A cada novo folheto que chega pelo correio, a cada pseudotelegrama ou
e-mail com dois, três poemas e, às vezes, alguns desenhos e colagens, a cada
rara leitura pública -em que o poeta se encarrega, com teatralidade operística,
sempre intensíssima, de todas as vozes, todas mesmo (da vestal ao Professor
Fumegas, dos sons onomatopaicos ao Fakir Nandu ou ao vulto esquivo da
"Velha Cinza")-, a maior alegria é perceber o potencial anárquico, o
grau de vitalidade (quase impensável em certos circuitos culturais) que se
impõem.
Uma vitalidade de tal ordem que, com frequência, costuma evidenciar, às
vezes involuntariamente, a imensa quantidade de mortos-vivos, pomposidades
retóricas, pedestais autoconfiantes, grupos em frenético aplauso mútuo que se
amontoam à sua volta.
Basta lembrar a apresentação de um dos livrinhos antigos -"Romance
Rex, do Barão de Macau (aliás, Carlos Saldanha)"- para verificar que é bem
outro o autoirônico não lugar que tem construído para si desde fins dos anos
1950.
"Perfeição é para os tolos... O leão, quando chega a entrar em
forma, já virou tapete há muito tempo": é assim que dá inicio a comentário
sobre uma série de aparentemente malsucedidas tentativas de afirmação literária
ao longo da vida, com o vento levando tudo, exceto "a única coisa,
acho", diz ele, "em que ainda acredito, é que sou o Conde de
Montecristo".
A referência brincalhona indica, por outro lado, que as rimas, os quase
"limericks", as historietas, figurinhas e os escritos à mão,
característicos aos seus folhetos, se evocam à primeira vista dimensão lúdica e
gratuidade por vezes próximas ao universo juvenil, contêm, igualmente, alvos
precisos e talvez tão implacáveis quanto os do projeto de vingança e redenção
do personagem de Dumas.
"Com um bom discurso", lê-se num de seus almanaques,
"velhos ossos se tornam imortais". Comentário ao qual se acoplam as
irrisórias conquistas dos muitos professores, doutores, conselheiros, nobres e
figuras respeitáveis que desfilam pelos poemas. "Corujão de Minerva/só voa
ao crepúsculo", avisa a Cassandra Bolchevique, no último caderno de
"Ximerix" [Cosac Naify, 80 págs., R$ 29,90], "pra bostejar de
branco os bustos venerandos/Napoleão, Plotino/Platão, Papa Bórgia".
Sem esquecer, no entanto, que dessa satirização jamais escapam as suas
múltiplas máscaras autorais -que são, por sinal, alguns de seus alvos
preferenciais.
Essa satirização, no caso do "Romance Rex", por exemplo,
levaria o "eminente" e "torturado" escritor, o Barão de
Macau, a suspirar, rolar pelo chão e, em momento de extrema concentração,
"por demais atento ao texto que elabora, em vez de levar à boca o
sanduíche", comer o guardanapo e pôr-se a mastigá-lo gostosamente até se
dar conta do equívoco e cuspi-lo, dando início, assim, ao relato em elaboração.
O recém-lançado "Ximerix" também se inicia com uma cusparada,
a do Conde Lotrax tentando, sem sucesso, matar uma barata pousada em sua
lapela. Cospe, mas não mata -e "lá se foi lá se foi
ele.../zaft-zoft-zaft/o Baratão Voador".
O que, se absurdamente irrelevante, anunciaria padrão recorrente em toda
a primeira série poética do volume. Pois há, sim, estruturas de composição nas
desestruturações humorísticas empreendidas por Zuca Sardan. Não basta buscar
nelas ecos de Jarry, Allais, Oswald, Max Ernst ou Satie, como se costuma fazer.
PERSONAGENS | Observem-se, nesse sentido, os movimentos de
figuração, interferência e sumiço desse "Caderno Um".
Em meio a sucessivas substituições de personagens (a bilheteira
adormecida, o Capitão Busto, o Sol e a Lua, o Rádio Fanho, Salomé e Baltazar) e
intromissões diversas (gralhas, moscas, línguas, ratazanas, lágrimas, mofo,
musgo, sombra), realizam-se trânsitos e tramas -via operações eróticas
(Lotrax/Doroteia, Sol/Lua, Capitão Busto/Pomona sem Braços/Vênus de Gesso),
mas, sobretudo, via repetição (como mote) da expressão "nunca mais"
ou de imagens de queda, voo ou desaparição.
O tempo e a fumaça do cachimbo subindo em volutas, o cometa afundando no
brejo, a santinha rolando pirambeira abaixo, os Sete Pilares da Sabedoria
sumindo num zumbido: imagens que repetem a fuga inicial do Baratão Voador.
Ainda que certas figuras ressurjam, o habitual será a autoimplosão do poema,
junto à desses elementos nucleares. E acompanhada, a certa altura, pela do
poeta, a quem expulsam em violenta caixa alta: "FOOOORAAAAAAAA/POETA DE
MERDAAA!!!".
Se não há mudança radical, nas versões recentes em livro, do trabalho de
Zuca Sardan, sua inserção (tardia) no mundo das editoras comerciais, não à toa
quando o próprio livro parece anacrônico, e em publicações com número limitado
de imagens, talvez se extraia, de certa forma, o caráter de "imagens para
ler", a imbricação entre gráfico e verbal que caracteriza tantos dos seus
folhetos.
O que expõe de modo mais direto a textualidade dos poemas e convida a
lê-los para além do registro poético-pictórico. E parece ter levado o poeta a
brincar -em escala reduzida- com listras horizontais tipográfico-onomatopaicas,
inseridas por vezes sob ou entre os poemas.
Essas listras são como interferências de um tempo em que havia
"gralhas tipográficas", em que as páginas se compunham tipo a tipo.
Como interferências de escrita mais próxima do ruído, menos lógico-discursiva,
espécie de tensor tipográfico-sonoro que funciona como moldura contraditória às
microhistorietas dos poemas. E, por outro lado, como forma a mais de Zuca jogar
com o anacronismo.
Como faz ao usar a escrita à mão, os cadernos de colégio, ou nas
colagens propositadamente precárias, nas quais entram figuras e pedaços de
jornal bem antigos, às vezes com formas obsoletas de escrita -alemão antigo,
palavras em português com "ph"em vez de "f", com letras
duplicadas e assim por diante.
Como faz ao dialogar com dadaístas e fumistas, com almanaques, histórias
em quadrinhos, e referências intencionalmente fora de época. Formas de
desarticulação temporária da língua literária de agora, de contra-apropriação
satírica dos tempos que põe em contraste.
Expulso, pois, do "Caderno Um", o poeta voltaria com quadros
temporais, máscaras e operações poéticas distintas nos quatro blocos seguintes
-que divide em mallarmaicos e didascálicos.
Nos cadernos "Dois" e "Três", retomando referência,
cara à sua obra, ao lance de dados (aqui, "dois lances de dados"),
esboçaria, então, a figura do "magistral Poeta Melarmek", que, como
Mallarmé, frequenta o salão de Méry Laurent (aqui, Musa Merry). Como no
"Um", porém, esses "Apothegmas Alabastrinos" avisam que
"o Fim da Festa vai chegar", que traças já roem a Lua, defuntos tomam
elixir e o "Livro-Leque" se fechará.
Ao quadro de bichos baixos, interferências casuais, cotidianas,
misturadas ao clima gótico-erótico e às imagens de voo e queda dos poemas (de
dimensão variável) do "Caderno Um", sucede-se, então, uma
dramatização do lance de dados, convertido em sequência de quadros vivos em
vertiginosa aceleração, construídos com recorte simétrico (em textos de seis
versos) e situados no campo (historicamente distante) da alta literatura.
Nos dois últimos cadernos de "Ximerix", o campo não é mais o
dos bichos nem o da poesia moderna, mas o do pensamento e da prática política.
E anacronizando-se, mais uma vez, as referências, surge a Cassandra
Bolchevique, que implica com a Filosofia ("muito prendada/chega sempre
atrasada/na estação ferroviária"), a Dialética ("Na dialética os
opostos/se tocam quem partiu/de Moscou pra Berlim acabou/chegando mesmo a
Moscou"), e, em pequenos textos impiedosos, com o antigo regime soviético
e o capitalismo europeu.
Neles, exercita-se variação de tom diversa dos cadernos anteriores, por
meio da qual se vai do tristemente jocoso ("A Empresa contrata/velhotas
surdas/ macróbios cegos/ misturados na usina/ com os operários que a onda/de
desemprego faz cordatos"), ao diretamente realista, em "Salário"
(onde se prevê que o proletário europeu ainda terá que pagar para trabalhar).
E, encerrando-se o volume com o seguinte oráculo dirigido ao leitor
-"Nada de muitas pressas.../Aproveita enquanto possas/as Folias do
Purgatório..."- volta-se, intempestivamente, à dicção jocosa, à fala
cantada, com grafia própria e, por vezes, quase prosódica, que sugere
imbricação também complexa entre escrita e dimensão sonora em obra já tão
marcada por desdobramentos e variações pictórico-verbais como é a de Zuca
Sardan.
[Flora Süssekind é pesquisadora da Casa de Rui Barbosa e professora no Centro de Letras e Artes da UniRio.]
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