Os leitores
conhecem, de um modo geral, o Cahier d’un
retour au pays natal, [1] longo
poema escrito e reescrito ao longo de vinte anos, - iniciado no verão de 1936
em casa de um amigo, Petar Guberina, à beira mar na antiga Jugoslávia frente a
uma janela aberta para uma pequena ilha do mar Adriático, e com versões
sucessivas até 1956 -, verdadeira matriz da literatura antilhana de língua
francesa.
Césaire,
por outro lado, escreveu e reescreveu ainda três ou quatro longos poemas ao
mesmo tempo dramáticos e épicos que fazem parte do seu livro Les Armes miraculeuses: “Le Grand midi”,
“Les pur-sang” e “Batouque”. Esses longos textos, por vezes de leitura bastante
difícil, constituem de certa forma o seu opus em tom maior.
Os
estudos sobre a poesia de Césaire, na sua grande maioria, concentram-se sobre o
Cahier, alguns críticos atrevem-se a
explorar “Le Grand-Midi” e “Batouque”; “Les pur-sang” permanece de certa forma
mais ou menos intocado pela crítica.
Apresentamos aqui algo totalmente diferente: uma
seleção de pequenos poemas, estranhos e enigmáticos, surpreendentes e
misteriosos, por vezes muito próximos da oralidade tradicional glosando temas
populares em variações musicais, por vezes fascinantes e absconsos com
referências mais ou menos ocultas a temas ou figuras da Antiguidade clássica (não
só ocidental como oriental). De certa forma, esses curtos poemas estão na linha
de Baudelaire dos Petits poèmes en prose
ou de Rimbaud das Illuminations. Próximos
também de certas quadras igualmente misteriosas e paradoxalmente muito simples,
em redondilha inclusive, de Manuel Bandeira, quadras que podem até mesmo
apresentar um título imponente, numericamente maior do que o verso de 7 sílabas
utilizado; o exemplo que me ocorre é evidentemente “O amor, a poesia, as
viagens”, de 1933, em Estrela da manhã.
Os pequenos poemas de Césaire escondem jogos
vários não só com formas fixas tradicionais (os provérbios, por exemplo, ou
ainda as adivinhações rituais [2] das vigílias fúnebres nas Antilhas) mas
também brincam com palavras de línguas diferentes (o “créole” de base francesa,
o espanhol ou o português, o latim ou até mesmo o grego); constituem numa
espécie de condensação extrema de uma geo-poética americana mais do que
africana porque se prendem, como laminárias, às rochas no fundo do mar [3] que banha as ilhas; recitam pontos
cantados ou orikis para saudar orixás
ou “loas”; exploram uma intertextualidade exuberante e absolutamente imprevista
(que pode incluir uma publicidade de tabaco para cachimbo do Canadá francês,
uma lista de topônimos do Rio de Janeiro ou da cidade de Salvador, da Bahia);
respondem a poemas de outros poetas, de forma explícita no caso de Depestre, de
forma sibilina no caso de Breton, de forma discreta dirigindo-se aos happy few no caso de Mallarmé ou
Lautréamont; fazem paráfrases e/ou ekphrasis
de gravuras surrealistas do pintor cubano Wifredo Lam ou do chileno Roberto Matta;
tomam de empréstimo a voz do Outro (geralmente um poeta) que é saudado por
ocasião da sua morte num poema tumular; são ao mesmo tempo populares e
eruditos. Em alguns casos também, constituem o núcleo, ou o germe inicial, de
um poema que poderia vir a ser um poema épico de escatologia e renascimento do
mundo. Ou ainda: um poema épico em miniatura que re-cita um longo poema
anterior, em jogos de espelhos deformantes.
Escolhemos, de diferentes volumes, quinze poemas,
de um modo geral breves ou muito breves, que apresentamos em versão bilingue
(francês e a sua tradução em português em frente). Acrescentamos em pé de
página, algumas notas muito reduzidas para ajudar o leitor lusófono a apreciar
a massa folhada dessas pequenas e preciosas obras-primas. Ou pelo menos sugerimos
um fio de Ariadne para ajudá-lo a entrar e circular nesses pequenos labirintos
cheios de dobras e recantos. Não tentamos explicar tudo para não defraudar ou
destruir o prazer da descoberta e da leitura pessoal. O leitor perceberá,
talvez surpreso, que um texto opaco para um francófono, pode ser estranhamente
transparente na cultura brasileira.
A indicação das páginas dos poemas refere-se ao volume
Aimé Césaire. La Poésie, edição
estabelecida por Daniel Maximin e Gilles Carpentier (Seuil, 1994).
inventaire de cayes [4]
(à siffler sur la
route)
beaux
beaux
Caraïbos
quelle
volière
quels oiseaux
cadavres de
bêtes
cadavres d'oiseaux
autour du
marécage
moins moins beau le marécage
moins beau que le Macaraïbo
beaux beaux
les piranhas
beaux beaux les stymphanos
quant à
vous sifflez sifflez
(encore un
mauvais coup d'Eshou)
boca del Toro
boca del Drago
chanson
chanson de cage
adieu
volière
adieu oiseaux
(in moi, laminaire.., in La Poésie, p.
433).
inventário
de ilhotas
[5]
(
para assoviar na estrada)
belos
belos
caribenhos
que viveiro
que pássaros
carcaças
de animais
carcaças
de pássaros
em torno do
mangue
menos
menos belo o mangue
do
que o Maracaibo menos belo
belas belas
piranhas
belas
belas aves de rapina
quanto a ti
assovia assovia
( mais uma
surpresa de Exu Tiriri)
boca
del Toro
boca
del Drago
canção canção de
gaiola
adeus viveiro
adeus
pássaros
mot-macumba
le mot est père
des saints
le mot est mère
des saints
avec le mot couresse on peut traverser un fleuve
peuplé de caïmans
il m'arrive de
dessiner un mot sur le sol
avec un mot frais
on peut traverser le désert
d'une journée
il y a des mots
bâton-de-nage pour écarter des squales
il y a des mots
iguanes
il y a des mots
subtils ce sont des mots phasmes [6]
il y a des mots
d'ombre avec des réveils en colère
d'étincelles
il y a des mots
Shango
il m'arrive de
nager de ruse sur le dos d'un mot dauphin
( in moi, laminaire…, in La Poésie, p. 416)
Palavra-macumba
a palavra é pai
de santo
a palavra é mãe
de santo
com a palavra
cobra d'água pode-se atravessar um rio
cheio de jacarés
às vezes risco
uma palavra no chão
com uma palavra
fresca pode-se atravessar
o deserto de um
dia
há palavras
pau-de-afastar tubarão
há palavras
iguanas
há palavras sutis
são palavras fantasmas
há palavras de
sombras com despertar de cólera e centelhas
há palavras Xangô
às vezes nado, astuto, sobre o
dorso de uma palavra delfim.
maillon
de la cadène
avec des bouts de ficelle
avec des rognures
de bois
avec de tout tous
les morceaux bas
avec les coups
bas
avec les feuilles
mortes ramassées à la pelle
avec des restants
de draps
avec des lassos
lacérés
avec des mailles
forcées de cadène
avec des
ossements de murènes
avec des fouets
arrachés
avec des conques
marines
avec des drapeaux
et des tombes dépareillées
par
rhombes
et
trombes
te bâtir
(in moi,
laminaire..., in La Poésie, p.
410)
elo
da corrente
com pedaços de
barbante
com lascas de pau
com de um tudo,
todos os pedaços pobres
com golpes baixos
com folhas mortas
apanhadas à pá
com restos de
lençóis
com laços
lacerados
com elos forçados
de correntes
com ossadas de
moréia
com açoites
desfiados
com conchas
marinhas
com bandeiras e
túmulos desconjuntados
por
rombos
e
trombas
construir
chanson de l'hippocampe
petit cheval hors du temps enfui
bravant les lès
du vent et la vague et le sable turbulent
petit cheval
dos
cambré que salpêtre le vent
tête basse vers
le cri des juments
petit cheval sans
nageoire
sans
mémoire
débris de fin de
course et sédition de continents
fier petit cheval
têtu d'amours supputés
mal arrachés au
sifflement des mares
un jour rétif
nous
t'enfourcherons
et tu galoperas
petit cheval
sans peur
vrai dans le vent
le sel et le varech
(in moi, laminaire.., in La Poésie, p.
400)
canção do hipocampo [7]
cavalinho
além-tempo foragido
arrostando as
dobras do vento e a onda e a areia turbulenta
cavalinho
dorso
arqueado que o vento cobre de salitre
cabeça
baixa na direção do guincho das fêmeas
cavalinho
sem barbatana
sem
memória
restos
de fim de corrida e sedição de continentes
altivo
cavalinho teimoso de amores suputados
mal
arrancados do assovio das poças
um
dia insubmisso
nós
te cavalgaremos
e galoparás cavalinho
sem
medo
de
verdade ao vento no sal no sargaço
ça, le creux
ça ne se
meuble pas
c'est creux
ça ne
s'arrache pas
ce n'est pas une fleur
ça
s'effilocherait plutôt
étoupe pour étouffer les cris
(s'avachissant
ferme)
ça se
traverse
- pas forcément à toute vitesse -
tunnel
ça se
gravit aussi en montagne
glu
le
plus souvent ça se rampe
(in
moi, laminaire, in La Poésie, p.
417)
o oco [8]
o que é o
que é
não tem
mobília
é oco
não se
arranca
não é uma flor
se esfiapa
estopa para abafar gritos
(avacalhando-se-
acanalhando-se)
se
atravessa
- não forçosamente rápido -
túnel
também se
sobe como montanha
visgo
no mais das vezes
se rasteja
Marais
nocturne
Le marais déroulant son lasso jusque-là lové
autour de son nombril
Et me voilà installé par les soins obligeants de l’enlisement au fond du marais et fumant le tabac le plus rare qu’aucune alouette ait jamais fumé
Miasme on m’avait dit que ce ne pouvait être que le règne du crépuscule. Je te donne acte que l’on m’avait trompé. De l’autre côté de la vie, de la mort, montent des bulles. Elles éclatent à la surface avec un bruit d’ampoules brisées. Ce sont les scaphandriers de la réclusion qui reviennent à la surface remiser leur tête de plomb et de verre, leur tendresse.
Tout animal m’est agami-chien de garde.
Toute plante silphium-lascinatum, [9] parole aveugle du Nord et du Sud.
Pourtant alerte.
Ce sont les serpents.
L’un d’eux siffle le long de ma colonne
vertébrale, puis s’enroulant au plus bas de ma cage thoracique, lance sa tête
jusqu’à ma gorge spasmodique.
A la fin l’occlusion en est douce et j’entonne
sous le sable
L’HYMNE AU SERPENT LOMBAIRE
(In Cadastre, in La Poésie, p.193-194.)
Pântano
noturno
O pântano desenrolando o seu laço até então enrolado
em torno do seu umbigo [10]
Eis-me instalado pelos gentis cuidados do atolamento no fundo do pântano, fumando o mais raro tabaco que uma andorinha já fumou [11]
Miasma [12] tinham-me dito que só podia ser o reino do crepúsculo. Me enganaram, confirmo-te. Do outro lado da vida, da morte, sobem bolhas. Estouram à superfície com o barulho de lâmpadas quebradas. São os escafandros da reclusão que voltam à superfície para reporem a sua cabeça de chumbo e de vidro, sua ternura. [13]
Todos os animais para mim são gansos de guarda [14]
Todas as plantas silphium-lascinatum, [15] palavra cega ao Norte e ao Sul.
E no entanto alerta.
São as serpentes. [16]
Uma delas assobia ao longo da minha coluna
vertebral, depois enrolando-se bem abaixo da minha caixa torácica, lança a sua
cabeça até a minha garganta em espasmos. .
No fim a oclusão me é doce e entoo sob a areia [17]
O HINO À SERPENTE LOMBAR.
[beau
sang giclé]
Beau sang giclé [18]
tête trophée membres lacérés
dard assassin beau sang giclé
ramages perdus rivages ravis
enfances enfances conte trop remué
l’aube sur sa chaîne mord féroce à naître
ô assassin attardé
l’oiseau aux plumes jadis plus belles que le passé
exige le compte de ses
plumes dispersées
(in Ferrements, in La Poésie, Seuil, p.
336)
[belo sangue esguichado]
belo sangue
esguichado
cabeça troféu membros lacerados
dardo assassino belo sangue esguichado
ramagens perdidas praias roubadas
infâncias infâncias conto muito remoído
a aurora presa na sua corrente morde feroz para nascer
ó assassino em atraso
o pássaro das plumas outrora mais belas que o passado
exige a conta das suas penas dispersas
De
forlonge [19]
Les maisons de
par ici au bas des montagnes
ne sont pas
aussi bien rangées que des godillots
les arbres sont
des explosions dont la dernière étincelle
vient écumer sur
mes mains qui tremblent un peu
désormais je
porte en moi
la gaine
arrachée d’un long palmier
comme serait le
jour sans ton souvenir
la soie grège
des cuscutes
qui au piège
prennent le dos du site
de la manière
très complète du désespoir
des ceibas
monstrueux seuls auxquels
dès maintenant
je ressemblerais dépouillé des feuilles
de mon amour
je divague entre
houle et javelles que fait tumultueuse
la parole des
albizzias
il y a en face
de moi un paysan extraordinaire
ce que chante ce
paysan c’est une histoire
de coupeur de
cannes
han le coupeur
de cannes
saisit la dame à
grands cheveux
en trois
morceaux la coupe
ah le coupeur de
cannes
la vierge point
n’enterre
la jette en
morceaux
les jette
derrière
ah le coupeur de
cannes
De
muito longe
[20]
Por aqui as
casas lá em baixo das montanhas
não são
arrumadinhas como sapatos velhos numa sapateira
as árvores são
explosões e a última faísca
vem como espuma
sobre minhas mãos que tremem um pouco
daqui para
frente levo em mim
a cinta
arrancada de uma alta palmeira [21]
como seria o dia
sem a tua lembrança
a seda prateada
das parasitas
que por
armadilha tomam lugar no dorso
à maneira mais
completa do desespero
das gameleiras
monstruosas às quais
agora eu
pareceria despojado das folhas
do meu amor
divago entre
onda e feixes que tumultua
a palavra das
albizzias [22]
há diante de mim
um camponês extraordinário
o que canta o
camponês é uma história
de cortador de
cana
han o cortador
de cana [23]
agarra a dama
dos longos cabelos
e a corta em
três pedaços
ah o cortador de
cana
não enterra a
virgem [24]
joga os pedaços
joga-os atrás de
si
ah o cortador de
cana [25]
[chante
le paysan]
chante le paysan
et vers un soir de coutelas s’avance
sans colère
les cheveux
décoiffés de la dame aux grands cheveux
font des
ruisseaux de lumière
ainsi chante le
paysan
Il y a des tas
de choses dont je ne sais pas le nom
et que je
voudrais te dire
au ciel ta
chevelure qui se retire solennellement
des pluies comme
on n’en voit jamais plus des noix
des feux
Saint-Elme
des soleils
lamés des nuits murmurées
des cathédrales
aussi
qui sont des
carcasses de grands chevaux rongés
que la mer a
crachés de très loin
mais que les
gens continuent d’adorer
des tas de
choses oubliées
des tas de
choses rêvées
tandis que nous
deux Lointaine-ma-distraite
nous deux
dans le paysage
nous entrons jamais fané
plus forts que
cent mille ruts
(in Corps perdu, in La Poésie, p. 226 – 227)
[canta
o cortador]
canta o cortador
e em direção da noite de cutelo avança
sem cólera
os cabelos
despenteados da dama dos longos cabelos
fazem riachos de
luz
assim canta o
cortador
Há muitas coisas
de que não sei o nome
e que eu queria
dizer-te
no céu a tua
cabeleira se retira solene
como nunca
chuvas nozes
fogos de San-telmo
sóis laminados
noites sussuradas
catedrais também
que são as
carcaças de grandes cavalos roídos
que o mar cuspiu
de muito longe
mas que se
continua a adorar
muitas coisas
esquecidas
muitas sonhadas
enquanto que nós
dois minha Longínqua-distraída
nós dois
na paisagem que
nunca fenece entramos
mais fortes do que
cem mil cios
passages
(la nécessité de la spéciation
n’étant acceptée que dans la mesure où
elle légitime les plus audacieuses transgressions)
passer
dit-il
et que dure chaque meurtrissure
passer
mais ne pas dépasser les mémoires vivantes
passer
(penser est trop rapide)
de
tout paysage garder intense la transe
du passage
passer
anabase et diabase
déjà
se
dégage du fouillis au loin
tribulation
d’un volcan
la
halte d’une vive termitière
(in moi, laminaire…, in La Poésie, Seuil,
p. 467)
passagens
(a necessidade da especiação [26]
só sendo aceita na medida em que
legitima as mais audaciosas transgressões)
passar
diz ele
e que dure cada contusão
passar
mas não ultrapassar as memórias vivas
passar
(pensar é por demais rápido)
de
toda paisagem conservar a transa intensa
da passagem
passar
anábase e diábase [27]
já
se
nota do tremular ao longe [28]
tribulação
de um vulcão
o
estancar de um vivo cupinzeiro
Ferment
Séduisant du festin de mon foie ô Soleil
ta réticence d’oiseau, écorché, roulant.
L’âpre lutte nous enseigna nos ruses,
mordant l’argile, pétrissant le sol
marquant la terre suante
du blason du dos, de l’arbre de nos épaules
sanglant, sanglant
soubresaut d’aube démêlé d’aigles.
(in Ferrements, in La Poésie, p. 342)
Fermento
Seduzindo com o festim do meu fígado ó Sol [29]
tua reticência de ave, esfolado, despencando.
A luta áspera nos ensinou astúcias,
mordendo a argila, amassando o solo
marcando a terra úmida
com o brasão do dorso, a árvore das nossas
espáduas
sangrando, sangrando
sobressalto de aurora disputa de águias.
odeur
mais vint l’odeur
l’odeur dit.
Sobrement dit.
de goémon
de sueur de nègres
d’herbe
de vesou
de coutelas
de mangle.
l’odeur dit
c’est tout dire.
l’odeur n’est pas vide.
l’odeur n’a pas de rides.
(in
moi, laminaire…, in La Poésie, p. 403)
odor
mas veio o odor
o odor diz.
Sobriamente diz.
de sargaço
de suor de negros
de erva
de caldo de cana
de facão
de mangue.
o odor diz
basta dizer.
o odor não é vazio.
O odor não tem rugas.
algues
la relance ici se fait
par le vent qui
d’Afrique vient
par la poussière de
l’alizé
par la vertu de l’écume
et la force de la terre
nu
l’essentiel est de
sentir nu
de penser nu
la poussière de l’alizé
la vertu de l’écume
et la force de la terre
la relance ici se fait
par l’influx
plus encore que par
l’afflux
la relance
se fait
algue laminaire [30]
(in
moi, laminaire…, in La Poésie, p. 415)
algas
o recomeçar aqui se faz
pelo vento que vem da
África
pela poeira do alísio
pela virtude da espuma
e a força da terra
nu
o essencial é sentir-se
nu
pensar nu
a poeira do alísio
a virtude da espuma
e a força da terra
o recomeçar aqui se faz
pelo influxo
mais ainda do que pelo
afluxo
o recomeçar
se faz
alga laminária
solvitur
sans cette colère c’est
clair
il ne s’agirait plus que
d’une douceâtre fiente de malfini
mal dilué par les eaux
vomi des terres
je salue le vieux lion
et son courroux de pierres
dans ce paysage
-
éclaraige d’une rémanence
igitur
non.
Solvitur [31]
(in moi, laminaire…, in La Poésie, p.
422)
solvitur
sem esta cólera claro
está
seria apenas um
adocicado excremento de águia
mal diluido pela água
vomitado de terras
saúdo o velho leão e a sua
fúria de pedras
nessa paisagem
- brilho
de uma remanescência
igitur
não.
Solvitur
chemin
reprenons
l’utile chemin
pacient
plus bas que
les racines le chemin de la graine
le miracle sommaire bat des cartes
mais il n’y a pas de miracle
seule la force des graines
selon leur entêtement à mûrir
parler c’est accompagner la graine
jusqu’au noir secret des nombres
(in moi, laminaire…, in La Poésie, p.
440)
caminho
tomar de novo
o útil caminho
paciente
mais fundo que
as raízes o caminho do grão
o milagre sumário bate as cartas
mas não há milagre
só a força dos grãos
só a sua teimosia em amadurecer
falar é acompanhar o grão
até ao negro segredo dos números
NOTAS
1.
Para a tradução do poema em português, ver ALMEIDA, Lilian Pestre. Aimé Césaire.
Cahier d’un retour au pays natal/Diário de um retorno ao país natal. Edição bilingue. Tradução,
notas, bibliografia e posfácio. São Paulo, EDUSP, 2012.
2. Devinettes,
em francês.
3.
O título do seu volume de poemas, moi,
laminaire..., de 1981, significa exatamente isso: laminária é um tipo de
alga que se prende às rochas.
4.
Cayes (em espanhol: cayo) são pequenas ilhas de areia à flor
d’água, em maciços ou barreiras de corais, nas costas rendilhadas da Flórida,
das ilhas e da América Central, ou seja em todo o Mar das Antilhas.
5.
O 1º fio de leitura do poema vem da identificação de dois topônimos (citados em
espanhol) na costa leste do Panamá: Boca del Toro, Boca del Drago. Um grande
número de homens, vindos da Martinica e da Guadalupe ou da Guiana francesa,
trabalhou (e por vezes morreu) nas obras de abertura do canal do Panamá,
projeto inicialmente do francês Ferdinand Lesseps (1805 – 1894). Aquele que
assovia na estrada é Exu: ele faz o inventário das mortes, desde os Caraíbas
exterminados pouco depois do Descobrimento até os trabalhadores contratados do
início do século XX. A França iniciou a construção do canal em 1881, mas teve
que interromper a obra devido a problemas de engenharia e pela alta taxa de
mortalidade de trabalhadores vindos das Antilhas francesas; o projeto foi
continuado pelos Estados Unidos, o canal sendo inaugurado em 15 de agosto de
1914.
Traduzimos
Stymphanos, lembrança transfigurada
das aves antropófagas de bico de ferro exterminadas por Hércules no lago de
Estinfale (embora não haja aqui um herói vencedor dos “monstros”) por “aves de
rapina” para manter a tonalidade popular do texto e sobretudo o jogo dos i, e
acrescentamos um tipo de Exu de pernas curvas (Exu Tiriri) ligado à vingança.
Note-se a agressividade dos dentes, dos cornos e dos bicos mortíferos
(piranhas, aves de rapina, dragão, touro etc.)
Piranhas
em francês é masculino, o que explica o adjetivo beaux, beaux.
6.
Phasmes. Entomologia. Gênero de
insetos ortópteros, de corpo alongado e frágil, vivendo sobretudo em zonas
tropicais e equatoriais, cujas espécies imitam à perfeição os galhos onde
pousam. Césaire é um grande leitor de obras científicas sobre fauna e flora.
Traduziu-se phasmes por fantasmas por causa da etimologia
semelhante.
7.
Hipocampo (do grego hippos, “cavalo”
e kámpos, peixe marinho) é um pequeno
cavalo marinho, nadando na vertical, cujo cabeça lembra vagamente a de um
cavalo. Césaire retoma alusivamente o nascimento mítico do cavalo, surgido do
mar, ferido pelo tridente de Netuno ou Poseidon. Este pequeno poema retoma,
numa forma miniaturizada, o grande poema épico dos anos 40, “Les pur-sang”.
8.
A tradução do poema em português optou por introduzir a fórmula tradicional (o que é, o que é?) de um enigma a ser
decifrado ou adivinhação (devinette
em francês) para fornecer um tênue fio de compreensão ao leitor estrangeiro. O
poema enigma retoma a tradição de Édipo diante da Esfinge ou dos oráculos
sibilinos de Delfos a serem decifrados. O preço de não saber decifrar pode ser
a morte do homem ou a destruição de um exército ou de uma frota de barcos.
Joga-se,
no momento das vigílias fúnebres nas Antilhas, sobretudo nas zonas rurais de
Haiti, o jogo das adivinhações. Do ponto de vista antropológico, a morte ou a
presença de um morto corta o fluxo das palavras que tece o mundo. A atividade
lúdica de dar respostas a adivinhações codificadas do lado de fora da casa em
que se vela um morto, num contexto de liberdade em que qualquer um, descartada
toda hierarquia social (velho, homem adulto, mulher ou criança) pode dar
resposta, permite de novo a circulação da palavra. Decifrar assim o que é “o
oco” permite viver ou descobrir a trajetória do viver coletivo numa ilha.
Enfim,
os dois elementos da natureza, montanha e visgo, ou seja, ascender ou
enterrar-se como semente na terra /lama, correspondem simbolicamente a dois
modelos de herói segundo Césaire no seu teatro: aquele que é ascensão (do tipo
Christophe, “soif de la montagne”),
aquele que é semente (do tipo Metellus, do latim meto, o que é ceifado e fertiliza a terra). A montanha está na área
semântica do vulcão, sempre prestes a explodir; o visgo, na área do charco,
pântano, mangue. Veremos no poema seguinte como o pântano ou mangue é um tema
constante na poesia de Césaire.
9. Uma
explicação provável para essa planta exótica, citada em latim, está numa das
histórias de Pausânias sobre a punição que os deuses impõem àquele que não sabe
acolher a revelação do sagrado: os Dióscuros (= os gêmeos divinos, filhos de
Zeus) raptam a única filha única um pai, deixando no seu quarto uma flor
maléfica, o silphium-lascinatum.
Pausânias é uma das leituras clássicas de Césaire. Ver in Mémoire et métamorphose, no capítulo
sobre os poemas-túmulos, aquele dedicado a Saint-John Perse onde se evoca o rio
Oronte, o rio que corre ao contrário , p. 114 - 118; p. 368 - 370.
10.
Charco e mangue, pântano e lama são sempre positivos em Césaire. É o lugar do
caos inicial, fértil de todas as virtualidades, da indeterminação dos
primórdios mas também lugar de germinação da vida que se renova e da
possibilidade de revolta.
11.
Essa imagem estranha responde sibilinamente a um texto de Breton (in Arcane 17) que comenta uma
publicidade de tabaco para cachimbo do Canadá francês dos anos 40: “alouette gentille alouette, je te fumerai”,
jogo de palavras que retoma e transforma uma canção folclórica francesa (alouette, gentille alouette, je te plumerai).
12. Em miasma (du grec ancien miasma : “ poluição, impureza”), há a crença antiga no
“mau ar”. Em Césaire, o pântano é fonte de vida, como o mangue aliás.
13.
Arcane 17 de Breton na edição de
Brentano’s era ilustrado por gravuras do surrealista chileno Roberto Matta que
reinterpreta as cartas tradicionais do Tarot de Marseille. O poema, ao
referir-se a escafandros (no plural) que sobem à superfície depois de terem
mergulhado, retoma de certa forma a gravura de Matta. Mas Césaire transforma
igualmente a gravura do surrealista chileno ao colocar no plural o escafandro.
14.
Agami (Psophia crepitans, da família dos psofíedeos) frequente
nas florestas primárias da Amazônia, é um tipo de ave grande,
de voo curto, que pode ser domesticada e treinada para guardar galinheiros ou
pequenas plantações. Traduziu-se por “gansos de guarda” em lembrança do
Capitólio em Roma e para facilitar a leitura por um estrangeiro.
15.
Planta alta, tipo de girassol, mas que não acompanha o sol. É chamada em inglês
“compass flower/plant”. Ao manter o nome
erudito da planta, manteve-se a opacidade do texto.
16. A serpente, no imaginário césairiano, é um dos
animais mais frequentes, ao longo de toda a sua obra.
17.
A serpente lombar corresponde à Kundalinî que remete ao texto sagrado hindu, o Bhâgavata gîta. A sua ascensão
no interior do corpo humano é um momento de plenitude e de prazer intenso.
18.
O poema reescreve alusivamente um kont
popular em crioulo das Antilhas: é a história de Colibri que lutou contra o
Cavalo, o Boi e o Peixe Armado, foi morto pelos seus adversários que lhe cortam
a cabeça e a põem debaixo de uma pedra. Aqui Colibri volta, depois da morte,
para cobrar aos assassinos a conta das suas penas dispersas ao vento.
In Tropiques,
nº IV, janvier 1942, p. 7-11, Césaire e seu amigo René Ménil assinam
conjuntamente um artigo, “Introduction au folklore
martiniquais” onde os dois lêem a aventura de Colibri:
"Un tambour. Le grand rire du vaudou
descend des mornes. Combien, au cours des siècles, de révoltes ainsi
surgies! Que de victoires éphémères! Mais aussi quelles
défaites! Quelles répressions! Mains coupées, corps écartelés,
gibets, voilà ce qui peuple les allées de l’histoire coloniale. Et, rien de
tout cela n’aurait passé dans le folklore? Vous connaissez le conte de
Colibri. Colibri, contre qui se liguent le Cheval, le Bœuf, le Poisson-Armé et
Dieu lui-Même. Colibri et son fidèle compagnon : le tambour!
Poisson-Armé fonçait toujours. Au second coup, ce fut fini.
- Mon dernier combat, dit Colibri qui tomba mort.
Poisson Armé, en
toute hâte, ramassa un grand coutelas qui traînait par là, coupa la tête de
Colibri, la mit sous la pierre de taille dans la cour de la maison. Alors
seulement, il prit le tambour et l’emporta. ”
(L. Hearn, Trois fois bel
conte…)
O
leitor poderia notar ainda que: Peixe-Armado que mata e despedaça Colibri, vem
do mar: ele corresponde ao “squale”
(= tubarão) do fim do Cahier enquanto
Alouette (= Andorinha) que fuma no
fundo do pântano, no poema anterior, permite a subida da Kundalini e libera o
canto do narrador, ela corresponde de certa forma ao pássaro que sobe,
“lambedor do céu”, também no final do Cahier.
19.
Chasser de forlonge é uma expressão
antiga de caça quando os cães perseguem de longe o animal numa floresta.
20.
Nesse poema, cujo núcleo central é o canto de um cortador de cana, visto e
ouvido do alto pelo narrador em primeira pessoa, juntam-se vários elementos: a)
a paisagem do norte montanhoso da Martinica coberta pela floresta tropical e
sua vegetação em vários níveis; b) o narrador em 1ª pessoa, ainda entre árvores
e identificando-se do ponto de vista panteísta com elas, vê lá embaixo, no
canavial, um lavrador que canta uma comptine
(= canção infantil) sobre a cana e c) graças a uma devinette tradicional, o narrador transforma o conto conhecido de
Grimm num poema de amor, pela terra natal e pela mulher amada. Note-se enfim a
precisão e a erudição das notações de flora.
21.
Ver a lembrança do castigo do fauno Mársias a quem se arranca a pele em vida,
como punição da sua hybris, por ordem
de Apolo. A iconografia sobre Mársias é importante em todo o barroco europeu.
22. Decidiu-se manter a opacidade do texto que cita
uma espécie vegetal criada por um viajante italiano.
23. La dame aux
grands cheveux, numa adivinhação tradicional antilhana, é a cana.
24.
Note-se a lembrança com o “conto do pé de zimbro” dos irmãos Grimm, ao mesmo
tempo semelhante e diferente.
25. Em “ O
conto do pé de zimbro”, veja-se a canção do pássaro mágico: “Minha mãe me matou, meu pai me comeu./Minha irmã,
Marlene, meus ossos recolheu, /Em seda os envolveu, e sob o zimbro os
depositou./ Bela ave canora agora sou!” O conto do pé de
zimbro (em alemão Vom
Machandelbaum) é um conto popular alemão recolhido pelos irmãos Grimm no
primeiro volume dos Contos de infância e
do lar (Kinder- und Hausmärchen, 1812, n° KHM 47).
26. Termo
científico: Especiação é o processo evolutivo pelo qual as espécies vivas se formam. Este processo pode ser uma transformação gradual de uma
espécie em outra (anagênese) ou pela divisão de uma espécie em duas por cladogênese.
27.
Jogo com o grego clássico. Há duas noções nos clássicos gregos que se opõem:
anábase e catábase, ou seja, subir à fonte ou descer às profundezas. Saint-John
Perse publica em 1924 um longo poema épico chamado Anabase. A partir dos dois termos clássicos, Césaire cria diábase:
do ponto de vista etimológico, passar através. Quem passa através do espaço e
do tempo evidentemente é Exu.
28.
Duas outras características da poética de Césaire: a miniaturização e a
gigantização de elementos da natureza e do seu próprio eu.
29.
A lembrança do castigo de Prometeu é clara: o Filantropo é punido por Zeus pelo
seu amor aos homens, ao roubar o fogo dos deuses. Seu fígado, que renasce sem
cessar, é devorado por uma águia.
30.
Laminaire é um tipo comum de alga que
se agarra aos rochedos perto das costas do mar das Caraíbas. Quando o poeta
afirma eu=laminária (moi, laminaire...)
sugere um outro tipo de enraizamento nas Américas, a meio caminho da terra e do
mar.
31. Em “Igitur ou la Folie d’Elbehnon”, obra inacabada (1869), Stéphane Mallarmé
(1842-1898) afirma a “auto-realização do ato poético” no qual “joga o acaso”,
podendo o poema prescindir até mesmo de tema ou assunto. “Un
coup de dés jamais n’abolira le hazard” (= um jogo de dados nunca abolirá o
acaso). Ao Igitur de Mallarmé,
Césaire responde sibilina e decididamente: não. Ao Igitur, solvitur.
A ilha natal, diminuta sobre as cartas
geográficas, “sem esta cólera” seria comparável ao excremento de aves, mal
diluído pelas águas do mar. Uma anedota muitas vezes repetida, citada inclusive
por Glissant num dos seus ensaios, afirma que de Gaulle teria dito: “entre la France (ou l’Europe) et l’Amérique,
je ne vois que poussière” (entre a França, ou a Europa, e a América só vejo
poeiras). O tema, mesmo sem a frase que se atribui a de Gaulle, é importante:
está em Césaire desde os seus primeiros poemas. Ele abre o Cahier na sua versão definitiva, a partir de edição de Bordas
(março 1947). A visão do alto, do ponto de vista de uma grande ave que desce em
vôo planado para as ilhas – visão escópica – é frequente Césaire que não cessa
de descrever e cantar “ cette mer
pouilleuse d’îles” (= esse mar piolhento de ilhas).
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