quarta-feira, 9 de setembro de 2020

SALOMÃO ROVEDO | Cervantes segundo Fernando Arrabal

 


N
os tempos de comemoração dos 400 anos do Dom Quixote (1605-2005) – que ainda hoje ressoa – as leituras se focam, não só nas obras de Miguel de Cervantes, mas também no vasto repertório de obras correlatas, destinadas a esmiuçar o acervo literário e a vida do genial fidalgo.

Um dentre os milhares de trabalhos sobre Miguel de Cervantes é Um escravo chamado Cervantes (tradução de Carlos Nougué, Editora Record, 1999), de autoria de Fernando Arrabal. Não é uma obra recente, primeiramente foi lançado em 1996 na França, onde o autor é mais reconhecido, para aportar três anos depois cá entre nós.

Fernando Arrabal é um autor que ficou conhecido pelo talento rebelde, explosivo, que caracterizou alguns autores nascidos sob a ditadura franquista. Desde o tempo das primeiras peças e filmes, criou fama como o inventor do teatro do pânico – é o que disseram de suas chocantes peças teatrais – fama que carregou para toda a obra que produziu.

Ser um rebelde revolucionário nas letras é – ao mesmo tempo – liberdade e opressão. Se por um lado lança um autor nos mares da fama de maneira espetacular, por outro, obriga-o a seguir uma estrada nem sempre gloriosa, porque cheia de balões de ar.

Este livro – Um escravo chamado Cervantes veio a lume baseado num documento espetacular, datado de 1569 e descoberto em 1820, segundo o qual, Cervantes, aos 21 anos, sob a acusação de homossexualismo, foi condenado pelo rei da Espanha, a ter a sua mão direita amputada e a um desterro de dez anos. Pena essa não cumprida graças à fuga para a Itália.


É claro que a partir da descoberta quase tudo que se escreveu sobre Miguel de Cervantes teria que passar a uma severa e rigorosa revisão. Fernando Arrabal tomou para si a tarefa de exercer uma parcela dessa revisão. Se ele foi feliz ou infeliz nesta tarefa, dize-o a fama que o livro arrebanhou. Seja como for, mexer com Cervantes, sua obra e sua glória, é algo assim como condenar – o autor e a audácia – ao cadafalso.

Para classificar Cervantes como um escravo, Arrabal nos remete não só ao motivo direto do documento, comprovando, sim, que a escravidão se verifica não apenas sob os grilhões de ferro, mas igualmente sob a ditadura efetiva que a nobreza exercia sobre os súditos. Aliada dos poderes secundários da Igreja, cuja opressão se verifica como segundo degrau hierárquico da dominação, essa escravidão atingiu Cervantes diretamente no cerne do seu labor literário. Como autor ele não conseguiu romper a barreira dos intelectuais próximos do poder e da Inquisição para levar a sua obra ao público. Antes, teve que gastar prestígio e artimanha para se manter vivo e atuante.

Num segundo plano Arrabal perde muito tempo na busca dos antepassados mais longínquos de Cervantes para posicioná-lo como judeu de descendência cristão-nova. O que temos em tese é que o cristão-novo jamais deixa de ser judeu, mesmo que corridas várias gerações. Mas Arrabal no livro descreve uma exceção dessa regra de interesses: o Bispo de Burgos – depois também de Castela – dom Pablo de Santa Maria, foi um antigo rabino da cidade. Dom Pablo, assustado pela imprevista matança e perseguição dos judeus, abraçou o cristianismo com tal fé que logo alcançou a mitra de Burgos.

A nova fé que o Bispo assumiu seria de tal maneira exacerbada por Santa Maria e de tal modo exercida, que tanto o pai quanto o filho, dom Alonso de Cartagena (que também seria Bispo), se transformaram em ferozes implacáveis perseguidores de judeus! Portanto, não há como explicar a obsessão que move Arrabal, nem essa necessidade depressiva de demonstrar que a descendência de Cervantes fosse ou não fosse judia, posto que, no caso, se trata do menor e menos importante pedaço da biografia do genial fidalgo de La Mancha.

Para fugir da pena a que fora condenado pelo rei da Espanha, Miguel de Cervantes foge para a Itália. Ali chegando arranja abrigo, proteção e trabalho na casa do monsenhor Giulio Acquaviva y Aragon, que Cervantes conheceu durante as pompas fúnebres de dom Carlos, filho de Filipe II morto prematuramente – assassinado pelo pai, dizem. Mais uma vez aparece em cena o Cervantes escravo, desta vez de Acquaviva, também efeminado. Para fugir da escravidão, da subserviência opressiva, Cervantes aproveita a convocação feita para compor o famoso exército de aliados e se inscreve sob o comando de João de Áustria para combater os otomanos.

Como é sabido, Cervantes luta e se arrisca destemidamente. Ele busca de todas as maneiras alcançar o perdão pelas loucuras que fez, mas também conseguir ascensão na nobreza, algo que ambiciona desde sempre, mas jamais verá realizado. Numa das refregas o agitado e valente soldado é atingido de forma violenta por um canhonaço. A explosão feriu todo o lado esquerdo do seu corpo, deixando os membros seriamente avariados. Decorre daí a suspeita de que, fosse cumprida a primeira parte da condenação em que Cervantes perderia a mão direita e agora ferido na batalha inutilizando todo o lado esquerdo, jamais o Dom Quixote teria sido escrito, perdendo a humanidade a criação da maior de suas obras primas.


Ao retornar para a Espanha após ter se recuperado das feridas – de posse de vários documentos atestando a sua bravura e recomendando o aproveitamento em cargos imperiais – o barco em que Cervantes viaja é sequestrado por piratas árabes: passageiros e tripulantes são feitos prisioneiros.

Em Argel, Cervantes vive a planejar fugas espetaculares, na ânsia de chegar à Espanha e finalmente conseguir a posição social que tanto sonhara – ambição desta vez lastreada nas façanhas heroicas da batalha de Lepanto, testemunho é subscrito por nada menos que o próprio João de Áustria, comandante supremo do exército e meio-irmão de Filipe II. Mas o escritor nada consegue de positivo e o suplício só termina quando os parentes obtêm dinheiro suficiente para pagar o resgate pedido. São mais de três anos como prisioneiro – e mais uma vez escravo – do mandachuva do país, ocasião em que também se torna seu amante, para não perder a viagem...

No entanto está vivo e reencontra a família com um negócio de pensão (hospedaria) montado em Madri. Cervantes usa seus conhecimentos e facilidades sociais para fazer publicidade do negócio. Viajantes vindos da Itália, da França e países baixos ali se hospedam. A recepção está aos cuidados da sua irmã, a bela e sensual Andrea Cervantes, que sabe encher os hóspedes mais importantes com todas as regalias que a posição social merece. Muitos deles deixaram relatos agradecidos pelo bom trato que receberam na pensão dos Cervantes.

É neste momento que Arrabal, com um dom que só ele possui, consegue transformar Miguel de Cervantes em um legítimo proxeneta, capaz de deixar envergonhado o mais afamado cafetão da Lapa carioca.

Mas... plagiário? É claro que todos os cervantistas conhecem as leituras e pesquisas que serviram de base para a feitura do romance. Também a elaboração da principal personagem do livro O Genial Fidalgo Dom Quixote de La Mancha já foi objeto de muitos estudos. No próprio romance Cervantes deixa algumas pistas – não são poucas – como no episódio em que são condenados e incendiados muitos livros de cavalaria da sua biblioteca.


Lá pelas tantas, Fernando Arrabal descobre uma nova característica em Cervantes, nomeando-o também enxadrista. Não há nada que diga que Cervantes não sabia jogar xadrez, jogo popular na época, mas nem por isso pode ser chamado de jogador de xadrez, coisa que nenhum biógrafo até então havia sinalizado. Mas como o xadrez é também uma paixão de Arrabal, não é incomum que a sua galeria de personagens receba também o título.

No entanto, a maior influência coube a Arrabal descobrir que Feliciano de Silva, antecessor de Cervantes em vários livros de cavalaria – os vários Amadis, os romances pastoris, as Celestinas – foi o autor mais admirado por Cervantes. Arrabal capricha em localizar aqui e ali os sinais mais óbvios de que Miguel de Cervantes não só se serviu da obra de Feliciano de Silva como modelo, mas adquiriu uma cumplicidade tal, uma proximidade tão próxima, que só se pode chegar à fatal conclusão: plágio.

E se é Fernando Arrabal quem tudo isso diz, escreve e assina embaixo, quem sou para contradizê-lo?

Quanto ao livro em si, Um escravo chamado Cervantes, é de leitura muito difícil. Ou Arrabal transportou para esta pseudobiografia todas as loucuras inatas que o levou a ser considerado escritor maldito na melhor das tradições e escreveu uma obra cabalmente intraduzível – e, se traduzida, ilegível – ou Carlos Nougué é na verdade o pseudônimo de um desses programas de tradução simultânea que infestam a Internet. 

 

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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO

Número 157 | Setembro de 2020

Artista convidado: Fernando Arrabal [dibujos] (Espanha, 1932)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES

ARC Edições © 2020

 


 

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