segunda-feira, 13 de julho de 2020

JEFFERSON DEL RIOS | Fernando Arrabal no cemitério de automóveis


Fernando Arrabal entra na Praça da Sé na manhã úmida de novembro passado. Havia chovido, mas o sol brilhava. O escritor espanhol, naturalizado francês, olhou as pessoas, os cartazes e grafites, os prédios em volta e diz: Estamos em um lugar vivo. Andando em direção à catedral, explica que na França existem 54 templos góticos obedecendo a disposição das estrelas da constelação Virgem e voltados para Jerusalém.
Ao entrar na Sé, pergunta razão da cúpula, contrária ao gótico puro. Fica sabendo que o autor do projeto pensou em um espaço maior no interior para reunir os fiéis. Lembra de outra construção parecida, em Florença. Observa as esculturas, o altar e as ogivas sustentadas por colunas. Na saida, visita o jardim das esculturas da praça. Senta-se em um banco entre obras de Marcelo Nietzsche, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Domenico Calabrone, olhando o céu. Um homem pequeno, sólido como um pescador, olhos azuis claros que dizem muito. O olhar filtra-se por meio de óculos de aros redondos de metal.
São Paulo deve a esse visitante momentos teatrais superiores com O Cemitério de Automóveis, em 1968, com Stênio Garcia entre outros, e encenação do argentino Victor Garcia, emblemática de uma década de rupturas e confrontos estéticos e ideológicos; O Arquiteto e o imperador da Assíria, em 1970, com Rubens Corrêa e José Wilker, e Torre de Babel, em 1977, com Ruth Escobar. Espetáculos provocadores alternando temas bíblicos com imagens grotescas. Quando o romancista e dramaturgo quando surgiu na década de 1950 e foi considerado um herege na sua terra. Censores viram em suas peças vilipêndio dos valores católicos. No auge da ditadura de Franco, um jornal pediu sua castração para livrar o mundo da descendência de um degenerado.
O ataque apenas confirmou o artista. É exatamente esse universo de culpas, martírios e castigos que sua ficção faz soar de forma implacável. Tanta religiosidade repressiva, filha da Inquisição e do sistema franquista, refletiu-se ao longo do tempo em na pintura Goya, na literatura de Valle Inclán, no cinema de Louis Buñuel e Carlos Saura, e nesse cidadão pacífico que visita a Sé de São Paulo. Arrabal está ao lado dos melhores espanhóis. E ainda ama as igrejas, conhece suas origens citando estudos específicos como Os Construtores das Catedrais, de Guy Dubuy e Os Mistérios das Catedrais, do alquimista francês Fulcanelli.
No Brasil, Arrabal evitou o circuito das celebridades em trânsito. Preferiu o centro velho. Veio como homenageado da Feira do Livro de Porto Alegre e, em São Paulo, para duas palestras na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Afora o jantar de com o pessoal do teatro, oferecido por sua amiga Ruth Escobar, dedicou-se a passeios pela capital, munido de uma Rolleiflex. Segui-lo numa dessas andanças valeu conversas sobre artes, história, filosofia ou curiosidades a respeito dos amigos Pablo Picasso, Tristan Tzara, André Breton, Samuel Beckett, Eugene Ionesco, Salvador Dalí e até digressões sobre enxadrismo, sua paixão.
Terminada a visita à Sé, Arrabal quer ver o prédio Matarazzo. Como? Lembra-se? Pois a antiga sede de grupo empresarial da Praça do Patriarca, hoje, depois Banespa (hoje Prefeitura) ficou-lhe na memória. Uma olhada no Anhangabaú e se deu por satisfeito. Enveredou pela Rua Libero Badaró. Perguntado se a massa humana – a paisagem social penosamente desigual o faz lembrar de outra cidade, das muitas que conhece, contesta imediatamente: Não, não. Isto aqui é única, a mistura de gente, de cores de pele. Esse comercio que, bem sei, abrigará nas suas portas mendigos quando a noite cair.
O andarilho curioso enfrenta o calor, os apertos, o trânsito, fotografando pedaços da Babel: placas de Restaurante a Quilo, Engraxa sapatos. De repente, um pedido: comer em um lugar tranquilo.
Levado ao tradicional restaurante Itamarati, no largo de S. Francisco, frequentado por advogados, achou boa a coincidência: Sou formado em Direito. Nota que o prato do dia é cozido com grão-de-bico. Um voo de memória que despertou o espanhol: la comida de los pobres y campesinos en España.
Na saída, Arrabal quer mais: Vamos ao Museu do Ipiranga? – sem ter ideia do que é a Avenida do Estado no meio da semana. Mas por que o prédio Matarazzo ou o Ipiranga? Porque Arrabal guia-se por razões subjetivas (Matarazzo é o nome de uma editora europeia de livros de arte); discorre sobre meandros palacianos de Carlos de Espanha e de Eleonor de Equitânia. Logo, tem interesse pelo lugar onde o príncipe português proclamou a independência.
Logo, em marcha. Na rua Tabatinguera, descobre a capela de Santa Luzia, na paisagem degradada. Faz questão das fotos enquadrando a banca de flores na calçada e uma faixa de pano anunciando o nome da santa. No grito do Ipiranga. Ficou sinceramente impressionado com o colosso de granito e bronze perpetuando o 7 de setembro de 1822. Elogiou os jardins versalhescos e bem cuidados. Quase não se encontram parques assim em Madri.
Terminado um rápido contato tropical com um pé de jaca carregado e pilhas de coco verde, indica a próxima etapa: avenida Paulista, o Trianon e Alameda Santos. Sempre mapeando fragmentos arquitetônicos, inventos linguísticos dos anúncios e tipos populares. Arrabal, que vive em Paris nas imediações do Arco do Triunfo, absorve e fotografa o dia a dia as cidades imensas. Foi assim que, em 1973, produziu o livro A Nova York de Arrabal, com fotos em preto e branco acompanhadas de anotações. Em uma delas, com uma jovem mulata olhando a câmera, escreveu: Gostaria de saber por que esta desconhecida fixa a objetiva. Isso me interessa infinitamente mais do que o mistério da criação.
O Brasil, Arrabal voltou para casa com muitos filmes na bagagem. Não prometeu nada, mas a sucesso de lugares comuns paulistanos que captou poderão reaparecer um dia em imagens e poesia.

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Fernando Arrabal nasceu em 1932, em Mellila, possessão espanhola encravada em Marrocos. Aos seis anos, a Guerra Civil (1936-1939), que derrubou a República Espanhola instaurando a ditadura do General Franco, provocou uma tragédia em sua família. O pai, militar republicano dedicado à pintura nas horas vagas, recusou-se a apoiar o golpe. Condenado à morte, teve a perna comutada para prisão perpétua. Fugiu só de pijama em uma noite de inverno com um metro de neve nos campos. Jamais foi encontrado. Sua mãe, favorável ao franquismo, tentou banir a imagem paterna da vida do filho, chegando a recortar à tesoura sua imagem nas fotos caseiras. A dor desta perda está no romance Baal-Babilônia (ou Viva la Muerte, o sinistro brado dos falangistas espanhóis) e em Carta ao General Franco. O tema está de volta em seu novo livro, Cerimonia por um tenente abandonado e narra, as primeiras oito horas do golpe franquista e a prisão do seu pai também chamando Fernando.
Hoje – passadas as polêmicas que o cercaram – Arrabal é visto como um dos grandes poetas da cena contemporânea e tem suas obras completas editas em vários países, o que inclui, por supuesto, sua Estanha democratizada que, enfim, o reconhece como um dos seus grandes.
Arrabal constata que há um componente de sorte em sua vida atribulada. Se vou aos Estados Unidos, logo faço amizade com Allan Ginsberg; vou a Tóquio e conheço Yukio Mishima, diz. Chegando a Paris em 1955, bolsista de teatro e, em seguida, auto exilado, e desconhecido, incorporou-se rapidamente ao grupo surrealista de André Breton (pouco depois permitiu-se uma dissidência sob o nome de Movimento Pânico, que não era muito mais que uma blague contra o mandonismo de Breton). Aos poucos, esse homem gentil, casa com Luce, namorada de juventude, dois filhos, vida razoavelmente metódica, foi criando vínculos estreitos com alguns dos maiores criadores do século. Mas ele não os descreve como seres intangíveis. São amigos de copo e xadrez.
Tristan Tzara –Era pequeno, gordo e feio, mas encantador. Como eu (risos). Mas roubava no xadrez, o que é inadmissível nesse jogo. Quando criou o Movimento Dadaísta, no Café Voltaire de Zurique, Lenin frequentava o local e demonstrava simpatia pelo movimento. O que teria sido o mundo se, em vez do marxismo-leninismo, tivesse surgido o dadaísmo-leninismo?
Jean Genet – Ele se irritava por não conseguir me vencer no xadrez, e também roubava no jogo. Dizia que, se tivesse o poder divino, jogaria com as pedras brancas e venceria Deus.
Luis Buñuel – Estávamos no Festival de Cannes e sugeri uma visita a Picasso, que vivia na região. Buñuel respondeu (imitando a voz grave e arrastada do cineasta): Ah, não vamos não! Ele vai ficar mostrando quadros sem parar e pedindo nossa opinião.
Pablo Picasso – Teve muitas mulheres, mas acho que nunca foi amado exatamente pela sua exuberância sexual. Somente a última delas, a viúva, o amou, sobretudo quando ele estava envelhecido e frágil.
Samuel Beckett – Passou dificuldades antes de ser reconhecido. A mulher dele lecionava piano. Ele sempre falou francês com muito sotaque e, quando lecionava inglês, os alunos riam do seu sotaque irlandês. Depois de viver anos em uma espécie de água-furtada, mudou-se para um apartamentozinho de três peças no Boulevard Saint Jacques. Era incapaz de deixar de responder uma carta.
Salvador Dalí – Todos nós fazemos pose de vez em quando, um pouco de gênero, mas só por minutos. Dalí, não. Ele era capaz de fazer um tipo e sustentar o clima seis, oito horas, uma noite inteira. Um dia ligou para minha casa e disse para minha mulher: Aqui fala o divino Dalí convocando Arrabal para estar à meia-noite no meu hotel quando, então, iremos iniciar uma obra teatral.
Victor García – Tinha um modo peculiar de explicar suas ideias como diretor teatral. Uma vez disse que, para ele, os dois maiores dramaturgos eram Calderón de La Barca e eu. Perguntado por quê, respondeu: Porque a obra de Calderón é horizontal e a de Arrabal, vertical.
Bobby Fisher (gênio do xadrez, ex-campeão etc.) – Vive sempre na defensiva com a imprensa. O pior é que se tornou racista, embora seja judeu. Suas últimas declarações são horríveis.
Luce Moreau Arrabal (sua mulher) – Ela tem doutorada na Sorbonne em letras espanholas. É uma pessoa tímida de bom-senso. Sempre que penso em tomar uma atitude quixotesca, ela me adverte: Cuidado, Fernando, não queira imitar seu pai.
Teatro – Sonho com um teatro em que humor e poesia, pânico e amor sejam uma coisa só. O rito teatral se transformaria então em uma opera mundi com os fantasmas de Dom Quixote, os pesadelos de Alice, o delírio de K. e os sonhos humanoides que frequentariam as noites de uma máquina IBM.

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A perda do pai, adversário dos franquistas, marcou vida e obra do espanhol. Abaixo, o tema como é tratado no romance Baal-Babilônia.
Um homem enterrava os meus pés na areia. Era uma praia de Melilla, tinha eu três anos. Recordo-me das mãos dele nas minhas pernas. Enquanto o sol brilhava, o coração e o diamante explodiam em enumeráveis gotas de água.
Muitas vezes me perguntam o que teve mais influência sobre mim, o que eu admiro mais, e, então, esquecendo Kafka e Lewis Carrol, a terrível paisagem e o palácio infinito, esquecendo Gracian e Dostoiévsky, os confins do universo e o sonho maldito, eu respondo que é uma criatura da qual só consigo recordar as mãos nos meus pés de criança: meu pai.

SUGESTÃO DE VÍDEO


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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 154 | Junho de 2020
Artista convidado: Fernando Arrabal (Espanha, 1932)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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