Omar L. de Barros Filho (Brasil, 1952). Jornalista, tradutor, editor e cineasta. Como um dos diretores da Laser Press Comunicação, em Porto Alegre/RS, é também consultor junto a instituições públicas, organizações não-governamentais e empresas, com ênfase nas áreas de comunicação, cultura e responsabilidade social. Na imprensa, atuou como repórter nos jornais Folha da Manhã, da Companhia Jornalística Caldas Junior, no Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo. Foi editor do jornal cultural Versus, em São Paulo. Colaborou com a revista Intercontinental Press, dos Estados Unidos, e no Bureau Centro Americano da Revista Correspondência Internacional, de Paris. No jornalismo, conquistou o Prêmio da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), com a reportagem em série “As Crianças que a Cidade Não Quer na Rua”, publicada na Folha da Manhã, em Porto Alegre, com o repórter Caco Barcelos, e o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, com a reportagem “Carta de um Torturado ao Presidente Geisel”, publicada no jornal Versus. É autor dos livros Versus – Páginas da Utopia; Bolívia – Vocação e Destino; e co-autor de Um Fuzil para Ana Guadalupe – A Guerra Civil em El Salvador (também publicado em espanhol pela Editorial Pluma, de Bogotá, Colômbia) e Tempo das Águas, sobre a questão ambiental, além de organizador e editor de obras coletivas. No cinema, dirigiu Adyos General, média-metragem em 16 mm (premiado no Rio Cine Festival e apresentado como Hors Concours no Festival de Gramado), e Viva a Morte, curta-metragem em 35 mm, prêmio de Melhor Direção e Melhor Ator no Festival de Gramado. Atualmente é diretor de ViaPolítica, revista virtual produzida em rede colaborativa e voluntária, que aborda a política em seu sentido mais amplo, tratando de suas interfaces com a cultura, as artes, a economia, a diplomacia, o meio ambiente, a responsabilidade social, as novas tecnologias e os direitos humanos fundamentais. Nosso encontro foi pautado por uma afinidade imediata entre nossos projetos editoriais, assim que colaboramos um com o outro desde o primeiro momento em que nos conhecemos. O diálogo aqui presente trata de presentear ao leitor com o pensamento desse lúcido intelectual brasileiro, seja rememorando acontecimentos singulares de sua trajetória profissional, seja definindo seus pontos de vista acerca da época em que vivemos. Abraxas
FM | Vamos começar da maneira mais simples e direta: o que traz de si Omar L. de Barros Filho na bagagem de sua memória? Como te sentes hoje?
OLBF | Beirando os 60 anos, me sinto alguém carregado de vivências e memórias, que esquece um pouco a cada dia, mas ri e sofre com aquilo que recorda. Trato de suportar a mim mesmo em um paciente exercício diário de convivência com ‘o outro’. Uma parte dessa carga passa, e não podia ser diferente, pelo jornalismo. A atividade do repórter, genialmente descrita por Antonioni, em The Passenger [Profissão: Repórter], certamente deixa cicatrizes que o tempo não esconde em qualquer front que você estiver. Cobrir uma ação de guerrilha, um crime numa rua escura ou uma enchente que se repete a cada verão tem o mesmo resultado. O repórter é um para-raio que recebe descargas elétricas o tempo todo e avança no impulso. O olho sempre aberto, ligado, como os leds que nunca dormem.
O trabalho do editor é diferente. É necessário refletir para organizar a informação, dar certa coerência às leituras possíveis, jogar com as contradições, mostrar a diversidade do pensamento, oferecer alternativas de leitura, concordar e contrariar, jogar xadrez com o leitor e desafiar sua inteligência. Nenhuma das duas atividades, portanto, garante um sono tranquilo e angelical para ninguém, o que significa dizer que, no que se refere a mim, durmo cada vez menos.
Cheguei a imaginar que iria descansar um pouco mais quando li que um gênio da academia havia decretado a morte da História, depois da queda do Muro de Berlim, o fim da Guerra Fria e a instalação da hegemonia estadunidense. O que hoje se vê, entretanto, é que a História está bem viva neste planeta atormentado e conectado em pura insônia. Há quase 40 anos, quando comecei meu trabalho, parecia que para entender o mundo bastava ler algumas linhas de Marx, Engels, Lenin e Trotsky, e saber se ia chover ou não. Hoje é necessário ainda conhecer o estado de ânimo das consumidoras do Brooklin, o preço dos imóveis usados em Londres, os investimentos chineses em armamento, que há cangurus em excesso na Austrália e que os rios estão secos no Congo…
FM | Este é um já conhecido pomar de contradições, ou seja, sabemos cada vez mais o que se passa no mundo, porém não surgem discussões mais aprofundadas sobre as causas e busca eficaz de como interferir em seus mecanismos perversos. A informação resulta inútil justamente pelo excesso. Não te parece um grande ardil de nosso tempo? No mínimo, a sua charada mais sagaz?
OLBF | Sim, você está absolutamente correto. O grande ruído universal facilmente se transforma em apenas um rumor que se ouve ao longe. É como um tropel de boiada em disparada campo afora. Mas isso ainda é melhor do que o silêncio das ditaduras e dos cemitérios, não é mesmo? Penso que marchamos sem apelação para um novo estágio de civilização, plebiscitária, em que os governos ganharão um novo potencial e uma nova dimensão política e cívica. Ao mesmo tempo, os espaços de participação cidadã também serão ampliados, via Internet, como se vê, agora, nos terremotos revolucionários nos países árabes, assim como na Grécia, Espanha e outros países. É uma outra sociedade em construção, uma gigantesca ágora eletrônica, que resulta de milhões de outras, em que a informação circula numa velocidade impensável na era de Johannes Gutenberg, que também mudou o mundo em seu tempo. A informação ganha, assim, a efetividade de uma ferramenta promotora de mudanças no Estado, do qual não podemos perder de vista sua verdadeira natureza. Claro, a nova democracia está sujeita a todos os riscos de manipulações, distorções etc. É a negação de uma direção central e o surgimento de algo anárquico, atomizado, sua força e, contraditoriamente, sua fragilidade, ao dispensar uma direção central, tal como sonharam os revolucionários Lenin e Trotsky no Século XX. Você ainda lembra dele? Não me pergunte no que isso vai resultar. Não saberia responder.
FM | Versus buscou originalmente assumir a América Latina, de tal maneira que “a busca de nossas raízes fosse um programa”. Qual América Latina encontraram na época? Indago isto por uma razão, a de que no Brasil ainda hoje desconhecemos essa entidade, talvez até inexistente, chamada América Latina.
OLBF | De fato, do ponto de vista brasileiro, de modo geral, a América Latina segue sendo uma entidade imputada por um folclorismo crônico, desprezada por seu atraso econômico, político e cultural, maltratada pelo preconceito que, muitas vezes, revela o racismo de nossa elite. Isso ocorre apesar de alguns avanços, como os que seriam possíveis através da criação do Mercosul e de outras instituições criadas do outro lado dos Andes para aproximar os países e diminuir as distâncias entre as fronteiras latino-americanas. São esperanças que nem mesmo as burocracias conseguiram ainda desmanchar. Acredito que vamos avançar, apesar das dificuldades. Se pensarmos que a União Europeia foi um processo que levou cerca de 50 anos para ser concretizado, temos tempo para agir localmente no sentido de buscar essa aproximação necessária, natural, lógica. Para que tal ocorra, sobretudo será necessário malhar este ferro frio até que a chapa esquente. A consolidação da democracia no continente e o desenvolvimento das economias, da educação, da saúde, será o fogo que permitirá a aproximação dessas culturas, assim como, anteriormente, a luta contra as ditaduras criou um espaço de resistência continental que, com frequência, fez desaparecer as diferenças e valorizar os fatores positivos da unidade e solidariedade entre nós.
O jornal Versus foi uma resposta neste sentido. Partindo de nossas fragilidades políticas e organizativas, criamos um sistema quase anárquico de produção de conteúdo que preencheu um terreno até então abandonado pela grande mídia, que nunca se preocupou, em profundidade, em estabelecer junto ao público e às instituições políticas aquilo que para nós era uma espécie de dogma. O Brasil não conseguiria arrancar nenhuma liberdade digna deste nome se na América Latina o mesmo não ocorresse. Não era possível imaginar que um país do tamanho do Brasil, com influência e presença continental, pudesse se desenvolver cercado por regimes de força, ditatoriais. O inverso também era verdadeiro e segue sendo.
A primeira edição de Versus, que chegou às bancas em outubro de 1975, em uma São Paulo ainda convulsionada com a morte do jornalista Wladimir Herzog nas masmorras da polícia política, revela bem a atmosfera de terror que vivíamos à época, e que o redator-chefe e criador de Versus, o jornalista Marcos Faerman tão bem soube sintetizar em inúmeras ocasiões. As chamadas da primeira página do nº 1 eram reveladoras: “Eu fui condenado à morte” (Confissões de um repórter argentino, Tomás Eloy Martínez); “Eu me condenei à morte” (Diário de um escritor peruano, Arguedas); “Nós vivemos na morte” (A vida num hospício mineiro).
FM | No prólogo ao livro Versus – Páginas da utopia, há uma afirmação tua que é um verdadeiro enxame de significados. Conversemos sobre o teu sentimento em relação a ela. Dizes: “Em algum ponto do caminho, no entanto, deixamos de ser necessários”.
OLBF | Sim, é um sentimento de perda e de frustração que carrego comigo desde que ficou claro que Versus não teria mais forças para seguir. Claro, foi resultado de um processo que tento explicar como resultado da falta de meios e de maturidade na condução do jornal, combinados com perseguições, prisões, ameaças e repressão. No entanto, entre acertos e erros acredito que algumas lições foram aprendidas. Deixamos uma herança cultural e política que tão cedo não será esquecida. A aproximação com a história e a cultura da América Latina ficou para sempre. A contribuição de Versus ao crescimento e amadurecimento do movimento negro no país é uma realidade. Assim como nosso trabalho na difusão de um programa socialista para o Brasil e para o continente. Mas a sociedade evoluiu e passou a exigir novas soluções e canais alternativos para se informar e educar.
É preciso se adaptar a isso e acompanhar a revolução da comunicação para não envelhecer precocemente.
Como não podia deixar de ser, Versus se transformava a cada edição mensal ou bimensal – demoramos muito tempo para “disciplinar” nossa forma de trabalhar, o que implicava obediência das datas estabelecidas para a distribuição de cada uma das edições. Essa inconstância provocava prejuízos à administração, que fazia o possível para equilibrar as finanças sempre combalidas. Mas digo que faltou, essencialmente, maturidade e experiência à redação, que se distribuía em várias cidades do Brasil.
Isso ficou claro quando percebemos na escuridão que havia uma possibilidade real de contribuirmos para a derrubada da ditadura e para o estabelecimento da democracia. Mas o inimigo foi hábil ao se metamorfosear e confundir. E, de algum modo, combinando atos de repressão e abertura, acabou por nos dividir mais de uma vez. É fato que isso criou as condições para que alguns dos principais colaboradores abandonassem o projeto, alguns cooptados pela grande imprensa, e que os leitores nos deixassem de lado. O mesmo fenômeno de ruptura ocorreu em quase todos os jornais da imprensa alternativa daquele período. Foi um ciclo riquíssimo em vivências que ficou para trás, mas que seguramente marcou a todos os que dele participaram.
FM | ViaPolítica atua como um herdeiro de Versus em era digital em um sentido literal, ou no projeto atual há um acento distinto do ponto de vista editorial?
OLBF | Há muito em comum nos dois projetos. Tanto que parte importante do núcleo inicial de colaboradores que impulsionou ViaPolítica na web antes fez parte da equipe deVersus. Em maio/junho de 2006, quando ViaPolítica apareceu na Internet pela primeira vez, eu mantinha apenas contatos esporádicos com os antigos companheiros de redação de Versus. Mas, logo que a notícia se espalhou, eles ressurgiram e voluntariamente passaram a colaborar com a nova publicação. E trouxeram com eles toda aquela bagagem adquirida nos anos duros do regime militar e durante a redemocratização do país. São colaboradores valiosos, experientes, lúcidos, que têm dado uma imensa contribuição à construção da rede VP. Toda essa experiência contribuiu muito para o aperfeiçoamento da rede que estamos tecendo e que, agora, com as novas ferramentas, já ultrapassou nossas fronteiras e se desenvolve também no exterior. É uma rede de uma extensão impensável na época de Versus, quando dependíamos dos carteiros para receber boa parte das matérias que publicávamos. Agora, são outros meios infinitamente mais velozes e eficientes de comunicação, intercâmbio, elaboração de conteúdos, análises, observações, imagens, sons, traduções etc. É outro mundo, muito mais exigente e crítico, onde já não cabe a dose de ingenuidade que fazia parte do dia a dia de nossa antiga redação. Assim, construímos em cinco anos de trabalho em ViaPolítica um outro campo de experiências que dá continuidade a uma iniciativa que ficou para trás e que era sim necessário recuperar.
FM | Fala-me um pouco mais especificamente desse outro campo.
OLBF |ViaPolítica já é uma rede bastante consistente depois de cinco anos de trabalho. Alargou-se, estendeu-se por caminhos que seriam impensáveis na época de Versus, sob uma ditadura política. Vigilância de organismos policiais, ameaças, prisões, greves de fome, torturas, bombas em bancas de jornal. Estamos, agora, no campo das liberdades onde enfrentamos as diversas formas de totalitarismo que ainda resistem com armas que antes não possuíamos, as ágeis redes sociais, por exemplo. Na época da ditadura, se um imbecil como o deputado Bolsonaro atacasse os homossexuais, quem iria reagir contra ele? Quanto tempo e recursos seriam gastos para enfrentá-lo? Hoje ele fala as besteiras que caracterizam o credo de seu bando político e na hora chovem milhares de flechas na web contra o pensamento obtuso dele e dos seus. Nada fica sem resposta. Passou o tempo do silêncio, é hora da algaravia.
FM | O mundo da linguagem é o mundo do significado. Há uma curiosa propensão no Brasil ao esvaziamento de sentidos na linguagem, na forma como a comunicação foi corrompida em dois ambientes ou de duas maneiras. De um lado, a política a trata como um artifício destinado a desnortear. De outro, a arte elimina quaisquer evidências de realidade em seu corpo atuante. Como recuperar a credibilidade de um discurso em um país criminosamente esvaziado de sentido como o nosso?
OLBF | Em nossa sociedade midiática, a oposição entre verdade x mentira é quase tão profunda quanto a contradição entre capital x trabalho, enunciada por Marx e Engels. Por isso compartilho de sua indignação e inquietude. E poderia justificá-las citando, por exemplo, as ideias e os textos de Baudrillard, Walter Benjamin, Adorno e, aqui, de Luiz Rosemberg Filho, um diretor cinematográfico que analisa obsessivamente em ViaPolítica a linguagem do poder e suas deformações. Darei, entretanto, um breve testemunho a partir de minha própria experiência para esclarecer o que penso sobre a questão.
Quando era criança aprendi a amar os gibis, que lia diariamente. De tudo o que povoou minha imaginação infantil e mesmo depois, o que mais presente ficou era um mundo bizarro que existia numa outra galáxia nas HQs do Superman. Lá era tudo ao contrário, daí o nome bizarro. Quando amadureci acabei por descobrir que aquele mundo era o mesmo em que eu vivia, com minha família, com meus amigos e com todos os outros patrícios. Era o Brasil! Aqui, como nos gibis, é tudo ao contrário. Nenhuma palavra carrega em seu uso diário o significado que ela de fato tem no dicionário. Somos mestres na arte da dissimulação e do discurso fake. A corrupção do sentido das palavras e das imagens aparece em tudo, em qualquer manifestação de políticos, empresários, dirigentes sindicais, agentes públicos, editorialistas e todo o resto.
Essa lição eu aprendi mais tarde, nos primeiros anos da década de 80, quando vivi algum tempo em Bogotá, na Colômbia, onde conheci um dos grandes dirigentes trotsquistas da América Latina, Nahuel Moreno. Encontrava-o sempre no escritório da Fração Bolchevique da IV Internacional. Ele era um argentino exilado, e, desde Bogotá, tratava de coordenar as ações de sua organização. Certa vez, eu voltava da América Central, mais precisamente de El Salvador, quando ele me perguntou como andava a revolução no país. Respondi da forma mais precisa que pude, tentando descrever a situação confusa e movediça. Depois de ouvir atentamente meu relato, Nahuel Moreno retrucou com seu castelhano marcante: “Você está equivocado. Na política tradicional ou mesmo na revolução é sempre o contrário do que é dito. Você entenderá apenas se fizer a leitura ao contrário.” A conversa girava basicamente sobre a atitude da guerrilha salvadorenha que ameaçava tomar o poder no país. Para mim era verdade o que os líderes guerrilheiros apregoavam. O dirigente trotsquista corrigiu: “Nada disso. Eles querem apenas negociar com o governo e com os EUA, e não vão tomar o poder pelas armas como afirmam para a população.” Era o tal mundo bizarro dos gibis outra vez. O tempo mostrou rapidamente que Moreno tinha razão…
Também o sociólogo americano Howard S. Becker nascido em Chicago, em 1928, tem muito a ensinar. No livro Truques e segredos, ele afirma: (…) “duvide de tudo que lhe for dito por qualquer pessoa que detenha poder”. Isso deveria se aplicar perfeitamente ao jornalismo da forma como é praticado no Brasil e outras paragens, onde o oficialismo manda e desmanda, e impera a preguiça e a falta de meios dos repórteres para ouvir outras fontes sem a mesma suposta “credibilidade” dos que estão no poder.
FM | Este é um relato ensurdecedor, apavorante. É mais grave ainda se agregarmos que este mesmo comportamento detectado no tocante ao jornalismo se verifica no ambiente intelectual como um todo, aí incluída a classe artística. No entanto, toda linguagem caminha na direção do poder, toda linguagem é, por essência, truque. Como então diferenciar verdade e mentira? Melhor ainda, considerando o entendimento do que seja verdade, como atuar diante da boa e da má verdade?
OLBF | Como qualquer outro cidadão também sofro para saber o que é verdade e o que é mentira nessa massa de informação que dia e noite perpassa nossas mentes. Como enfrentar tudo isso? Não sei. Antes, a fórmula que eu achava correta passava pela ortodoxia da construção de um partido revolucionário, clandestino, solidificado por muitos punhos e lutas, que, à vanguarda das massas, golpearia o inimigo como um homem só. A verdade, então, surgiria, e nós, da imprensa, das letras, da informação, seríamos seus anjos da guarda. Mas hoje esta receita já não tem mais sentido nenhum. Você acha que sim? Para responder à sua pergunta é necessário antes entender e avaliar toda a grandeza e a beleza que estão vivas nos acampamentos da Espanha, por exemplo, nas barracas amontoadas nas praças. Milhares e milhares de pessoas, jovens, velhos, crianças, toda a diversidade do mundo, exigindo nada mais do que a verdade, indignados, gritando não à mentira.
FM | Situemos um caso alarmante no Brasil, a forma massiva como grande parte da população brasileira (e não somente a chamada zona de pobreza, relativa ou absoluta) está sendo espiritualmente tragada por seitas deploráveis, cultos fraudulentos, o amparo cínico da “palavra do Senhor” etc. De que forma recuperar uma sociedade quando esta é fragmentada de tantas maneiras como no caso brasileiro?
OLBF | O que você descreve é correto. O ruído é tanto que até o mais corriqueiro dos dias poderia ser confundido com o dia do juízo final, o dies irae: “Quanto terror é futuro,
quando o Juiz vier, para julgar a todos irrestritamente !” Quando vivi na Amazônia, numa fronteira perdida com a Bolívia, uma região onde o Estado brasileiro é pouco mais do que uma sombra, o que lá se via era uma igreja ao lado da outra. Só na cidade mais próxima, com poucos milhares de moradores, havia 60 igrejas evangélicas e uma católica. O certo é que boa parte das pequenas igrejas protestantes buscam trabalhar junto ao tecido social, perto dos mais pobres, tratando de não perdê-los do rebanho. Pregam, sim, o temor à autoridade celestial, ao inferno, ao pecado e prometem o paraíso em troca de alguns tostões. E, em essência, tratam de manter o status quo de opressão e sofrimento da classe trabalhadora, na exploração contínua de sua ignorância ou alienação, em sua impotência frente ao capitalismo.
Por outro lado, a hierarquia católica faz o quê? Durante séculos reinou sozinha, ajudou a massacrar indígenas e a acorrentar negros, esmagou suas religiões e saberes, agarrou-se ao poder, alimentou e confortou as oligarquias e o patrimonialismo no Estado. O que essa velha igreja quer agora? Seu monopólio foi quebrado, está superado no tempo e no espaço. Ela não fala mais ao coração das massas como antes, não conversa com aqueles que sofrem, e treme diante do fundamentalismo dos evangélicos radicais.
A realidade é que são todos falsos profetas. Vivem às custas da manipulação das massas em uma sociedade quase indefesa, que ainda não desenvolveu os anticorpos necessários para livrar-se das igrejas eletrônicas, dos noticiários da Globo, da Record, do oficialismo governamental e das súcias dos políticos [bem-aventurados herdeiros de redes de rádio e TVs] em todas as instâncias da esfera pública. Para recuperar nossa sociedade espoliada e desigual, portanto, só há o remédio da indignação e mais e mais democracia. Enquanto isso, oremos por nosso frágil Estado laico e sua fascinação pelos altares capitalistas. Como escreveu um dos seguidores de ViaPolítica no Twitter, citando o teólogo italiano Christian Albini, “Hoje, parece prevalecer, muitas vezes, uma religiosidade conformista, ritual, sem alma.”
FM | Quais planos tens de ampliação da atuação via Internet de ViaPolítica, incluindo áreas não virtuais?
OLBF | Nossa abordagem transversal da política, que escapa das miudezas vulgares da politicagem, principal alimento de nossa imprensa tradicional, leva ViaPolítica a ampliar o arco de alianças. Para o futuro próximo está em nossos planos acompanhar mais de perto o fenômeno das revoluções árabes, algo tão profundo quanto foram a derrocada da União Soviética e as mobilizações de 68. São momentos históricos de tal grandeza com que a vida valha a pena, e nos dizem que não basta apenas testemunhar, descrever ou analisar. Assim que estamos a estudar uma pequena contribuição ao processo que, no médio prazo, deve se materializar em uma organização voltada ao estreitamento dos laços com as comunidades árabes que vivem no Brasil e na América do Sul, e que, talvez, se transforme em uma pequena ponte entre as nossas culturas.
FM | Esquecemos algo?
OLBF | Devolvo a pergunta: Seremos condenados ao esquecimento? Ou estamos aqui para lembrar?
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Floriano Martins (Brasil, 1957). Editor de Agulha Hispânica. Entrevista realizada em junho de 2011. Contato: arcflorianomartins@gmail.com. Página ilustrada com obras do artista Fabio Herrera (Costa Rica).
El período de enero de 2010 hasta diciembre de 2011 Agulha Revista de Cultura cambia su nombre para Agulha Hispânica, bajo la coordinación editorial general de Floriano Martins, para atender la necesidad de circulación periódica de ideas, reflexiones, propuestas, acompañamiento crítico de aspectos relevantes en lo que se refiere al tema de la cultura en América Hispánica. La revista, de circulación bimestral, ha tratado de temas generales ligados al arte y a la cultura, constituyendo un fórum amplio de discusión de asuntos diversos, estableciendo puntos de contacto entre los países hispano-americanos que posibiliten mayor articulación entre sus referentes. Acompañamiento general de traducción y revisión a cargo de Gladys Mendía y Floriano Martins. |
segunda-feira, 17 de novembro de 2014
Um ninho de rupturas: Versus, ViaPolítica & Omar Luiz de Barros Filho | Floriano Martins
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