quinta-feira, 1 de novembro de 2018

POEMAS DE LUPE COTRIM GARAUDE


AO AMOR

O que desejas de mim
nunca o dará o lampejo de um momento,
a conquista de um dia da montanha.

Meu corpo — para ti somente —
deve emergir a cada gesto límpido
e profundo deve ser meu futuro
para reter-te e recriar-te permanente.

Sei que em mim te estenderás, não mais disperso,
em desejo e em procura de teu filho
e que todo movimento de meu ser
será o rumo de teu universo.

E por isso temo. No meu sentimento
sofro por ti. Receio
ser larga a hesitação de meu caminho,
ser um mito a conquista da montanha,
ser pobre e fugaz o meu espaço
na extensão que reduz teu infinito.


VONTADE DE ME ENCONTRAR

Vontade de me encontrar
com os poetas do mundo,
que se encaminham com rosas
perdidas em suas mãos
tendo como expressão
uma linguagem de estrelas...
Para que juntos unidos
bem incluídos na terra,
entrelaçados nos versos,
possamos no amanhã
humanizando a poesia
conciliar uma alegria
a tanta criança triste,
aos homens que nascem cegos,
às dores que morrem sós.


POSSE I

Ela —

Na corporificação da claridade
festejaremos nosso encontro.
Os intervalos de posse,
iluminados,
se encobrem de flores;
musgos são tessitura
desta distância breve,
desta pausa madura.

A palma das mãos
é um êxtase de frutos:
a pele se modula
nas águas transparentes
que de nós a nós
é rio consequente.
Súbito como um voo,
o estar se perturba.
Um leve toque de olhar
acusa o futuro,
onde perduramos desunidos.

O espaço concreto em nós
é tão exíguo
A manhã não satisfaz
a emergência de outro encontro;
somente a luz
projeta além
nossos corpos dourados,
nossa incrível festa.


POSSE II

Ele —

Seduzir o cotidiano pelo corpo.
Penetrá-lo deste brilho longo,
compacto,
onde o cansaço não é tédio
mas úmido intervalo.

A paisagem não sustenta
mais os olhos; estrelas
despojaram-se dos monólogos,
a flor voltou a si, não mais
dizer exausto, a primavera guardou
sua intimidade no discurso
das árvores, e o amor,
esgarçado de imagens,
procurou outro equilíbrio
além da frase, de um silêncio
a outro.

Nem sempre a paz levou-nos
a suas tácitas paragens:
a liberdade aspirou um ser estranho,
em que de novo nos olhássemos.

No corpo prosseguimos
onde o amor parava.
E inventamos. Sem palavras
tornamos nossa a carne da manhã,
a exaurir o tempo, sem fidelidade
alguma, no dia imprevisível,
além do nosso invento.


PAISAGEM DE UMA AULA DE FILOSOFIA

Porque a pedra
está fora do tempo
e eu por dentro;
porque a terra se desata,
vegetal,
e a mim falta
esse fôlego verde,
em tênue movimento;
porque entre raiz e folha
o animal salta,
elástico, e desconheço
liberdade tão alta;
porque mineral e vegetal
uma floresta é segredo
aberto ao animal
e em mim se enlaça
pelos cipós do medo
— sei-me de outra espécie.
Em que sou fraco. E antes
de tudo—breve.

Mas nessa extensão tão plena
é que mais compreendo.
Tomo nos meus braços,
intersubjetivamente,
o espaço total, que conduz o infinito.
E são rochas de leões,
marés de outono,
folhas alçando-se no arrojo
dos pássaros, répteis
em curvas de diamante,
montanhas côncavas, murmurando,
florestas em ondas, sobre as águas
as distâncias são formas
—corpo de estrela, impulso de planície,
a morte é apenas uma flor
vermelha, que passa no vento,
o amor se desvenda nas colheitas,
rostos anônimos surgem
dos troncos de cimento,
a solidão é o rosto da humanidade
a terra é voo, o céu se reaproxima,
e em tudo estou presente, simultâneo,
o horizonte a meus pés,
como um riacho doce.

Olhando dentro de mim,
de dentro da natureza,
eu a refaço—e invento a beleza.


ENTRE A FLOR E O TEMPO

Também de dor se morre pois é morte
o sentimento ausente. O ser feliz
é ser presente, sem que mais importe
esse profundo sulco e a cicatriz
que no corpo nos marca o sofrimento.
Assim é nossa vida, sempre o lance
de viver, mesmo em dor, e dos momentos
erguer templos, embora breve o alcance
em nós do tempo. E o que restar do ardor
com que se vive o amor enfim carrega
em rosa mais perfeita e em outro amor
sonhado da extensão de nossa entrega.
    No impulso com que o espaço alcança o tempo
    a vida se ergue além do sofrimento.


Ó QUE IMENSO DISSIPAR

Ó que imenso dissipar
por assim gostar de tudo.

Com o meu ser estendido,
tenso ao apelo do mundo,
pulsando seu movimento
vou erguendo esta prisão.

Os pés retidos, imóveis,
pelos choques de atração
com a alma paralisada
contendo tanta largueza
e aspectos de vastidão.

Por que ter tantos sentidos,
o sentimento tão apto
e o coração vulnerável?

Por que o sentir sem repouso
num sentir que é um rapto,
exausto de comunhão?

Um pobreza qualquer,
pobreza em voz, em beleza,
em querer, em perceber,
uma pobreza qualquer
onde eu possa enriquecer.


DESTINO MINERAL

Sou feita de uma carne perecível
futuro de outra carne, sem nenhuma
eternidade. A rocha é uma invencível
parte da terra; que ela me resuma
no seu mesmo destino mineral.
A solidez ausente que tortura
nossa matéria frágil, no final
se renderá: serei de pedra dura.
Nunca mais chorarei nessa passagem
de poesia. Com nítida certeza,
recorto nas montanhas minha imagem
mais que raiz, expressa na beleza.
Pela terra em que não me desfiguro
hei de surgir um dia em cristal puro.


AMAR DE AMOR, AMOR DE AMAR VI

Pouco sabeis de mim. Hoje percebo
que o segredo mais puro do que sou
vos é desconhecido. É um arremedo
apenas do que sinto o que vos dou.
Se é receio vos largar o coração,
talvez eu tema. Sei o que é silêncio,
a mágoa de compor a solidão
uma outra vez. E sei que não convenço
vossa distância em minha entrega. Perto
ou longe, sois limite próprio. Surda
é em vós essa paixão em que desperto
um arrepio que vossa paz perturba.
E intensa me contenho e mais não faço
para atrair-vos ao céu que vos disfarço.


NEM UM PROFUNDO MAR

Não sou uma vitória ou uma derrota,
mas me conquisto sempre dia a dia,
procurando essa forma mais remota
do que em mim nos instantes se perdia.
Nem um profundo mar, nem superfície,
nem vento ou pedra, leve, na existência,
balanço entre as montanhas e a planície
com asas no sentir, preso à consciência.
Tudo o que é meu anseia uma amplidão
de um céu inacabado, a nostalgia
é o peso desta terra em minha mão.
E enquanto espero o mundo na Poesia
enfim suprir, eu luto e mais persigo
esta ideia de mim, que não consigo.



*****

Edição preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Arthur Boyd (Austrália, 1920-1999), artista convidado da presente edição.


*****

Agulha Revista de Cultura
Número 122 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES



Nenhum comentário:

Postar um comentário