado na revista eletrônica La Lettre de Madinin'Art du 20 avril 2016, assinado por Roland Sabra transcreve o resumo feito por Hassane Kassi Kouyaté sobre o papel do griot: “En Europe, on ignore ce que veut dire griot: pas seulement un conteur, mais tout à la fois le dépositaire de la mémoire de son peuple, mémoire uniquement orale, un maître de la parole, un généalogiste qui connaît toutes les ascendances de chacun, le maître des cérémonies, gardien des traditions et des coutumes, et, surtout, un médiateur. Le griot est celui qu’on épargne durant les batailles parce qu’on aura besoin de lui ensuite pour faire la paix, celui aussi qui tente de résoudre les conflits au sein des familles, là où le chef n’a pas à intervenir.
[75] O Burkina Faso - literalmente “país dos homens íntegros” - é um país da África Ocidental, sem acesso ao mar, cercado pelo Mali, Niger, Benim, Gana e Costa do Marfim. Sua capital é Ouagadougou.
[76] A referência a Brecht é evidente.

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