sábado, 1 de junho de 2019

CLAUDIO WILLER | O Surrealismo: uma introdução


1 | POESIA

Escrever sobre surrealismo é abrir as portas para o mundo revelado por um poema como este, de Paul Éluard:

A terra é azul como uma laranja
Jamais um erro as palavras não mentem
Elas não lhe dão mais para cantar
Na volta dos beijos para se entender
Os loucos e os amores
Ela sua boca de aliança
Todos os segredos todos os sorrisos
E que roupagens de indulgência
Para acreditá-la inteiramente nua

As vespas florescem verde
A aurora se enrola no pescoço
Um colar de janelas
Asas cobrem as folhas
Você tem todas as alegrias solares
Todo o sol sobre a terra
Sobre os caminhos da sua beleza[1]

Ou por este trecho de prosa poética, de Radovan Ivsic:

Esta floresta é clara como seda. Um esquilo branco flui nos galhos e me traz a primavera desvairada. Pergunto-me se é preciso esperar até que o amor ecloda o galho morto da esperança ou se não seria preferível partir em direção à praia, entrar furtivamente na água e nadar amplamente até o alto mar, tão novo. Gostaria de andar, mas sinto que não tenho mais pernas. Tornei-me uma árvore e tenho folhas. Estou a ponto de brotar e rio, mas não é mais um riso, é o murmúrio ameaçador da minha nova folhagem. Deveria me preparar para o amor, mas torno a me fechar e nado em direção ao sono.[2]

E também por estes epigramas, poemas de uma só frase, de Malcolm de Chazal: “A volúpia é a mais poderosa sensação que nós temos da velocidade”; “A volúpia é cíclica ou não é nada”; “A volúpia está no centro do ciclone dos sentidos”.[3]
São manifestações do maravilhoso, valor surrealista fundamental. Como proclamou André Breton no primeiro Manifesto do Surrealismo: “Digamo-lo claramente, e de uma vez por todas: o maravilhoso é sempre belo, qualquer tipo de maravilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo” [4].
O maravilhoso é imanente, está aí, desde que se saiba enxergá-lo; faz parte da vida, desde que se consiga vivê-la. Em outros de seus textos, Breton voltaria a tratar dessa categoria, contrapondo-o ao fantástico e ao mistério, unicamente ficcionais. Ao tratar de simbolismo, em Le merveilleux contre le mystère, texto de 1936:

O mistério procurado por si mesmo, introduzido voluntariamente – à força – na arte como na vida, não só poderia sê-lo por um preço derrisório, mas ainda aparece como a confissão de uma fraqueza, de um desfalecimento. O simbolismo não sobreviveu a si mesmo senão na medida em que, rompendo com a mediocridade de tais cálculos, conseguiu fazer para si uma lei de abandono puro e simples ao maravilhoso, nesse abandono residindo a única força de comunicação eterna entre os homens.[5]

E, conforme expôs : no prefácio de 1962 para Le miroir du merveilleux de Pierre Mabille:

O maravilhoso, ninguém conseguiu defini-lo melhor (que Mabille) por oposição ao “fantástico” que tende, infelizmente, cada vez mais a suplantá-lo junto a nossos contemporâneos. É que o fantástico, quase sempre, pertence à ordem da ficção sem consequência, enquanto o maravilhoso brilha na ponta extrema do movimento vital e envolve em si, inteiramente, toda a afetividade. [6]

Pode parecer contraditório ou inconsistente apresentar trechos de poemas e prosa poética como exemplo do maravilhoso e, ao mesmo tempo, citar passagens de Breton nas quais insiste em que essa categoria não é literária. Ou não: desse modo, está sendo sugerido um traço fundamental do surrealismo, sua insistência na identificação de poesia e vida; sua percepção da relação entre a esfera simbólica e aquela dos fatos; da subjetividade e objetividade.
O propósito, aqui, é informar sobre surrealismo e, principalmente, contribuir para enxergar mais; para ampliar a capacidade de leitura de passagens como as que foram citadas. E, reciprocamente, a partir do contato com surrealismo, captar mais sentido em obras literárias e artísticas em geral. E na própria realidade imediata, no mundo, na vida.[7] Isso, sem abdicar da visão pessoal, indissociável de seu autor estar catalogado como surrealista (e concordar com essa catalogação).
Este livro começou a ser escrito pouco depois do término de outros sobre a geração beat.[8] Daí algumas comparações; e, principalmente, a percepção de que o surrealismo é enorme. Conforme exposto na abertura de Geração Beat, essa, tomada como movimento literário, teve uma duração definida (de meados da década de 1940 até 1958 ou 1959) e foi composta por um número restrito de autores.[9] É possível identificar e nomear os beats. Foi um movimento especificamente norte-americano, não obstante seu impacto e influência no mundo todo, na literatura, em outros campos da criação artística, e ao contribuir decisivamente para a formação da contracultura, estimulando rebeliões de jovens e mudanças de comportamento.
Já o surrealismo oferece dificuldades na caracterização de sua extensão geográfica: foi um movimento mundial, e não exclusivamente francês. De sua duração: pode-se dizer quando começa, descrever suas origens – mas não há acordo sobre seu fim, se é que terminou. E, principalmente, sobre seu âmbito, seu campo, o conjunto de manifestações e modos de expressão que poderiam, legitimamente, atendendo a critérios de rigor, ser abarcadas por esse termo, rótulo ou categoria: “surrealismo”.

O surrealismo começa em 1919 – ou em 1921 – ou em algum momento entre 1919 e 1924. Sim: 1919 como data inicial do surrealismo, e não 1924, como consta em quase todo lugar. O Manifesto do Surrealismo de Breton, junto com o lançamento da revista La révolution surréaliste (A revolução surrealista), de outras obras, como Une vague de rêves (Uma vaga de sonhos) de Louis Aragon e a criação de um “bureau de pesquisas surrealistas”, foram a proclamação e expressão de um movimento que já existia.
Essa datação é adotada por Alexandrian[10] e Chénieux-Gendron.[11] Toma como marco inicial a criação da revista Littérature por Breton, Aragon e Philippe Soupault, coincidindo com a descoberta e primeiras experiências de escrita automática, das quais resultaram Les champs magnétiques (Os Campos Magnéticos), parceria de Breton e Soupault.
Iniciando o surrealismo em 1924, seriam pré-surrealistas obras de Breton como Clair de Terre e Les pas perdus; o Aragon de Feu de joie; o Éluard de Poésies etc. O Manifesto do Surrealismo de outubro de 1924 teve como intenção definir fronteiras, garantindo a posse do termo criado por Apollinaire para designar sua peça Les mamelles de Tiréisas, Os mamilos de Tirésias. Isso, por já ser usado com outros propósitos, como informa Chénieux-Gendron[12]: em maio de 1924 pelo jornal Paris-Soir e em outubro daquele ano com a fundação da revista Surréalisme por Ivan Goll. A repercussão do manifesto de Breton resolveu as dúvidas sobre a utilização do termo[13].
Essa cronologia permite a correção de outra caracterização frequente na bibliografia mais escolar, do surrealismo como “racha”, dissidência ou emanação de dadá[14], o movimento que eclodiu na Suiça, em Zurique, em 1916, para logo espalhar-se pela Europa, e que, entre 1919 e 1922, se associaria aos surrealistas. Citando Alexandrian:

Deve-se descartar a tese, por demais sustentada, segundo a qual Breton fundou o surrealismo após o fracasso de Dada, ou seja, que ele procedeu inicialmente a uma destruição de valores, em seguida a um renascimento poético e artístico. Ao contrário, ele expôs o método do surrealismo antes de se lançar à ação dadaísta; melhor ainda, em seu manifesto Pour Dada, publicado pela N. R. F., ele já emprega a palavra surrealista. Mais tarde, quando definir a época puramente intuitiva do surrealismo, ele lhe dará como datas: 1919-1925, nele englobando, sem nomeá-lo, o período dadá. Em realidade, penso que Breton nunca foi dadaísta; teve o pressentimento de uma grande ação a empreender com os melhores elementos de vanguarda de seu tempo; pouco importava a etiqueta que a designaria, desde que fosse eficaz.

Em “Pour Dada”, Breton já definia surrealismo, resumindo o que exporia depois em seu manifesto;

Falou-se em uma exploração sistemática do inconsciente. Não é de hoje que os poetas se abandonam para escrever à ladeira de seu espírito. […] Guillaume Apollinaire pensava com razão que clichês como “lábios de coral”, cuja fortuna pode passar por um critério de valor, eram o produto dessa atividade que ele classificava como surrealista.

Em outro texto, publicado em Littérature e na coletânea Les pas perdus, “L’entrée des médiums”, relatando as sessões de “sono hipnótico” de 1921, também usou o termo:

Sabe-se, até certo ponto, o que meus amigos e eu entendemos por surrealismo. Essa palavra, que não é da nossa invenção e que poderíamos muito bem haver abandonado ao mais vago vocabulário crítico, é por nós empregada em um sentido preciso. Por ela concordamos em designar certo automatismo psíquico que corresponde bastante bem ao estado de sonho, estado esse que é hoje muito difícil de ser delimitado.[15]

Sonho, “automatismo psíquico”, exploração sistemática do inconsciente: tópicos especialmente fortes do surrealismo, desde sua origem precedendo, como se vê, as considerações formais, estéticas, de estilo, enfim, artísticas.
Isso, quanto à origem cronológica – formação e antecedentes serão examinados logo a seguir. E quanto ao fim? O surrealismo termina… Termina quando? Em alguma das ocasiões, nas décadas de 1930, 1940, 1950, em que foi proclamado o seu fim? Em 1966, com a morte de Breton? Em 1969, com a dissolução do grupo francês? E os autores e grupos que hoje se declaram surrealistas? Seriam passadistas? Provas da sua continuidade? Ou seus renovadores? Octavio Paz já havia comentado, em uma importante palestra de 1954, que voltará a ser citada aqui, a insistência nas proclamações do fim do surrealismo:

Graves críticos – coveiros de profissão e, como sempre, demasiado apressados – nos haviam dito que o surrealismo era um movimento passado. Seu atestado de óbito havia sido estendido, não sem prazer, pelos notários do espírito. Para descanso de todos, o surrealismo dormia já o sono eterno das outras escolas do começo do século: futurismo, cubismo, imagismo, dadaísmo, ultraísmo etc. Bastava, pois, que o historiador da literatura pronunciasse seu pequeno elogio fúnebre para que, já tranquilos, voltássemos a nossos afazeres diários. O maravilhoso cotidiano havia morrido. Na realidade, nunca havia existido. Existia só o cotidiano: a moral do trabalho, o “ganharás o pão com o suor de teu rosto”, o mundo sólido do humanismo clássico e da prodigiosa ciência atômica.[16]

Importa que o surrealismo continuou, não só como movimento ou movimentos organizados, mas, principalmente, através de manifestações e obras de qualidade. Hoje, em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, novos autores, grupos e publicações continuam a apresentar-se como surrealistas.
Por essa persistência, resiste a ser classificado como um dos “ismos”, dos movimentos tipicamente vanguardistas – a exemplo desses elencados no trecho citado de Octavio Paz – que antecederam ou sucederam imediatamente a Primeira Guerra Mundial; inclusive aquele que se apresentou no Brasil através da Semana de Arte Moderna de 1922. É certo que a formação do surrealismo faz parte do ambiente vanguardista do começo do século XX: partilha com alguns daqueles movimentos o espírito antiburguês, a descoberta de novos modos de expressão e a assimilação do que havia de mais inovador e subversivo no simbolismo. Reflete um espírito de época marcado pelas mudanças na representação de mundo trazidas por avanços científicos, ao mesmo tempo em que recebia a influência de doutrinas esotéricas; e, especialmente, responde a crises e à guerra, à constante iminência da catástrofe.
Ao se falar em ambiente vanguardista do começo do século XX, no conjunto de movimentos que, sem dúvida, definiram as coordenadas do que aconteceria ao longo daquele século – posto que nada, absolutamente nada deixou de ter relação de continuidade com aqueles movimentos, exceto o que se apresentou como anti-vanguardismo, o que também é, evidentemente, uma relação de continuidade (a exemplo de nossa Geração de 45 e outros tradicionalismos) – devem ser observadas algumas de suas características. Principalmente, o fato de tudo caber nesse conjunto de vanguardas, inclusive abrigar opostos diametrais. Uma das oposições mais evidentes transparece ao se tomar o Manifesto Bauhaus de Walter Gropius como manifestação vanguardista – inovadora o foi, certamente – e confrontá-lo com valores surrealistas. De um lado, a subordinação do valor ao útil, à função; de outro, a recusa categórica dessa subordinação ao útil: arquitetura surrealista sempre privilegiou o que fosse espontâneo e disfuncional. O mesmo contraste se oferece cotejando as concepções de urbanismo de Le Corbusier (que sorte não terem sido postas em prática, pois então haveria metrópoles mais insuportáveis do que já são) e a visão surrealista da cidade, do espaço urbano.

Proclama-se a toda hora o “fim” e a “derrota” das vanguardas (inclusive em autores de peso); fim do surrealismo (que sempre se recusou a ser confinado como vanguarda); fim da beat, fim da contracultura, derrota das rebeliões juvenis. Isso é reacionário: são movimentos e autores que produziram informação relevante, da qual muita ainda está por ser examinada e entendida, e impulsionaram avanços reais. Ignorá-los é isolar o que incomoda a conservadores e àqueles que não admitem que a marcha da história deixe de obedecer a um paradigma determinista.
Mas, sob a ótica surrealista, as demais vanguardas teriam discutido questões formais, ligadas à expressão artística e literária. Já o surrealismo estaria voltado para a vida, o homem em sua totalidade e a transformação do mundo. Como bem sintetizou Octavio Paz: “o surrealismo é um movimento de liberação total, não uma escola poética”[17]. Algo que, algumas décadas antes, Julio Cortázar já havia observado:

Higiene prévia a toda redução classificatória: o surrealismo não é um novo movimento que sucede a tantos outros. Assimilá-lo a uma atitude e uma filiação literárias (melhor ainda, poéticas) seria cair na armadilha em que malogra boa parte da crítica contemporânea do surrealismo. Pela primeira vez na linha dos movimentos espirituais com expressão verbal, uma atitude resolutamente extraliterária prova que a profecia solitária do Conde e do vagabundo[18] se cumpre cinquenta anos após sua formulação.[19]

“Liberdade cor de homem”, frase de abertura de um poema de Breton, serve como epígrafe geral do surrealismo. A produção artística e literária foi o modo de expressar o ímpeto transformador. É um paradoxo estimulante o surrealismo ter sido, no panorama de movimentos, grupos e manifestações do século XX, o que mais recusou o confinamento nas artes e literatura, e haver-se mostrado tão produtivo nesses campos, provocando o que Cortázar (no texto citado) designou como “dilúvio lírico que só as fichas bibliográficas continuam chamando de poemas ou romances.”
Por isso, é incorreto referir-se a uma “forma” ou “estética” do surrealismo. Além de seus propósitos irem além das questões formais e do campo da estética, quando examinado de perto o surrealismo é o reino da diversidade. Isso se torna mais evidente através do exame de sua produção em artes visuais: não há como identificar a uma mesma ‘escola’ o abstracionismo sintético de Joan Miró, aquele de Yves Tanguy, as experimentações de Marcel Duchamp ou de Max Ernst, o traço nervoso de André Masson, a figuração onírica de René Magritte ou Salvador Dalí. Também na produção literária, se o tom lírico-imagético é dominante e característico (a exemplo dos trechos aqui citados como abertura), isso não exclui a ironia e o humor negro; nem transformações da palavra, do signo verbal, que, descontextualizadas, não fossem elas produção do surrealismo, poderiam passar por experimentação formalista.
Em comum a essa diversidade surrealista, uma atitude. Uma ética: por incongruente que pareça associar ética e rebeliões, movimentos de ruptura, o termo cabe, e está na raiz de polêmicas e exclusões no âmbito desse movimento, muito mais que as divergências estéticas ou formais.
Além da produção artística e literária, o surrealismo afirmou-se através de manifestos, e de uma produção teórica, de ensaios e artigos. E de ações diretas, de escândalos e provocações. Ao mesmo tempo em que era publicado o primeiro Manifesto do Surrealismo, também era divulgado o panfleto Un cadavre (Um cadáver), insultando Anatole France por ocasião de sua morte e das respectivas homenagens. Pouco depois, surrealistas tumultuariam uma homenagem ao poeta simbolista Saint-Pol Roux, repudiando o oficialismo da manifestação em favor de um poeta que admiravam; e ainda divulgariam outro manifesto de insultos, dirigidos a Paul Claudel, duplamente inadmissível, como acadêmico e católico.

Através da produção e das manifestações, o surrealismo desempenhou um papel importante na década de 1930, período de internacionalização e crescimento da sua atuação, e de participação ativa nos debates que antecederam a Segunda Guerra Mundial. No pós-guerra, nas décadas de 1940 e 50, foi cultura de resistência ao questionar a dicotomia imposta pela Guerra Fria, a opção entre stalinismo e macarthismo, regime soviético ou sociedade capitalista. Nesse período, associou-se a um novo ciclo vanguardista, estimulando-o; passou a representar o que, em outras ocasiões, classifiquei como “segunda vanguarda”[20], utilizando um termo aplicado, especialmente, ao surrealismo de Portugal, e que, por extensão, também vale para surrealismos nos Estados Unidos, em outros países dos continentes americanos e outras partes do mundo.
Repito, a propósito de segunda vanguarda, o que afirmei em Geração Beat: identificar dois ciclos vanguardistas, um deles entre 1907 e 1924, outro entre 1945 e alguma data na década de 1960, corrige um vezo disseminado, de rotular movimentos – surrealismos mais recentes, geração beat – como vanguarda tardia, e assim descartá-los como anacronismo, continuação de algo datado. Têm o mesmo sentido rótulos como tardo-surrealismo etc, através dos quais a rebeldia é desqualificada.
Quanto à extensão geográfica, o surrealismo, sendo francês na origem, foi mundial. Houve e há surrealistas em todo lugar. Seu mapeamento é uma tarefa inesgotável, em permanente processo, e sempre sujeita à discussão.
Sendo literário, concebido por um grupo de poetas, André Breton à frente, expressou-se igualmente através das artes visuais: quem digitar surrealismo em dispositivos como o Google encontrará mais referências às artes plásticas do que à literatura. E pelos demais suportes e sistemas de signos: cinema, certamente, e também teatro, além do que, hoje, é classificado como montagem, performance e intervenção. Arquitetura é outro de seus capítulos. Música, infelizmente em grau menor: houve surdez musical de Breton e outros surrealistas de primeira geração: sob esse aspecto, há uma divergência fundamental, de base, entre a poética surrealista e aquela dos beats, com sua intensa relação com a música em geral, e com o jazz, especialmente em Jack Kerouac.
Tudo isso – poesia, artes visuais, cinema, algum teatro – e também o inclassificável, ou a ampliação do campo das modalidades artísticas. Exemplos, o tratamento dado ao objeto; os jogos; transcrições de sonhos e simulações de estados patológicos; a colagem e fotografia, que já existiam como expressão artística, mas não com a importância que lhes foi conferida pelo surrealismo. E mais: a atribuição de valor à “arte bruta” e àquela “primitiva”, das sociedades tribais e culturas arcaicas, como representações do mundo mítico, expressões do pensamento mágico, aproximações à linguagem primordial. Também no surrealismo, assim como em outras rebeliões e movimentos inovadores contemporâneos, o novo e a recuperação do arcaico, a crítica do presente e a reivindicação de tradições sempre se moveram de modo sincrônico, alimentando-se mutuamente.
Caracteriza ainda o surrealismo a extensa produção de ensaios, manifestos e panfletos. Sendo artístico e literário, foi um movimento de ideias: atualização de temas românticos e tentativa de síntese de rebelião individual e revolução.
Daí Octavio Paz, em O Arco e a Lira, ao reconhecer que “o surrealismo não é uma poesia, mas uma poética”, observar que “é, mais ainda, e, sobretudo, uma visão de mundo” [21].
É certo que todo movimento artístico e literário também é visão de mundo, de modo mais ou menos explícito. Classicismo pode ser interpretado como adoção de um cosmo aristotélico, racional, organizado e harmônico; romantismo é anti-cartesianismo e anti-iluminismo (oposições partilhadas com o surrealismo); naturalismo e realismo, sendo escolas literárias, também são interpretações aristotélicas e cientificistas do mundo; o simbolismo, contrapondo-se ao naturalismo, realismo e parnasianismo, sustenta a autonomia da linguagem, em uma argumentação, principalmente através de Mallarmé, impregnada de filosofia. Mas a produtividade do surrealismo em reflexão, crítica e metalinguagem é especial, pela amplidão de seus propósitos.

O exame do surrealismo exige sintonia fina. Houve mudanças em suas posições ao longo da sua história. A trajetória política foi oscilante: moveu-se entre um pólo romântico e outro marxista, alternando fluxos e refluxos na militância e proselitismo. O pensamento de Breton é paradoxal, podendo-se observar nele contradições no tratamento de temas como a criação poética e escrita automática, misticismo e esoterismo, política. Como já foi observado por Anna Balakian, “há de fato variações dinâmicas na poética de Breton, que seus principais poemas traem muitas de suas premissas teóricas”, mencionando autores que apontaram “inconsistências no uso por Breton das palavras “surrealismo”, “realidade” e “razão” pelos padrões da lógica normal”.[22] Tais oscilações, inconsistências e variações (aqui acompanho o pensamento de Balakian) não devem servir à argumentação para desqualificar o surrealismo. Ao contrário: são qualidades. Poetas não são doutrinadores, defensores de sistemas fechados. O surrealismo pode parecer inconsistente por ter sido dinâmico e aberto, do modo como sugerem Béhar e Carassou: “o surrealismo defende uma estética do irresoluto, do espontâneo, do inacabado”.
Há dificuldades adicionais na caracterização do âmbito do surrealismo, do elenco de autores e obras aos quais pode legitimamente ser aplicado esse qualificativo: surrealista. É inadmissível seu uso arbitrário, associado a qualquer coisa esquisita ou absurda, com frequência a serviço da piada; por exemplo, toda vez que algo por aqui suscita este comentário: “o Brasil é um país surrealista” – antes o fosse… Mas não se pode aceitar delimitações por demais restritivas e paroquiais, extensões da política literária, adotadas até mesmo por alguns surrealistas históricos, ou vinculados ao movimento outrora liderado pro Breton.
Enfim, por todas essas razões – principalmente pelo caráter multiplamente polêmico, ao polemizar com os outros e ser objeto de polêmicas, além de surrealistas haverem polemizado entre si – assunto não falta. Daí a quantidade de referências bibliográficas em notas de rodapé, que procura aproveitar o que já foi publicado no Brasil, ou em português. Remete, sempre que possível, a textos disponíveis no meio digital, que podem ser consultados on line.[23] A intenção, ao indicar tantas conexões, é que este livro equivalha a um hipertexto e sirva como guia para pesquisas adicionais.
Argumenta-se, aqui, em favor do surrealismo diante de uma produção bibliográfica disponível que vai da adesão incondicional até a objeção idiossincrática. Quanto a esse tópico, objeção idiossincrática, exemplos não faltam no Brasil, onde o surrealismo é minoritário, tendo repercutido e influenciado menos que em outros países do nosso continente, e em Portugal. Por isso, haverá parágrafos tratando da sua recepção aqui. Abordar surrealismo em uma edição brasileira de grande circulação, dirigida a um público amplo, não deixa de ser uma provocação – e isso torna sua preparação mais estimulante ainda. Tomar partido, escrever em favor do surrealismo, continua a equivaler à produção de textos de combate, atestando sua vitalidade.

2 | ORIGENS

Desde a origem, surrealismo não foi um movimento especificamente francês. Mas começou parisiense em seu cosmopolitismo, que pode ser associado à condição de pólo ou capital cultural da metrópole francesa, atraindo os integrantes de Dadá como o romeno francófono Tristan Tzara e o alemão Max Ernst; mais tarde, chegariam a Paris e ao surrealismo espanhóis e catalães como Miró, Dali, Buñuel, entre tantos outros.
A propósito, ainda há algum viés eurocêntrico e francófono em muito da bibliografia sobre surrealismo. Transparece em coletâneas preparadas por autores diretamente ligados ao grupo e às atividades encabeçadas por André Breton. Em Arcanos da Poesia Surrealista, publicado no Brasil,[24] surrealismo parece ser um fenômeno exclusivo da literatura francesa. No extenso Autobiographie du Surréalisme de Marcel Jean,[25] há informação sobre o que se passou na Inglaterra e Tchecoslováquia, entre outros lugares; mas é como se fosse desenhado um mapa-múndi sem os continentes americanos e a península ibérica. Nas séries de periódicos surrealistas franceses, como La Brèche – Action Surréaliste dos anos 60, é mínima a presença de autores não-francófonos. Nessas publicações, surrealismo em Portugal nunca recebeu registros compatíveis com sua importância. O Dictionnaire du Surréalisme et de ses environs[26] (Dicionário do Surrealismo e de seus arredores) é importante, porém incompleto, além de datado. Mapeamentos mais amplos, dando conta de Portugal e da América Latina, são algo da década de 1980 para cá. Mais recente, a antologia-ensaio Il y aura une fois de Jacqueline Chénieux-Gendron,[27] obra de fôlego, com um capítulo sobre autores de língua espanhola, além da inserção de autores de outras línguas e nacionalidades, deixa de lado as literaturas de língua portuguesa. Uma coletânea brasileira de ensaios sobre surrealismo tem mil páginas[28] – e, mesmo havendo nela o que cortar ou reduzir, também é evidente que, dentro de seus propósitos, foram deixadas a descoberto áreas, temas e questões. Daí o interesse de levantamentos que continuam a localizar autores e grupos, mesmo submetendo-os a um crivo rigoroso nos quesitos da qualidade, interesse e vínculo efetivo[29].

O surrealismo foi literário, em primeira instância. Apresentou-se através de criações poéticas, e o Manifesto do Surrealismo de 1924 é, inequivocamente, um manifesto literário, inclusive no que tem de antiliterário, como em sua própria definição:

Surrealismo, s. m. Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe a exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética e moral.

A colaboração de poetas e artistas plásticos já era uma constante, desde suas primeiras manifestações. Mas os nomeados como tendo feito “ato de Surrealismo Absoluto” eram todos escritores: Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Delteil, Desnos, Éluard, Gérard, Limbour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac (como se vê, a lista inclui desde autores notáveis até meros circunstantes). O manifesto contém a lista de escritores que “poderiam passar por surrealistas”: Dante, Shakespeare, Young, Swift, Sade, Chateaubriand, Benjamin Constant, Victor Hugo, Marceline Desbordes-Valmore, Alousius Bertrand, Rabbe, Poe, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Jarry, Germain Nouveau, Saint-Pol-Roux, Léon-Paul Fargue, Jacques Vaché, Pierre Reverdy, Saint-John Perse, Raimond Roussel.. E essa observação importante, sobre as narrativas “góticas”, de mistério: “No âmbito da literatura, só o maravilhoso é capaz de fecundar as obras pertencentes a um gênero inferior, como o romance e, de modo geral, tudo o que participa do gênero narrativo”.
Já a lista que complementa o segundo manifesto, de 1929, anunciando o lançamento de Le Surréalisme au service de la Révolution (O Surrealismo a serviço da revolução) tem artistas plásticos e de outras áreas: Max Ernst, Salvador Dali, Yves Tanguy, mais o cineasta Buñuel e o crítico de cinema Georges Sadoul. Mas o surrealismo voltaria a ser definido por Breton, em seu derradeiro manifesto, Do Surrealismo em suas obras vivas, de 1953, como movimento que “nasceu numa operação de grande envergadura que tinha por objeto a linguagem”.
Sendo um movimento de poetas, por isso mesmo pretendia-se total, abrangente; não apenas formulou uma poética e uma teoria da criação, mas quis que a poesia ultrapassasse os limites aos quais foi confinada na cultura burguesa e voltasse a se confundir com a vida. Ser poeta equivale a alcançar a gnose, o conhecimento superior; por isso, Breton terminou seu último manifesto com afirmações sobre a “intuição poética”:

[…] desaferrada, enfim, pelo surrealismo, quer ser não somente assimiladora de todas as formas conhecidas, mas também ousadamente criadora de novas formas – vale dizer, capaz de abraçar todas as estruturas do mundo, manifesto ou não. Somente ela nos fornece o fio que nos reconduz ao caminho da Gnose, enquanto conhecimento da realidade supra-sensível, “invisivelmente visível num eterno mistério”.

Poesia total. Uma posição tipicamente romântica, lembrando o tão conhecido fragmento de Novalis: “Poesia é o real verdadeiramente absoluto. Este é o cerne da minha filosofia. Quanto mais poético, tanto mais verdadeiro”. E afim ao misticismo, ao tomar como objetivo final a gnose, o conhecimento absoluto. Mas um misticismo da imanência, materialista. E um romantismo sem cristianismo, nisso divergindo da primeira geração romântica alemã de Novalis e Schlegel. O surrealismo adotou a crítica iluminista da religião dos Voltaire e Diderot; ao mesmo tempo, assim como os românticos, rejeitou o racionalismo cartesiano e o cientificismo dos representantes do Esclarecimento. A propósito daquela rica configuração intelectual do final do século XVIII, na qual surge o movimento romântico, uma das razões da admiração surrealista pelo Marquês de Sade foi, além de levar a imaginação a extremos, sua implacável crítica à religião e à ideia da existência de Deus.
Já se falou em poetas-filósofos a propósito de Novalis e do romantismo alemão; em poetas-pensadores e poetas-críticos a propósito de Baudelaire, T. S. Eliot e Ezra Pound – mas essas designações também se aplicam a Breton, especialmente, e também a outros de seus pares. Dimensão importante dessa produção, o debate político: um debate passional e pendular, de aproximações e afastamentos, adesões e rupturas. Surrealistas ambicionavam o poder? Queriam ser poetas-ministros ou artistas-comissários? Certamente não. A politização é uma das consequências do projeto fundamentalmente romântico de confundir poesia e vida; e mais, de romper as barreiras entre a esfera simbólica e aquela das coisas, de superar a contradição entre o sujeito e o objeto. O mesmo projeto resumido nesta frase também de Novalis: “O mundo deve ser tornado romântico”. Ou, de modo mais programático, por Schlegel, seu companheiro no grupo romântico de Jena do final do século XVIII:

A poesia romântica não é só uma filosofia universal, progressista. Seu fim não consiste apenas em reunir todas as formas de poesia e restabelecer a comunicação entre poesia, filosofia e retórica. Também deve misturar e fundir poesia e prosa, inspiração e crítica, poesia natural e poesia artificial, vivificar e socializar a poesia, tornar poética a vida e a sociedade, poetizar o espírito, encher e saturar as formas artísticas de uma substância própria e diversa, e animar o todo com a ironia.[30]

Nenhuma dessas sínteses seria rejeitada por um surrealista. A continuidade entre surrealismo e romantismo foi proclamada por Breton; de modo enfático, no Segundo Manifesto do Surrealismo:

Mas, no momento em que os poderes constituídos em França grotescamente se preparam para celebrar com festas o centenário do romantismo, nós, pelo que nos respeita, dizemos que esse romantismo, do qual estamos prontos a passar, hoje em dia, por causa, desde que cauda em alto grau preênsil,[31] por sua própria essência, em 1930, reside inteiramente na negação desses poderes e dessas festas; que, para ele, cem anos de existência equivalem à sua juventude, que a sua chamada época heróica já não pode ser honestamente considerada mais que o vagido de um ser que mal começou, por nosso intermédio, a dar a conhecer seu desejo; e que, a admitirmos que o que antes dele foi pensado - “classicamente” - era o bem, quer, sem sombra de dúvida, todo o mal.

Nessa perspectiva, o romantismo não é mais visto como período da história da literatura, datado do final do século XVIII até meados do XIX, porém como rebelião que se renova ao prosseguir, da qual o surrealismo se declara porta-voz e continuador.
Há retomada de programas românticos em proclamações de Breton, como aquela ao final de Arcano 17,[32] em favor da “única revolta criadora de luz” que “só pode passar por três vias: a poesia, a liberdade e o amor”. As três vias, prossegue Breton, “devem inspirar o mesmo zelo e convergir para traçar o próprio perfil da eterna juventude, no ponto menos descoberto e mais iluminante do coração humano”. O mesmo vale para outra de suas frases famosas: ‘Transformar o mundo’, disse Marx; ‘mudar a vida’, disse Rimbaud: para nós, estas duas palavras de ordem não são mais que uma só.”[33] Modos da busca da unidade proclamada no Segundo Manifesto do Surrealismo, ao denunciar “as velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda agitação insólita por parte do homem” e afirmar que: “Tudo indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios”.

Os fundamentos do surrealismo são aqueles expostos em seu primeiro manifesto: a defesa da imaginação e a crítica ao realismo literário e ao positivismo; a supressão da distinção entre vigília e sonho e entre loucura e normalidade, com a consequente valorização do delírio e demais “estados mentais patológicos”, com uma entrevista de um psiquiatra com seu paciente dado como exemplo de restabelecimento “do diálogo em sua verdade absoluta”; a adoção da psicanálise freudiana, especialmente da noção de inconsciente; a escrita automática e as imagens poéticas feitas de aproximações de realidades distintas como sua expressão; o elogio da distração, de um “estado de completa distração” frente ao mundo, acompanhado pela defesa da criação involuntária e das intervenções do acaso; a disponibilidade e não-submissão da vida e da criação ao domínio do útil; e, para sintetizar, a declaração de “inconformismo absoluto” que encerra o manifesto.
Nenhum surrealista divergiu desse manifesto. Mas dos subsequentes, sim. O próprio Breton acabaria por admitir reparos ao Segundo Manifesto do Surrealismo, que, além da adesão ao marxismo, “materialismo dialético”, como o denominava Breton, apresenta de modo mais enfático e contundente a questão da ética surrealista, acompanhada por um acerto de contas, após o “racha” no grupo e a troca de invectivas através de panfletos, denunciando concessões de ex-integrantes ao mundanismo literário, além de equívocos de interpretação.
Breton sabia dessas oscilações, como se vê por estas afirmações na abertura do penúltimo de seus manifestos, Prolegômenos a um terceiro manifesto do Surrealismo ou não, de 1942:

Sem dúvida há norte demais em mim para que algum dia eu venha a ser homem de aderir plenamente a alguma coisa. Este norte, a meus próprios olhos, comporta ao mesmo tempo fortificações de granito e a bruma. Se, por um lado, sou excessivamente capaz de tudo pedir a um ser que reputo belo, por outro, bem longe ando de conceder o mesmo crédito a essas construções abstratas denominadas sistemas. Diante deles meu fervor decresce e fica bem claro que o impulso proveniente do amor já não funciona.[34]

Por isso, tratar de surrealismo requer acuidade. Inclusive no exame dos autores que foram e não foram surrealistas; que participaram diretamente desse movimento, para depois romperem ou se distanciarem. Listas dos poetas franceses de maior prestígio e importância no século XX incluem, além de André Breton e Benjamin Péret, surrealistas da primeira à última hora, os nomes de Paul Éluard e Louis Aragon, sendo pacífico que o melhor da lírica de ambos está no período de participação surrealista, até a ruptura de ambos – de Aragon em 1932 e de Éluard em 1936 –, para se tornarem porta-vozes de uma postura mais militante e tradicionalista. E, ainda, de Robert Desnos, defenestrado do grupo em 1929 e objeto de reavaliação posterior.[35]
Outros poetas, tendo participado do grupo propriamente surrealista em algum momento, prosseguiram sua imagética, como René Char e Jacques Prévert, além de Tristan Tzara, René Daumal, Raimond Queneau, Francis Ponge, Yves Bonnefoy, entre outros.
Em A idade viril,[36] Michel Leiris reconhece, de modo honesto e claro, a marca ou permanência do surrealismo nessa obra autobiográfico que, declaradamente, tem Nadja de Breton como paradigma para a criação de uma “espécie de colagem surrealista, ou melhor, de fotomontagem”:

Por diversas razões – divergências de ideias misturadas a questões pessoais, o que seria demasiado longo expor aqui – eu havia rompido com o surrealismo. O fato, porém, é que continuava impregnado dele. Receptividade em relação ao que nos é dado sem que o tenhamos buscado (na forma do ditado interior ou do encontro casual), valor poético atribuído aos sonhos (considerados ao mesmo tempo como ricos em revelações), amplo crédito concedido à psicologia freudiana (que põe em jogo um material sedutor de imagens e, por outro lado, oferece a cada indivíduo um meio cômodo de se alçar a um plano trágico, tomando-se por um novo Édipo), repugnância em relação a tudo o que é transposição ou arranjo, ou seja, compromisso falacioso entre os fatos reais e os produtos puros da imaginação, necessidade de faltar às conveniências (quanto ao amor, especialmente, que a hipocrisia burguesa trata muito facilmente como matéria de vaudeville, quando não o relega a um setor maldito): eis algumas das grandes linhas de força que continuavam a me atravessar quando tive a ideia deste livro […]

Isso, além do capítulo das relações mais complexas com o surrealismo, às vezes sincrônicas, outras vezes antagônicas, como aquela de Antonin Artaud. Desligando-se do grupo em 1927 depois de coordenar o “bureau” de pesquisas surrealistas, e assinando um manifesto contra Breton, o criador do Teatro da Crueldade mais tarde voltaria a proclamar-se surrealista[37] além de reconciliar-se com Breton.
E também das participações mais discretas, porém constantes, como aquela de Marcel Duchamp, além das relações sempre ambivalentes, a exemplo daquela com Francis Picabia. E de Salvador Dali, autor não só de uma poderosa obra pictórica e em outros campos, mas de uma contribuição fundamental através do “método paranóico-crítico”, porém repudiado em 1936 pelo marketing, pela autopromoção e mercantilismo acrescido por iniciativas como a visita ao papa e a declaração de simpatia por fascismos.
A partir de meados do século XX, há maior presença no surrealismo de autores que, não sendo da França, pertencem à literatura de língua francesa, a exemplo dos antilhanos Aimé Césaire, Magloire de Saint’Aude e René Depestre, de Malcolm de Chazal, das Ilhas Maurício, e da egípcia Joyce Mansour. E daqueles de outras línguas e literaturas, nem sempre registrados na bibliografia disponível. Se, dos poetas não-francófonos associados ao surrealismo, o nome de maior projeção é o de Octavio Paz, sua presença já vinha sendo marcante no mundo hispânico pela influência sobre a geração espanhola de 1927 (de García Lorca, Rafael Alberti, Vicente Aleixandre, Jorge Guillém, Luis Cernuda, Gerardo Diego e Juan Larrea), além de atrair Buñuel e Dali; e na ibero-américa, com os argentinos Aldo Pellegrini e Enrique Molina, o chileno Enrique Gómez-Correa, os peruanos César Moro e Adolfo Emilio Westphalen, e muitos outros. Nos Estados Unidos, além do beat-surreal Philip Lamantia, dialogaram com o surrealismo poetas modernizadores como Lawrence Ferlinghetti, Frank O’Hara e John Ashbery; isso, antes de formar-se em 19863, o grupo surrealista norte-americano de Chicago, encabeçado por Franklin e Penelope Rosemont.
Em Portugal, a partir da década de 1940, temos a relação mais paradoxal com surrealismo, através da geração de Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Mário Henrique Leiria, Cruzeiro Seixas, Alexandre O’Neill e outros. Além de Breton e seus pares não haverem reparado nessa produção portuguesa, o surrealismo mais ativo e produtivo em Portugal, aquele com Cesariny encabeçando-o e atuando como seu porta-voz, surgiu de uma cisão de um grupo surrealista inicial, passando a intitular-se por isso de “abjeccionismo” ou “surrealismo-abjeccionismo”[38]. Ainda na literatura de Portugal, sua presença evidente em uma lírica contemporânea de Herberto Helder, Isabel Meyrelles e Luísa Neto Jorge, e em autores mais recentes.
No Brasil, a repercussão e presença do surrealismo não foram da mesma ordem, mas é inegável a influência sobre poetas da estatura de Murilo Mendes e Jorge de Lima; e, declaradamente, sobre o poeta Manoel de Barros e o prosador Campos de Carvalho. Isso, além de expressar-se através das esculturas de Maria Martins e de um criador múltiplo como Flávio de Carvalho; e em contemporâneos: o “beat-surreal” Roberto Piva[39], Sergio Lima, Afonso Henriques Neto, Floriano Martins e outros, cronologicamente ainda mais recentes.
Por isso, não se pode confinar o surrealismo àquelas pessoas que de algum modo participaram do grupo encabeçado por Breton. Pelas mesmas razões, é impossível aceitar o tipo de posição adotada, entre outros, por Jean-Pierre Schuster, legatário de Breton, distinguindo entre surrealismo “histórico” e “eterno” e dando o surrealismo “histórico” por encerrado com a auto-dissolução do grupo surrealista francês em 1969. Ou, de modo taxativo, por Claude Courtot: “até 1969, data de sua auto-dissolução, apenas os membros do grupo surrealista podiam dizer quem era surrealista ou quem havia deixado de sê-lo”, e que (aqui citando André Pieyre de Mandiargues), “só podiam prevalecer-se do título de surrealistas aqueles que se haviam sentado a uma mesa de café com André Breton”[40]. Concebido desse modo, movimento surrealista, ou grupo surrealista, ou o que for, torna-se igreja.
É preciso chamar a atenção para os critérios de inclusão no surrealismo do próprio Breton. Este, certamente, não adotava apenas a convivência pessoal e a presença em reuniões de um grupo como parâmetro, porém, muito mais, e com precedência, o valor, a qualidade daquilo que um autor tinha para apresentar. Exemplos, entre outros, as expressões de sua admiração pela artista plástica Frida Kahlo, a quem conheceu em sua estada no México em 1937. Não obstante o declarado desinteresse de Frida por surrealismo – considerava-se realista, e sua arte seria uma representação de seus sofrimentos – Breton a expôs em 1938 em Nova York. E o modo como avaliou sua pintura foi precursor, antecipando seu prestígio contemporâneo.
Nessa categoria das descobertas bretonianas e do interesse por um artista por seu valor, e não pela disposição em fazer parte ou não de um grupo surrealista, também cabe o que ele escreveu sobre o antilhano Aimé Césaire, assim contribuindo para a difusão do autor de Batouque e Les armes miraculeuses, e da ideia de negritude, lançada por Césaire, junto com outros caribenhos, René Depestre e Magloire de Saint’Aude, também afins ao surrealismo. E, ainda, Breton ter achado Malcolm de Chazal – junto com Jean Paulham – assim que foi publicado Sens-plastique, e imediatamente acrescentá-lo ao surrealismo. Sem participar pessoalmente de qualquer atividade ou reunião, Chazal continuaria, nas décadas seguintes, a colaborar em publicações surrealistas.
Certamente, a mais paradigmática dessas relações pautadas pelo valor foi aquela de Breton com Julien Gracq. Ao estrear em 1938 com Le chateau d’Argol, que teve uma recepção crítica nula (mais tarde, após Le rivage de Syrtes e sua recusa do prêmio Goncourt por essa obra, ele se tornaria mundialmente reconhecido), Gracq enviou o livro para Breton, que, imediatamente, respondeu com uma carta entusiasmada. Gracq pode ser considerado expoente de uma narrativa em prosa surrealista; dedicou páginas admiráveis de ensaio a Breton e ao surrealismo; mas nunca quis participar de quaisquer reuniões ou manifestações coletivas, o que nunca interferiu na amizade de ambos. 
Discutir se alguém “é” ou “não é” surrealista tem algo de aristotélico. Converte o surrealismo em coisa ou substância. É mais produtivo examinar relações: a presença dos temas, ideias e modos de expressão surrealista em escritores, pensadores e criadores artísticos em geral; sempre reconhecendo, é claro, o papel central de Breton, como intelectual e poeta. Isso, com o propósito de contribuir para enxergar mais e ler melhor, a partir do conhecimento sobre surrealismo.

3 | O COMEÇO

Períodos de formação de movimentos são fascinantes. Relatá-los é registrar aventuras: histórias de pessoas em busca de um sentido para a vida; da sua identidade e do modo de expressá-la. O foco é, por isso, biográfico. Mais tarde, afirmado e consolidado o movimento, o exame volta-se mais para a produção, as obras que podem ser-lhe associadas. Mas a confusão entre autor e obra se mantém no surrealismo. Especialmente em Breton: Nadja[41] – sua obra de maior repercussão e circulação junto com os Manifestos do Surrealismo – é autobiográfica; o autor é protagonista e os fatos narrados na primeira pessoa aconteceram tal como relatados. Em outras de suas obras – O Amor Louco,[42] Les Vases Communicants[43] (Os Vasos Comunicantes) e Arcano 17, também confunde relato autobiográfico com ensaio e poesia em prosa.
O mesmo ocorre com outras obras capitais no surrealismo, como O Camponês de Paris[44] de Louis Aragon, crônica e reflexão sobre esse importante capítulo do surrealismo, sua relação com a capital francesa, e com a metrópole moderna, em geral.


Há qualquer coisa de misterioso e mágico no modo como pessoas se encontram e, em uma espécie de conspiração, engendram algo de novo. Mais ainda, quando isso se dá em plena convulsão, durante a Primeira Guerra Mundial. Os encontros, nas palavras de Breton, “de alguns jovens, entre os quais me contava e a quem a guerra de 1914 acabava de privar de todas as suas aspirações, para arrojá-los em uma cloaca de sangue, imbecilidade e lama.”[45]
Breton estudava medicina; foi mobilizado como enfermeiro e, logo depois, como residente para especializar-se em neurologia. Servia no hospital de Nantes, onde, no começo de 1916, conheceu Jacques Vaché, ferido por um estilhaço de obus.[46] Vaché, desenhista (fazia charges) e inventor de frases que já eram poesia surrealista, como esta: “O fogo da lâmina de barbear se comunica com dois ou três quartinhos em forma de ovo em um ninho”, ou “o barman me espia talvez também pisado sob os globos oculares, derramando o irisado, em lâmina, no arco-íris”;[47] e, de uma de suas últimas cartas: “Sairei da guerra docemente amalucado, talvez bem ao modo desses esplêndidos idiotas de aldeia (assim o espero) ou então… ou então… que filme produzirei! – Com automóveis loucos, você sabe, pontes que cedem e mãos maiúsculas que sobem pela tela em busca de qual documento! – inútil e inapreciável! – Com colóquios tão trágicos, vestido a rigor”. Vaché, um escritor anti-literário: já publicava, mas inventou a expressão pohètes para referir-se ironicamente aos poetas. Vaché, o dandy – “Todos os traços do dandy se reencontram em Vaché”, no dizer de Marguerite Bonnet[48] – que se produzia e disfarçava, adotando falsas identidades e pseudônimos – Harry James, Jean-Michel Strogoff – e criando vestuários, usando sua fluência no idioma inglês, ou apresentando-se como o poeta André Salmon (mais velho, ligado a Picasso e ao cubismo). A identidade flutuante, expressão do inconformismo e da recusa de qualquer papel social definido, fazendo-se passar por estrangeiro onde quer que estivesse. O protagonista de episódios como este, da estreia de Les mamelles de Tirésias de Apollinaire, na qual marcara encontro com Breton (tal como esse o relata): “O primeiro ato terminara. Um oficial inglês promovia uma grande algazarra no poço da orquestra: só podia ser ele. O escândalo da representação o havia excitado prodigiosamente. Entrou na sala, revólver em punho, e dizia que ia atirar no público.” Vaché morreu em janeiro de 1919, após injetar-se uma overdose de morfina, em um quarto de hotel em companhia de mais cinco rapazes, dos quais outro também morreu – mas Breton sempre acreditou que havia cometido suicídio.[49]
Pouco depois, Breton seria transferido de volta a Paris, servindo em hospitais, atendendo aos que apresentavam transtornos mentais, como delírios – experiência fundamental na gênese do surrealismo, ao conferir valor poético a essa produção delirante, ao mesmo tempo em que, tomando conhecimento da contribuição de Freud, passou a dispor de um instrumental para interpretá-los. Foi quando conheceu Aragon e Philippe Soupault. Dessa vez, foram encontros já nem tanto por obra do acaso, mas pelas circunstâncias da vida literária nas metrópoles, aproximando autores em pontos de encontro como a livraria “Les Amis du Livre” de Adrienne Monier.
Breton, Aragon e Soupault formaram um trio inseparável; por isso, foram apelidados de “mosqueteiros” por Paul Valéry, o grande e consagrado pós-simbolista a quem Breton frequentava e que sugeriria o título da primeira revista literária que esse trio lançaria, Littérature – como lembra Chénieux-Gendron, por antífrase ao remeter à frase de Verlaine: “e todo o resto é literatura”.
Foram encontros não só entre escritores, nos momentos de distensão naquele mundo ainda conflagrado, mas também com obras literárias. A observar, a confusão deliberada entre as descobertas dessas obras e a vida, o dia-a-dia. Uma das leituras que Breton levou para o front, conforme relata Béhar, foi Les Jours et les Nuits, Os Dias e as Noites,[50] de Alfred Jarry – que efetuou a transição entre simbolismo e vanguarda ao estrear, em 1896, a peça Ubu Rei, com o consequente escândalo e tumulto. Os Dias e as Noites, em “uma linguagem voluntariamente desestruturada, desterritorializada, dispersa e incapaz de ganhar coerência”,[51] é sobre o período em que Jarry prestou serviço militar até conseguir dispensa (no livro, o protagonista deserta). Um recrutado lendo o livro sobre as peripécias de outro recrutado, com um viés anti-militarista elevado ao máximo. Lembra, entre outras sobreposições de literatura e vida, o Jack Kerouac leitor das narrativas de navegação de Hermann Melville e Joseph Conrad ao trabalhar na marinha mercante em 1942 e escrever um relato de viagens marítimas, The sea is my brother.
Outro autor de cabeceira de Breton naquele período foi Rimbaud – lembrando que pouco antes ocorrera a descoberta das suas prosas poéticas– Uma Temporada no Inferno e Iluminações, que acabavam de ganhar edições. E, logo a seguir, viria o impacto da leitura de Os Cantos de Maldoror de Lautréamont.
A propósito, assim como o surrealismo é herdeiro do romantismo, também é continuador direto do simbolismo; ou, antes, de um ambiente literário, do simbolismo-decadentismo, ao qual Lautréamont e Rimbaud podem ser associados. Conforme observei em outras ocasiões[52], surrealistas prosseguiram o romantismo radicalizado, encarnado no simbolismo do fim de século XIX francês.
De fato, simbolismo literário e esotérico, bem como o decadentismo (indissociável do simbolismo) do fim de século francês e da belle-époque, correspondem a um período de renovação intensa.[53] Deixaram uma crônica de excentricidades, provocações e transgressões por autores que praticaram a experimentação no plano da escrita e da vida. Fazem parte dessa crônica o desregramento e as aventuras de Rimbaud; a vida estranha de Germain Nouveau, recolhendo-se ao silêncio depois de longas peregrinações a pé; as intensas crises de Mallarmé; a diversidade de seitas, crenças e rituais, até mesmo, ao que consta, missas negras, que teriam sido frequentadas por autores ligados ao simbolismo; o anarquismo niilista que dividia suas simpatias com um conservadorismo integrista; a boemia desenfreada. São seus protagonistas, também, os que efetuaram a passagem do simbolismo às vanguardas, como Jarry, que encenou e encarnou sua criação nos palcos e na vida, através de uma série de escândalos, e Apollinaire, poeta inovador, pensador das vanguardas, além de haver sido o criador do termo “surrealismo”.
Esse alcance do simbolismo foi observado por estudiosos como Edmund Wilson, que o qualificou como “segundo romantismo” em O Castelo de Axel[54], ao comentar “o afastamento dos poetas fin de siècle da vida geral de seu tempo”, interpretando-o como recusa ou negação: “na sociedade utilitária que fora produzida pela revolução industrial e pela ascensão da classe média, parecia não haver lugar para o poeta”. Daí voltarem-se para o mundo simbólico, artificial.
O espírito antiburguês dos autores daquela geração e desse movimento teve prosseguimento através de vanguardas e, especialmente, do surrealismo. Na belle époque, o período denominado pelo ensaísta norte-americano Roger Shattuck de “o grande banquete”,[55] entre 1885 e 1918, o que, em décadas anteriores, foi excentricidade, comportamento de exceção dos Baudelaire e Nerval, passava a caracterizar um ambiente artístico e literário, com reflexos nos critérios de valor de obras: interessavam, não pela reprodução de uma norma ou cânone, mas como desvio, assim iniciando o primado vanguardista da experimentação. O artista passava a ser, não mais aquele que eternizava o cânone, o ideal estético à maneira do classicismo, ou que retratava realidades, mas alguém que rompe com esse ideal, afirmando-se como individualidade e diferença. Daí as proclamações que identificavam o novo ao valor, como o “é preciso ser absolutamente moderno” de Rimbaud.
Por isso, quem vê o surrealismo exclusivamente como apologia do delírio, criticando-o pelo irracionalismo, comete um equívoco. Deixa de compará-lo ao caráter frenético do período que o precedeu, entre a vigência do simbolismo e o despontar das vanguardas, e que, mais apropriadamente, pode ser visto como exacerbação do romantismo e da influência de Baudelaire, em sua negatividade extrema e radicalidade na experimentação. A loucura havia campeado nas décadas precedentes. Surrealistas lhe deram continuidade; ao mesmo tempo, tentaram atualizá-la filosoficamente, com os acréscimos da contribuição psicanalítica, do pensamento marxista, e, certamente, de avanços científicos que alteraram a própria imagem de mundo.
Dos autores desse período de convulsão e contestação, Lautréamont e Rimbaud, mais que quaisquer outros, foram tutelares para o surrealismo. Suas leituras por Breton, Aragon e Soupault equivaleram a experiências alucinatórias, em mais um capítulo da confusão entre literatura e vida. Breton relatou “o momento em que me iniciei verdadeiramente em Rimbaud, comecei a estudá-lo profundamente e me apaixonei por ele”, ao descobrir os inéditos que acabavam de vir à luz, mostrando “uma virada transcendental em sua evolução, a despedida definitiva da poesia e a passagem a uma forma distinta de atividade”. Foi em 1916:

“Era como se estivesse enfeitiçado […] Através das ruas de Nantes, Rimbaud se apoderou de mim, totalmente: o que ele viu, naturalmente em outro lugar, interferia com aquilo que eu via, e inclusive o substituía. […] O longo caminho que me conduzia cada meio-dia, só e a pé, do hospital da Rua Bocage até o formoso parque de Procé, me abriu toda classe de evasões rumo aos próprios lugares de Iluminações: aqui, a casa do general em “Infâncias”; ali, “esta porta de madeira arqueada”; mais adiante, alguns movimentos totalmente insólitos que Rimbaud descreveu […]”[56]

O poético a sobrepor-se ao real imediato, configurando-o: a experiência surrealista típica. E de modo muito coerente com o sentido da própria mensagem de Rimbaud, como destaca Julien Gracq, em seu ensaio sobre Breton:

Em lugar de ver no sentimento poético o resíduo, em meio a uma sociedade submetida às normas da razão, de uma maneira de viver e de sentir condenada, objeto de discretos suspiros e piedosos lamentos, Rimbaud o invoca ao contrário como um pressentimento, uma solicitação veemente de ser preciso “mudar a vida” para levá-la à altura da lancinante revelação. De lamentação nostálgica e lamento estéril, a poesia para ele e através dele se torna o selo de uma promessa, chamado, grito de convocação, incitação à “mobilização dos novos homens que se põem em marcha”[57].

Gracq fala ainda de “seu tom de anunciação peremptório, galvanizante, com o sopro o mais evangélico (não é questão de entrar nas vistas suspeitas de Claudel) que jamais atravessou a poesia francesa”. Exemplifica essa qualidade de convocação e anunciação da poesia de Rimbaud através de uma seleção de trechos:

A verdadeira vida está ausente. Não estamos nesse mundo… eu, na ânsia de atingir o lugar e a fórmula… Possui talvez segredos para mudar a vida?
É mais que certo, é oráculo o que digo… Eis o tempo dos Assassinos
Um toque de teu dedo no tambor liberta todos os sons e começa a nova harmonia…
Quando iremos afinal, além das praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, da nova sabedoria, a fuga dos tiranos e demônios, o fim da superstição, para adorar – os primeiros! – o Natal na terra! O canto dos céus, a marcha dos povos!
…e então me será lícito possuir a verdade em uma alma e um corpo.
É a vigília, contudo. Acolhamos todos os influxos de vigor e de autêntica ternura. E à aurora, armados de ardente paciência, entraremos nas cidades esplêndidas.[58]

Algo de alucinação, também, marcou a descoberta e primeiras leituras de Os Cantos de Maldoror de Lautréamont, tal como relatado por Aragon em Lautréamont et nous.[59]. O livro de Aragon, de 1967[60], remonta em tom nostálgico àquela época de trincheiras e serviço em hospitais na guerra ao relatar como ele e Breton liam Lautréamont em 1917: revezavam-se a vocalizar o exemplar único de Os Cantos de Maldoror que haviam achado, “em um cenário inverossimilmente maldororiano”: à noite no quarto andar do hospital militar de Val-de-Grâce em Paris, onde serviam na ala daqueles em tratamento psiquiátrico. Enquanto recitavam blasfêmias – “Eu fiz um pacto com a prostituição a fim de semear a desordem entre as famílias – ou alguma passagem mais lírica, os internados entravam em surto:

Às vezes, por detrás das portas trancadas a cadeado, os loucos urravam, nos insultavam, batendo na parede com seus punhos. Isso dava ao texto um comentário obsceno e surpreendente. Houve noites que não se pode imaginar. […] Os bruscos buracos de silêncio [decorrentes do pavor provocado pelos alarmes de bombardeios sobre Paris] eram mais impressionantes ainda que o alarido demencial. […] Por mais que aquele fosse um tempo de acontecimentos consideráveis, parece-me principalmente tomada por essa sombra crescente que Maldoror estendia sobre nós.[61]

A realidade transformada em extensão de Os Cantos de Maldoror.
Breton também lia bastante psiquiatria. Pode-se supor, e esta já seria uma atitude surrealista, que os Kräpelin e Pierre Janet lidos e ao mesmo tempo corroborados através dos sintomas dos pacientes do hospital de Val-de-Grâce, assim como Os Cantos de Maldoror de Lautréamont e as prosas poéticas de Rimbaud, eram examinados como se fossem a mesma coisa. Não rebaixava as obras poéticas à interpretação psiquiátrica (como já o fizeram tantos críticos), mas, ao contrário, enxergava a dimensão poética nos sintomas vistos e estudados. Daí transpor um método psiquiátrico então em voga, a associação livre, para a criação poética. E, também, converter a psicanálise freudiana em poética; algo, aliás, que nunca recebeu o endosso de Freud.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Dorothea Tanning (Estados Unidos, 1910-2012)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 135 | Junho de 2019
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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[1] Paul Eluard, Capitale de la douleur, Paris, Gallimard (coleção Poésie), 1966, tradução minha, assim como todas as citações nas quais o tradutor não estiver indicado.
[2] Ivsic, Radovan. Poésies. Paris: Gallimard, 2004, tradução de Eclair Antonio Almeida Filho. Radovan Ivsic nasceu em Zagreb, Croácia, em 1921, e mora em Paris.
[3] Malcolm de Chazal, Sens-plastique, Gallimard, Paris, 1989. A frase foi escolhida por Roberto Piva como epígrafe de Ciclones, de 1997.
[4] Breton, Manifestos do Surrealismo, tradução de Sérgio Pachá, Rio de Janeiro, Nau, 2001, ou Manifestos do Surrealismo, tradução de Jorge Forbes, prefácio de Claudio Willer, Brasiliense, São Paulo, 1985. A mais recente destas edições, da Nau, é mais completa e inclui textos importantes como Peixe Solúvel e Carta às Videntes. Mas tem um problema editorial sério: as notas de rodapé escritas pelo próprio Breton, algumas extensas, nunca poderiam ter sido transformadas em notas de fim. Isso interfere na leitura e desobedece à intenção do autor. Tanto é que na Oeuvre Complète de Breton pela coleção Pleiade da Galllimard, que vale como edição crítica, as notas de Breton vêm no rodapé, e as da organizadora, Marguerite Bonnet, ao final de cada volume.
[5] Em La clé des champs, Societé Nouvelle des Éditions Pauvert – Le livre de Poche, 1979.
[6] Pierre Mabille, Le miroir du merveilleux, Les Éditions du Minuit, 1962.
[7] Exemplifico. Em 2008, dei um curso mais longo de surrealismo, com 12 aulas, 36 horas-aula, no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. Pedi aos participantes que lessem, entre outros textos, Peixe Solúvel, de Breton. Para acrescentar conhecimento experiencial àquele bibliográfico, disse-lhes que fossem procurar peixe solúvel no Parque da Luz (em frente ao Museu da Língua Portuguesa, no prédio da Estação da Luz). Alguns acharam.
[8] Claudio Willer, Geração Beat, Porto Alegre, L&PM Pocket, 2009.
[9] Segui, naquele ensaio, a caracterização da beat como movimento literário feita pelo próprio Allen Ginsberg.
[10] Alexandrian, Sarane, André Breton, par lui même, Paris, Éditions du Seuil, 1971.
[11] Chénieux-Gendron, Jacqueline, O Surrealismo, São Paulo, Martins Fontes, 1992
[12] No já mencionado O Surrealismo.
[13] Aqui também sigo Chénieux-Gendron.
[14] Prefiro a designação como “dadá” e não como “dadaísmo”: é mais fiel ao propósito que determinou a escolha desse nome, qual seja, de uma palavra absolutamente sem sentido, achada ao acaso.
[15] Breton, Les pas perdus, Gallimard, 1949.
[16] Publicado, entre outros lugares, na coletânea Las peras del olmo, Barcelona: Seix Barral, 1982.
[17] “André Breton ou a busca do início”, em Signos em Rotação de Octavio Paz, São Paulo, Perspectiva, 1972 – ou La búsqueda del comienzo, Madri, Fundamentos/ Espiral, 1974, que inclui outros textos do poeta e ensaísta mexicano sobre surrealismo.
[18] “Conde”: Cortázar se refere a Lautréamont (Isidore Ducasse, que adotara o pseudônimo de Conde de Lautréamont para publicar Os Cantos de Maldoror), autor desta máxima: “A poesia deve ser feita por todos, não por um”. “Vagabundo”: é Rimbaud, e Cortázar certamente alude à sua proclamação, na “Carta do Vidente”, da vidência através do desregramento dos sentidos.
[19] Julio Cortázar, Obra Crítica 1, organização de Saúl Yurkievich, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998.
[20] No capítulo inicial de Geração Beat e no que escrevi na Agulha Revista de Cultura, em http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag50willer.htm; Achei o termo no ensaio de Maria Lúcia Dal Farra sobre Herberto Helder, A Alquimia da Linguagem, Moraes Editora, Lisboa, 1978; o sentido foi-me esclarecido pela autora.
[21], Octavio Paz, O Arco e a Lira, tradução de Olga Savary, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.
[22] Na introdução a André Breton today.
[23] Em especial, na publicação digital portuguesa Triplo V, www.triplov.com, o amplo “Dossiê Surrealismo” em www.triplov.com/surreal/index.html, compilado por Maria Estela Guedes e Floriano Martins; a quantidade de ensaios sobre surrealismo em Agulha Revista de Cultura, http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/, cuja primeira fase (1999-2010) contou com minha participação, ao lado de Floriano Martins, como coeditor.
[24] Arcanos da Poesia Surrealista, organizada por Jean Schuster e José Pierre, tradução de Antonio Houaiss, São Paulo, Brasiliense, 1985.
[25] Éditions du Seuil, Paris, 1978.
[26] Biro, Adam e René Passeron, Dictionnaire Général du Surréalisme, Lausanne, Office du Livre, 1982.
[27] Gallimard, 2002 (coleção Folio).
[28] O Surrealismo, Jacó Guinsburg e Sheila Leirner, organizadores, diversos autores, São Paulo, Perspectiva (coleção Signos), 2008.
[29] Como aqueles por Floriano Martins, O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia da América Latina, São Paulo, Escrituras, 2001; Un nuevo continente – Antología del Surrealismo en la Poesía de Nuestra América, Caracas, Monte Ávila, 2008; Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad, México, UACM, 2015; Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América, Fortaleza, ARC Edições, 2016; Viagens do Surrealismo – A criação (Antologia poética), Fortaleza, ARC Edições, 2018; outros de seus ensaios serão citados aqui.
[30] Citado por Octavio Paz em Signos em Rotação, tradução de Sebastião Uchoa Leite, São Paulo, Perspectiva, 1972.
[31] Em itálico no original, assim como nas citações seguintes de Breton.
[32] Breton, André, Arcano 17, tradução de Maria Teresa de Freitas e Rosa Maria Boaventura, São Paulo, Brasiliense, 1985. Nesta e nas notas seguintes, é citada a edição consultada, com preferência, se disponíveis, para traduções em português.
[33] É o final de Discurso no Congresso de Escritores, em Posição Política do Surrealismo, conjunto de textos agregado às edições dos Manifestos do Surrealismo.
[34] Breton, “Prolegômenos a um Terceiro Manifesto do Surrealismo ou não”, incluído na edição já citada de Manifestos do Surrealismo. Os itálicos são aqueles do texto original.
[35] Com a publicação de Oeuvres, Gallimard, Paris, 1999, e de ensaios recentes sobre sua poesia.
[36] Leiris, Michel, A idade viril, tradução de Paulo Neves, São Paulo: Cosac Naify, 2003 – a edição brasileira de L’Âge d’homme.
[37] Como em sua conferência mexicana “Surrealismo e Revolução” de 1936, publicada em Escritos de Antonin Artaud, tradução, organização e notas de Claudio Willer, L&PM (coleção Rebeldes e Malditos), 1983 e reedições.
[38] A propósito, de Mário Cesariny, A Intervenção Surrealista, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997; e o substancioso A Única Real Tradição Viva – Antologia da poesia surrealista portuguesa, de Perfecto E. Cuadrado, Assírio & Alvim, 1998.
[39] “Beat-surreal” é termo adotado pelo próprio poeta, ao referir-se a seu livro paranóia no documentário Uma outra cidade de Ugo Giorgetti e em entrevistas em outras ocasiões.
[40] Courtot, Claude, “L’être ou le paraître surrélaliste” em Aspectos do Surrealismo, organizado por Robert Ponge, edição de Organon : revista do Instituto de Letras  da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vol. 8, nº 22, 1994.
[41] Breton, Nadja, tradução de Ivo Barroso, São Paulo, Cosac Naify, 2007.
[42] Breton, O Amor Louco, tradução de Luiza Neto Jorge, Lisboa, Estampa, 1971.
[43] Breton, Les vases communicants, Paris, Gallimard, 1985.
[44] Aragon, O Camponês de Paris, apresentação, tradução e notas de Flávia Nascimento, Rio de Janeiro, Imago, 1996.
[45] Breton, Entretiens (1913-1952), Gallimard, 1969: é a transcrição de suas entrevistas radiofônicas por André Parinaud; cito da edição espanhola, Breton, El Surrealismo – puntos de vista y manifestaciones, Barcelona, Barral Editores, 1977; há edição de Portugal, Entrevistas, editora Salamandra, 1998..
[46] Minhas principais fontes, a biografia de Breton por Henri Béhar, André Breton – Le grand indésirable, Paris: Calmann-Lévy, 1990; as já citadas entrevistas de Breton; de Marguerite Bonnet, André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste, Paris, Librairie José Corti, 1988; de Pierre Daix, La Vie Quotidienne des Surréalistes, 1917-1932, Paris, Hachette, 1932.
[47] A primeira dessas frases, citada em Béhar, André Breton – Le grand indésirable, a segunda, em Arcanos da Poesia Surrealista, organizada por Jean Schuster e José Pierre, tradução de Antonio Houaiss, São Paulo, Editora Brasiliense, 1985: nessa coletânea de surrealistas encontra-se também o depoimento de Breton sobre Vaché, publicado inicialmente em Les pas perdus. Mais de Vaché em Cravan/ Rigaut/ Vaché, Lisboa, Edições Antígona, 1980.
[48] Em André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste.
[49] A controvérsia sobre a morte de Vaché parece persistir: Béhar acredita em morte acidental, Bonnet pende para a versão do suicídio.
[50] Jarry, Os Dias e as Noites, seguido de O Amor Absoluto, tradução de Manuel João Gomes, Lisboa, Editorial Estampa, 1981.
[51] Cito do prefácio dessa edição portuguesa de Os dias e as noites.
[52] Em Lautréamont – Os Cantos de Maldoror, Poesias, Cartas - Obra Completa, tradução, prefácio e notas de Claudio Willer, Iluminuras, São Paulo, 2005.
[53] Tomo simbolismo na formação mais ampla, e não na periodização escolar, a partir do manifesto de Moréas, de 1883. Em caso contrário, nem Rimbaud poderia ser incluído: quando estabeleceu contato com os poetas de Paris em 1871, eram todos parnasianos.
[54] Reedição brasileira pela Companhia das Letras, São Paulo, 2004, tradução de José Paulo Paes.
[55] Roger Shattuck, The Banket Years, The Origins of the avant-garde in France; na edição francesa, Les Primitifs de L’Avant-garde, Flammarion, Paris, 1974.
[56] As citações são de Entretiens.
[57] A citação é de “A uma razão”, em Iluminações – utilizei a tradução de Ivo Barroso.
[58] Também segui as traduções de Ivo Barroso nessa série de citações.
[59] Aragon, Lautréamont et nous, Paris, Sables, 1992.
[60] Aragon se desligou do surrealismo e rompeu com Breton em 1932, ao aderir ao comunismo soviético, tornar-se um corifeu do PC francês e da volta às formas tradicionais na poesia.
[61] Também citei e comentei essa passagem de Aragon no meu prefácio de Lautréamont, Os cantos de Maldoror, Poesias, Cartas (obra completa), tradução, prefácio e notas de Claudio Willer, Iluminuras, São Paulo, 2005, e em outros lugares.

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