sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1979 RODRIGO BARBOSA


[ DEZ POEMAS ]


PRELÚDIO

às infinitas luas dessas cidades
e suas atmosferas
sempre frágeis
e eu a me debruçar no buraco-negro
entre os ombros as sombras das janelas
passando
como os ventos e seus rumores harmônicos
que deslizam
pelas frestas dos trânsitos demônios  

O COMEÇO

Este poema é como estória surgida
na têmpora deserta de um sonho
estação do instante
herdeira da mão líquida
de sol
desfiladeiros da memória
pele e cristal dos olhos
como girassóis deitados na carne
e na palma do desejo

Inconsolável rouxinol explosante
de lótus e Shiva
flertando a abóboda esquecida em brumas celestes
nossas vísceras recebendo o batismo da cidade sonho

o poleiro divino
no ombro
o pássaro mágico
do caos


ÓRFICO DE UM JARDIM

encontrei Rosa
entre vetustos sonhos
vestida e despida
pelas estradas errantes
transpirando como timbre noturno
atraindo meu olhar para as vielas
labirínticas e sincrônicas
dos mais lúcidos vestígios do salto
na sombra do jardim onde carvalhos
nos campos estelares por onde passamos
louco cálice transfigurando
como numa revoada
rajada de chamas                 pelos cantos tântricos
e o trago lá                 onde se deixa brilhar quanto quiser
e a língua       não prende mais o transformar
nem    as asas do gavião da mente
nem o olhar atraído pelo ímã
e pela guelra da poesia contínua
ecoando feito aquele sujeito
que disse que não existia
e mesmo assim
foi dormir depois de beber
uns bons tantos tragos de cana
e amar loucamente como selvagem
na mágica noite toda escura

uma voz doce                        havia anunciado
e ela veio caminhando         do sertão
marcando o chão com sua sapatilha
de mira-celi ascendente
por ser aquela que me dá
e ressoa os cantos e os gritos de todos
de séculos sem fins
de pálpebras e pensamentos
expulsando os troncos brabos
que eclipsam nosso olhar

e assim com as sombras
de algumas filosofias
os lívidos lábios da amante
me plantam e me lançam
pelos lençóis misteriosos
da vibração e galopes da
existência


POEMA LEMBRADO – A QUEDA DA POESIA

um dia
no alaranjado riso de fogo do ar
na varanda da vida
no despenhadeiro das almas
um anjo perdido
contou-me velhos sonhos dos céus

caímos com Lúcifer
nos labirintos de Deus 
no murmúrio vertical de Adão
nas promessas e segredos do mistério
nas curvas das sobrancelhas sombrias
nos seios e no sexo de Eva

uma noite
na eterna tensão do Amor
na dose milagrosa do pecado
do pranto do cacto no olho do peito
na pesada e doce essência humana
o uivo e o sino da cumplicidade

circunscreve o mito
no livro e na minha pele
as pegadas do espírito
na empreitada febril
a contradição do olhar
da luz eterna na neblina


PEQUENA FÁBULA

O murmúrio da água
Um pequeno lagarto deitado ao sol
Um barco de vento cruzando o rio
Uma presença diluída se aproxima
É preciso ouvir a voz no abismo de dentro
Um olhar sustenido nasce no ventre oculto


POEMA ENIGMA II

Escada de fogo na meta primordial
Faz dos giros obscuros eternos
Palavras que voam aladas
Visão revelada audição aguçada
Assim não há por que temer a treva


ODE EM CONVULSÃO

I

Louvada seja a mulher
com seios de oceano
com os pés de vapor
e as coxas em chamas

Louvadas sejam suas pupilas e suas veias sutis
correndo despertas na minha alma
seus rios silenciosos seus gemidos seus telhados abertos
suas veredas internas seus desvarios seus destinos

Louvada a mulher
com a cabeça reencontrada
com a tocha invisível
com a pele da chuva lavada

II

a mulher suave oscila entre o desejo e o incêndio
pousam sobre ela borboletas circunscritas
e a rosa rara nasce de uma sinfonia noturna

nossa imaginação é convidada a transmutar a realidade
nossa esperança é incentivada a alçar voo contínuo
uma chama irradia nossa medula na alta noite do dia
um vestígio de loucura perfura como sopro divino
um dia dilatado destila a vida no anjo de sua saliva

a mulher suave oscila entre o desejo e o incêndio
nascem sobre ela frutos preguiçosos de uma manhã
e eu sonho continuamente com seus olhos dentro de mim

III

essa mulher com olhos de constelação
com olhos de água da fonte
com lábios entreabertos como a rachadura na terra
como uma fenda por onde passa a luz da voz
essa mulher com plumas de anjo noturno
com seu rosto revelando a busca
vertendo o vinho da voz no meu ouvido
com suas mãos de veludo
com seu gesto de dama perdida
no abismo do mundo

IV

Com os teus olhos eu sou a multidão
Sou o abraçar do feto órfão
Sou a música sem tempo
Sou o laboratório do mundo
Sou o advento do rio de sangue
Com os teus olhos eu sou um louco
Sou as sete setas e as sete vezes setenta mil estrelas do céu negro
Olhadas da janela das minhas vidas anteriores
Sou a floresta nostálgica da cidade
Vim aqui antes de nascer
Volvo o nada e o absoluto
Meu espírito é luta contínua
Meu peito eterna mesa de operação
Medito na tentação e tento na meditação
Sou dos que dançam luz na escuridão


POSLÚDIO

há n’alma do cosmo um rio
em vidas muitas, que de vez
em quando, noite ou dia, insiste:

conduz como comboio de navio
em número de mil vezes mil e dez
as estrelas que viste

o abismo entre teus ombros foi
que caminhou teu coração e fez
verter em vinha o triste


A INTERMINÁVEL MÚSICA INVISÍVEL

eu anseio por tua palavra
orgulhoso

dos mil olhos de fogo que me deste

luzes inundando as escuras avenidas da imaginação
uvas pretas misturadas às tuas tranças

relâmpago furtivo do teu olho
vozes redivivas como vulcões

ontem te vi tocar as cordas invisíveis
da minha viola – sombra em audição


RELIGARE

Teus olhos cerrados expandem-se com o fim da tarde
Tuas sobrancelhas ampliam e deleitam minha visão
Tua boca de o álcool da minha poesia
E teus dedos tamborilam em meu peito

Há uma água negra e serena roçando nossa face


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

RB | Entendo a poesia como um mergulho no mais abissal do ser e ao mesmo tempo ligação íntima com tudo o mais na existência. E é, por isso mesmo, a busca simultânea do amor e da liberdade. O amor a si e ao mundo. A liberdade de conhecer e construir a si mesmo e de se integrar com as coisas ao redor, de um modo sagradamente próprio. Penso que amar é cultivar a liberdade que nos é negada e paradoxalmente apenas possível quando nascemos. E a busca pela liberdade, e consequentemente também pelo amor, está intrinsecamente associada ao espírito anárquico da rebeldia. Porque é evidente que dispomos do mínimo de amor e de liberdade no tipo de sociedade que formamos. Então acredito que como poeta tenho a obrigação de cultivar sempre ao máximo esse par indissociável. Assim, minha poesia é escrita unicamente porque assim deseja meu espírito, como ato de amor e liberdade, sem satisfação nenhuma a prestar às demandas da realidade artificial e utilitarista da sociedade.
Por fim, posso dizer que o amor e a liberdade são minhas necessárias e insubstituíveis utopias. E a poesia, caminhar em direção a essas duas utopias.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

RB | Começarei mencionando Blake e Rilke, que me atraíram e interessaram pela simbologia e pela necessidade de transformação da consciência e visão de mundo que suas poesias me sugeriram. Outros três poetas com quem comungo desde a primeira leitura são Rimbaud, Lautréamont e Artaud: pelo desejo de ampliação dos limites do ser através da poesia, e pela anarquia total e linguagem radical. Kerouac, Ginsberg e Corso foram fundamentais na fase mais inquieta da minha juventude, pois trouxeram como proposta de salvação do tédio a vagabundagem santificada. Também fui seduzido pela linguagem despojada e ao mesmo tempo sofisticada desses poetas. Dos brasileiros, Jorge de Lima e Murilo Mendes foram os que primeiro me impressionaram profundamente, pela imaginação abundante e pela fertilidade de imagens. Foram ainda inspiradores em suas inquietações do espírito e espiritualidade poética.
Outros nomes singulares que marcaram minhas primeiras leituras sérias de poesia: Roberto Piva, Claudio Willer, Afonso Henriques Neto e Floriano Martins. Entre outras coisas, pela investigação e desdobramento da poesia surrealista e da beat generation. Finalizo citando os poetas mais próximos: Sopa d’Osso e Márcio Simões, amigos com quem mantenho diálogo permanente, trocando experiências fraternas e poéticas ao longo dos anos. Em alguma medida, todos esses poetas influenciam a leitura que faço do mundo e, portanto, influenciam também minha experiência e expressão poética.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

RB | Concordo contigo – embora eu não conheça o cenário atual. Mas vejo isso que falas como uma comprovação do entendimento da poesia como solidariedade cósmica. Entre 2010 e 2014 entrei em contato com alguns poetas de São Paulo, Rio de Janeiro, João Pessoa e daqui mesmo de Natal e arredores, que estão produzindo poesia lírica muito interessante, com uma linguagem bastante original. E, justamente como dizes, não parece haver um movimento, mas os poetas interagem e se solidarizam pessoalmente ou através da internet. Além disso, percebi a existência de alguns coletivos. Pequenos grupos que têm utilizado os veículos eletrônicos para divulgação de seus trabalhos. 


[ FOLHA DE VIDA ]

Rodrigo Barbosa (Pernambuco, 1979). Dez anos mais tarde, mudou-se para Natal-RN, residindo atualmente Pium\Parnamirim. Em 2011 publicou o livro de poemas Flâmulas, Hidras & Coquetéis. E, em 2013, traduziu para o português o livro do poeta argentino Aldo Pellegrini, Construcción de la Destrucción.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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