quarta-feira, 27 de maio de 2020

PÉRICLES PRADE | Floriano Martins – Em torno de um atípico paideuma poético


Floriano Martins acaba de lançar, com o selo ARC Edições, a volumosa poesia completa Antes que a Árvore se feche, cujo título foi extraído de um de seus extensos poemas, constituindo significativo paideuma, posto que não necessariamente nos moldes dos conceitos de Frobenius (Força interior) e de Pound (Renovação da tradição), tão ao gosto dos concretos, pois nele também estão embutidas produções lavradas em parceria com outros poetas, a exemplo do jogo coletivo “cadáveres esquisitos”, utilizado na fase inicial da irrupção surrealista. Não deixa, contudo, de ser uma espécie de sábia ordenação de artefatos poéticos, mapeamento das etapas evolutivas de sua poesia, a partir de A outra ponta do homem (1998) até Atlas atrevido (2018).
No entanto, não se trata de um modelo ou sistema fechado. O próprio título do acervo, ao contrário, explicita que se está diante de uma obra aberta (melhor dizendo: com um final aberto) nos campos da criação e do ato interpretativo, regida pela fruição (jouissante) reveladora de labiríntica matéria-prima vocacionada à emoção estética, prenhe de peculiares instâncias orgânicas, impondo-se como coerente estatuto poético, imantado pela originalidade do patrimônio literário, além de corresponder, em certa medida, ao correlato objetivo de que falava Eliot, mormente ao tratar do conjunto acabado de obra(s) de um autor.
Nem por isso será adotado, sem reservas, o denominado close reading (ponto de vista voltado às palavras) no aflorado exame (salientando-se o nível semântico) dos elementos internos da materialidade linguística, considerando os poemas (ou metapoemas) como organismos dinâmicos, pautados por ambuiguidades e tensões, mas sem radical preocupação discursivo-estrutural.
Como leitor-polo da vultosa obra, porém, sabedor da dificuldade do total desnudamento dos enigmas e armadilhas da linguagem mascarada, às vezes obscura e impenetrável, impulsionada por escavações arqueológicas dos signos do cosmos vocabular do autor, de movimentos circulares e mutantes, inclusive nas entrelinhas dos poemas, parece-me ser útil a Estética da Recepção como critério analítico.
Percebe-se, à partida, após a conclusão da leitura vertical do tecido desse painel, em que confluem os movimentos surrealismo/barroco/simbolismo, os três permeados pelas características musicalidade/visualidade/teatralidade, inerentes àquelas estratégias estilísticas, respeitada a especificidade de cada qual, porque, convinhável é dizer, transitam entre si sem pedir licença.
Alerta-se que, antes de examiná-los, per se, convém apontar e justificar, em breves linhas, essas características quase sempre entrelaçadas.
Digo musicalidade inerente por que, — nessa árvore sígnica, cifrada, mitológica, subversiva, proverbial, espontânea, erótica, lúdica, aforística, irônica e ousada (“as noites uivam feito um pulmão repleto de música”), plantada sob o fluxo e o influxo contínuos de relâmpagos/estilhaços/fagulhas (fragmentos epopeicos), sob a qual o poeta dialoga consigo mesmo (prisioneiro da solidão) como se genuflexo estivesse no confessionário, mergulhado em si (viagem de idas às profundezas do ser e vindas à superfície onde sobram as inquietações), mas demonstrando empatia com estranhos (nem sempre leitores ), apesar da catarse (derivada de uma memória viciada ao recuperar o passado) ao retratar o mundo interior e exterior de ruínas (carnavalização contida), — ela é fundamental ao emprestar, com apuro, velocidade ao segmento rítmico nos versos em cadeia.
E assim o é na conhecida concepção de Valéry, e melhor afeiçoada à de Pound (no sentido de que a poesia se atrofia quando se afasta da música) para embalar a dicção da imaginação fervente da matéria, propiciatória de manipuladas imagens profusas, intensas, polivalentes e cúmplices de mistérios, espantos e tumultos numa espiral gozosa através dos sentidos doados e de surpreendentes epifanias alquímicas.
Em suma, atento o criador à sonoridade das camadas do poema, e ao valor mágico-musical das palavras, construtores da partitura poética, sem desprezar o silêncio à maneira de John Cage (“O ritmo é do silêncio que nos recusa”).
Quanto à inerência da visualidade, perpassa parte relevante dos poemas, confortada aos conceitos horacianos relativos aos contrapontos ut poesis pictura (como a poesia é pintura) e ut pictura poesis (como a pintura é poesia).
Nota-se, com frequência, a eleição conceitual em consonância com ut poesis pictura, dado o caráter pictórico de variados versos (“A árvore vermelha de Mondrian é o princípio da discórdia”), certa plasticidade paralela à da linguagem (e por isso mesmo visual), relações entre o verbal e o não-verbal, possibilitadoras da elaboração mental dos temas, quadros, cenários e personagens. Aliás, ressalta-se que Stéphane Mallarmé concebia o poema como um objeto pictórico-verbal.
Representativos, entre outros, são os poemas escritos tendo como paradigmas/estímulos os desenhos (Lembrança de homens que não existiam), gravuras em metal (O Sol e as Sombras) e fotografias (Tabula Rasa) do artista plástico Valdir Rocha. Afora as referências a Klee, van Gogh, Bacon, Blake, Goya, Bosch, e ao nosso Antônio Bandeira, entre tantos trazidos à ribalta.
Ademais, os livros componentes da obra compacta são ilustrados por Juliana Hoffmann (bem como a capa), na pegada ut pictura poesis, embelezando-a sob o olhar estético. Não é novidade, mas melhor conduz o rumo da leitura. No antigo Egito O Livro dos Mortos continha imagética representação, avultando as Iluminuras medievais e as ulteriores ilustrações de Dom Quixote, Eneida, As mil e uma noites etc. etc. Afinal, o próprio Floriano Martins assegura que “o poema é uma pintura”, atestando sua sensibilidade visual. Como sabido, além de poeta militante, ele é artista fazedor de colagens e de intrigantes fotografias.
A respeito da teatralidade (qualidade do que é teatral, por óbvio), conversam os poemas com as mencionadas vertentes, dando-lhes tons dramatúrgicos, configurando-se, com autonomia (ainda que não haja exterior espetáculo), porque “O Teatro não pode parar”, em um Teathron (nada é mais possível do que o seu Teatro Impossível ) singular, ritualístico, como fonte prazerosa, no plano espacial e no altiplano temporal, na tentativa de superar, nesse ludismo quase infantil, as tensões, os conflitos e o sofrimento (pathos), desencadeando uma dramaturgia poética de recorte surreal, barroco e/ou simbólico, caracterizadora, com densidade metafórica, de sua pessoal e rica cosmovisão.
A esta altura é de bom aviso sinalar a confluência dessas inclinações literárias, muitas vezes entranhadas e superpostas.
Destaca-se o surrealismo, que não rende homenagem à tradição surrealista enquanto tal, de inspiração bretoniana, pondo-se a latere do automatismo psíquico da fase inaugural. Não é, enfim, um típico poeta surrealista, muito embora seja possível pinçar passagens de similar ressonância desde o primeiro (“silêncio das cicatrizes traçadas nos pulmões do kyrie eleison), mediano (“lâmpadas descem as escadas em busca de presságios”) e último livro enfeixado nessa montagem (“Temo pelos bigodes cáusticos da solidão”).
Todavia, não corresponde a um exagerado surrealismo metafísico, em que pese o viés transcendental potencializado por certos deslocamento dos estados mentais flutuantes e pendulares (consciência/inconsciência) na fatura imagética dos poemas como objeto estético, haja vista o indeterminado balanço das associações livres, a par da anárquica e dispersiva subversão cronológica dos polimorfos sintagmas, quando os devaneios, geradores do delírio, se instauram mais agudos, por exemplo ao serem usadas repetições (polissíndeto) como a da palavra-chave abismo, seduzido o poeta, na esteira de Bachelard, pela imagem preferida (ideia nuclear até certo ponto melancólica), que, com humor mais negro do que branco, arrasta as vozes do criador, incorporado pelas fantasmas no caos consentido.
Essa busca resultante da transcendência, catapultada pela circularidade abissal, nada tem a ver com a metafísica. Daí que não vejo qualquer afinidade ou fervor nessa domada incontinência verbal, notadamente nos poemas em prosa. Seria, quiçá, reflexão ontológica, espécie de sabedoria poética ou aquele tipo de Poesia transcendental fornida por Novalis (geminando-a com a Filosofia), ou, ainda, uma transcendentalidade à moda de Emerson, sem intimidade com a metafísica de raízes neo-kantianas.
Parece-me que se conecta com um surrealismo mais comportado (Martins abandonou o grupo surrealista paulista em 1997). Até porque, se a linguagem é a Mansão do Ser (Heidegger), o poeta estaria mais próximo da visão pessoana, a do verso “O que em mim sente 'stá pensando”. Sentimento e razão, a dor de pensar.
Observa-se, então, que o surrealismo deste primoroso poeta passou a ser mitigado (afim ao de Murilo Mendes, com recaídas cubistas), no curso do tempo (malgrado a paixão por Benjamin Péret e Aimé Césaire), sendo in progress absorvido pelas teias do barroco.
No que tange à aura do barroco (vocábulo ambíguo devido às vicissitudes semânticas), espargido com saliência maior em Alma em Chamas, e diluídos temporalmente os traços capitais (não guardam os poemas relação direta com a poesia antirrealista do século XVII (Luís de Góngora), também transfiguradores do real, permissivos das oposições dualistas da coincidência dos contrários (coincidentia oppositorum), sem maneirismo, no seu caso, apesar da ostentação, exuberância e suntuosidade da linguagem elisiva e alusiva, mas à deriva dos artifícios ornamentais.
O que há, no fundo, é um parentesco sentimental e espiritual, tendo influenciado, inclusive, poetas como Jorge Guillén e Gerardo Diego, o expressionismo alemão dos anos 20, e, na França, Valéry Larbaud, além da poesia simbolista (final do século XIX e início do XX), com Stefan George e Mallarmé. Se inspirou o surrealista Benjamin Crémiex, pode-se dizer o mesmo no tocante a Floriano Martins, agitado pelo sensorial espírito dionisíaco e pelos mitos nietzschianos do eterno retorno.
Esse fulgor e requinte são, em especial, encontradiços no encartado livro Alma em Chamas acima noticiado (“Morta no desespero do fogo, seu corpo desfigurado gelava a noite”), com o léxico opulento da mesma sorte visto e lido em outros poemas (e na prosa poética), soltos ou agrupados, gozado o mundo através dos sentidos (avultando as sensações cromáticas, tácteis e olfativas), onde são intensos o erotismo (que insinua perversão), a carnalidade e os retratos sensuais de mulheres (“gozem sozinhas, e me enterrem no quintal” / “Teus gemidos projetam suas chamas em meu sexo” /
“Bendita seja forma de teu clitóris, e a noite que me consome”), inclusive aquelas em relação às quais se apropria da persona feminina no domínio da alteridade (“Meus mamilos queimavam” / Minha nudez de bruços espalhada pelo sofá”), nesse estágio secularizando o transcendente (“Vamos desenhar a espinha dorsal de um enigma”), ao tematizar, pelo fusionismo (unificação dos pormenores), a ilusão e a fugacidade da vida, visando à unidade das contradições com o poder crepitante das metáforas (“Comporta-se o náufrago como um farol caído”) de misteriosa expressividade, objetivando, com esses contornos de multifacetado estilo, o alegre advento das maravilhas e das surpresas (construção zeugmática das frases), de tal arte que, em paralelo, se aproxima da poesia simbólica.
O simbolismo, ou, melhor dito, a serventia dos símbolos nos poemas, atravessa toda a produção, sem decalque na Escola Simbolista, valendo-se das sugestões, das correspondências de sotaque baudelairiano (mais rimbaudiano na prosa poética), numa linguagem um tanto falocêntrica, sinestésica, variando a imagética simbólica quando se imiscui nas órbitas surreal e barroca.
Quando a imagem se põe mais pura com o símbolo eleito (em geral de feição erudita), imbrica-se com o lirismo que passeia com desenvoltura, visto como “o desenvolvimento de um grito”, para usar as palavras de Valéry, no momento do aperfeiçoamento do caráter musical do poema (ritmo/melodia/harmonia).
Tudo decorre de um simbolismo energético, na toada do discurso livre, indireto, como componente demiúrgico (função poética), associado, no instante da imaginação excitada (e seus punti luminosi), ao mito da queda, o criador compartilhando o eu-lírico (o eu é o seu abismo) de estrato subliminar.
É preciso ser um poeta magnífico, de indiscutível excelência, como Floriano Martins, devotado ao sagrado, para conciliar, com naturalidade, esses movimentos constituintes de uma estrutura azeitada, coesa, não obstante as transeuntes peculiaridades, transformando-as em uma obra poética complexa, de qualidade perene, pós-moderna, na expectativa de que as gerações futuras possam degustá-la quando se depararem com o paideuma de nossa época, vertido ou não em outras formas de expressão estético-literária.


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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 151 | Março de 2020
Artista convidado: Lia Testa (Brasil, 1977)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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