● 100 números e a dinâmica imóvel do cotidiano
Sempre que mencionamos
os limites da humanidade, pensamos mais no que destruímos do que naquilo que construímos,
à exceção de quando nos referimos às construções destrutivas. O avanço das três
graças – Arte, Religião, Ciência – tem sido repleto de contradições, de modo que
não cabe fazer o balanço apenas de seus aspectos negativos.
Ao final de 1999 me foi possível criar a Agulha Revista de Cultura, uma bênção do acaso em face do impedimento
de levar adiante outro projeto editorial. De uma aventura impressa, com distribuição
em bancas, fui de certo modo levado à outra margem, a experiência virtual. Percorrendo
as páginas dos 100 números até aqui publicados é possível encontrar a cartografia
mágica de nosso orgulho editorial. A substância perene de nossas apostas temáticas.
Ao longo de 18 anos alcançamos uma entranhável expansão no que diz respeito a países
de circulação e altíssimo nível de colaboradores, não apenas aqueles que escrevem
matérias para nós ou cedem material já publicado em outras instâncias, de menor
vulto, como também outro tipo de cumplicidade, amigos e editores de outras revistas,
que ajudam a ampliar o universo de difusão de nosso trabalho. Os agradecimentos
jamais poderiam ser diretamente nominados, por sua imensidão solidária.
Este número 100 se apresenta em formato duplo, e possui algumas singularidades
que gostaríamos de destacar. Começando pelo primeiro capítulo de um extenso volume
de ensaios de Harold Alvarado Tenorio – Ajuste
de cuentas. La poesía colombiana del siglo XX – originalmente publicado em 2014,
que será integralmente publicado nas próximas edições. Seu autor, nascido colombiano
em 1945, foi um de nossos primeiros parceiros. Outra singularidade que julgamos
expressiva é a realização de uma extensa enquete sobre Erotismo e Sexualidade, aqui
apresentada em três partes. Também quero mencionar a presença do artista plástico
Valdir Rocha, que assina o ensaio fotográfico referente às obras de nossa artista
convidada, Felícia Leirner (1904-1996), ressaltando não somente a fundamental relevância
da obra da escultora brasileira, como também a importância do Museu Felícia Leirner,
a céu aberto, em Campos do Jordão, São Paulo. Reproduzo aqui um comentário de Valdir Rocha acerca de nossa artista convidada:
***
Para não ser demasiado extensivo,
destacamos ainda os seguintes números que compõem nossas séries especiais, com publicação
confirmada para os meses de agosto e setembro: Belchior, Jacob Klintowitz, Friederich
Nietzsche, Hermeto Pascoal, Margarita Lazo e Augusto Meyer.
VALDIR ROCHA | Mais ou menos
a cada dois anos, eu gosto de passar alguns dias em Campos do Jordão. Lá tenho sempre
um programa obrigatório: visitar o Museu Felícia Leirner, constituído por grande
conjunto de esculturas da artista, dispostas em amplíssimo e belo terreno de milhares
de metros quadrados, em local onde as araucárias e o sinuoso gramado enchem os olhos
de todos. Ali mais de 100 esculturas encontram o melhor lugar em que poderiam ter
sido instaladas.
As esculturas
de Felícia Leirner, especialmente as realizadas em cimento branco armado, destacam-se
do verde e chamam as pessoas a se locomoverem e, sempre que possível, contorná-las,
em terreno acidentado, pleno de elevações e caminhos. Além de tudo, as visitas são
provocadoras de lúdico caminhar. Não conheço conjunto de esculturas de um mesmo
artista que atraia tanto os visitantes quanto o do Museu Felícia Leirner. Trata-se
de generosa doação feita pela artista em 1978.
Felícia Leirner
nasceu em Varsóvia, em 1904. Veio para o Brasil com 23 anos de idade e só depois
dos 40 anos incursionou pela escultura, iniciando-se na técnica com Victor Brecheret,
de quem foi a única aluna. Participou de diversas edições da Bienal de São Paulo
e nestas contatou com muitos escultores. Poderá ter, sim, sofrido a influência de
muitos deles, mas é certo que alcançou voo próprio e singular. No início, mesmo
que livres é natural que os iniciantes sofram alguma espécie de influência; por
isso, as obras iniciais quase sempre só têm importância como demarcação de um percurso.
No caso de Felícia Leirner, o que conta para mim são especialmente suas obras de
plena maturidade artística – cruzes, estruturações, habitáculos e portais. E estas
dizem muito, porque as vejo como sóbrias e originais; falam-me de uma espécie particular
de manifestação arrebatadora, que me fazem querer sempre fotografá-las.
Como escultor,
minhas incursões pela técnica são muito diversas das de Felícia. Mas atento aos
valores dos diferentes, manifesto minha admiração pela obra de Felícia, fotografando-a
e difundindo-a.
***
Em conversa com alguns de nossos colaboradores – os poetas Zuca Sardan
e Claudio Willer, os jornalistas José Anderson Sandes e Lúcio Carvalho, o compositor
Graco Braz Peixoto e o crítico de artes Jacob Klintowitz –, propusemos um tema para reflexão, assim exposto: Qual o diagnóstico possível para a atual condição
de credibilidade da mídia em seus diversos segmentos (jornais, revistas, televisões
– abertas e fechadas –, Internet, rádios)? Que papel invasivo joga no sistema midiático
os mecanismos ideológicos e publicitários? Mercado e política corromperam toda a
mecânica da comunicação? As respostas:
CLAUDIO WILLER | Não. Já se publicou tanta coisa boa em jornais
e revistas. Problemas que você aponta são mais da formação, inclusive formal, educacional.
Problema que eu vejo é a mídia mais formal ou tradicional estar tão pobrezinha,
esquálida. Em 1988/89 perfazia algum saldo bancário através de colaborações para
meia dúzia de mídias impressas – revistas e jornais. Gosto de muita cosia que publiquei
nos extintos JB e JT – e havia leitores. Hoje, quase todos
não existem mais ou definharam e não publicam quase nada. Claro que meio digital
é importante, novas publicações com relação às quais tanto o Jornal de Poesia quanto Agulha Revista de Cultura são pioneiras e
referenciais desempenharam um grande – ia dizer papel, qual será o termo equivalente
para o que não vem mais sobre papel? Enfim, acho algumas das críticas à mídia –
inclusive por gente do calibre de Marcuse e Adorno, e não só dos esbirros das bandas
sectárias – maniqueístas. Problemas estão mais do lado de cá da mídia e não do lado
de lá, ou seja, em seu interior.
GRACO BRAZ PEIXOTO
| Acredito que o diagnóstico é o mesmo, desde que a Comunicação
se tornou uma decisiva forma de negócios e instrumento de ideologia. É só vermos
as formas como regimes autoritários e regimes liberais fazem uso da Comunicação,
neste caso na forma de propaganda. Claro, estou simplificando, mas se trata de um
argumento irrefutável. Podemos comparar, por exemplo, os outdoors no trajeto do
aeroporto para o hotel em cidades como Havana e New York. Já se tornou lugar comum
apelar para o fato de que poucas famílias detêm esse poder, tanto aqui como nos
EUA etc. Antes de diagnóstico, lá atrás vem a questão da Ética, determinante para
o comportamento das rádios AM, FM, dos grupos editoriais de jornais e revistas,
das TVs, que aqui no Brasil também monopolizam os canais a cabo, do Google, Youtube
e Facebook… Não fosse assim, nossos heróis modernos não seriam Edward Snowden e
Julian Assange! A forma como os países reagiram às suas divulgações de documentos
do Kremlin, Pentágono, Casa Branca, Palácio do Planalto etc., etc., deixa a evidência
de que toda comunicação no campo da política é filtrada, arranjada segundo as diretrizes
de determinado governo. No outro extremo está a grande possibilidade de um Quinto
Poder, a voz do cidadão via redes sociais. Ainda é muito cedo para dar crédito a
esse canal da verdadeira Vox Populi, mas há situações em que a movimentação via
redes sociais já demonstrou ser efetiva contra o Quarto Poder, a Mídia. O diagnóstico
é a medida da Ética, não a possível porque não existe Ética possível.
Quanto ao papel invasivo, é o que conhecemos, o dirigismo político. Podemos
exercitar nossa imaginação criando um canal de TV estatal para a Coréia do Norte.
Como seria? Como se comporta a TV para os coreanos? O papel é maquiavélico, mas
não posso deixar de falar, também, do alto grau de liberdade e da presença de certa
democracia do esclarecimento na imprensa. Podemos citar New York Times, Le Monde,
El País etc. Todos esses veículos contribuem para fazer a divulgação de fatos que são
do interesse do país e do mundo. Temos que ver também o grande benefício de se colocar
um governo em cheque e de melhorar a gestão dos recursos e problemas de um país
por meio da comunicação. Mais uma vez a Ética antes de tudo.
Por último, as relações entre mercado, política e comunicação. Acredito que
há casos e casos. Como dito acima. Novamente podemos procurar exceções. Imagine
uma potência como a China, econômica e cultural, mantida sob a rédea curta pelo
único partido. Deve haver muita corrupção, onde há poder… Hoje sabemos que há uma
casta de grandes homens de negócios surgidos da geração que tomou o poder com a
Revolução Cultural. A Comunicação está em tudo, antes de qualquer coisa ela é a
base da vida, dos relacionamentos, portanto ela é uma extensão de qualquer atividade.
Não digo que corromperam, aí seria ver tudo com lentes negras, mas creio que mercado
e política usam suas armas e o poder de comunicação, de persuasão talvez seja a
maior arma.
JACOB KLINTOWITZ | A credibilidade é, em minha opinião, cada vez mais baixa. A mídia perdeu
muito de sua relevância por seu caráter tendencioso. Ficou claro para a maioria
das pessoas que a mídia tem um papel fundamental no estabelecimento do poder político
e econômico. Isto está denunciado à exaustão. As vozes independentes, os chamados
jornalistas de opinião, perderam parte de sua influência. Primeiro, por evidente
deficiência cultural. Em segundo lugar, por ter se tornado também evidente que estão,
em boa parte, a soldo do poder politico e do poder econômico. Em terceiro lugar,
à diferença de algumas décadas atrás, os grandes nomes desapareceram do jornalismo
e estão trabalhando na literatura, nas universidades, na publicidade, na advocacia.
E, em quarto lugar, o deslumbramento com o universo das celebridades tornou a mídia
ridícula, a busca desesperada por captar parte do público que tem fixação em ídolos
ou em celebridades que são só celebridades… E, por fim, como se trata de dar opiniões
engajadas ou meramente fisiológicas, hoje os meios de comunicação possibilitam que
qualquer um faça isto de sua própria casa. A mídia tende à irrelevância. Os mecanismos
ideológicos são determinantes na atuação da mídia contemporânea. Comportamento é
a base da discussão. E “vanguarda” é a chave da definição das personalidades totais.
É uma espécie de ficção. Todos se acham vanguarda. Infelizmente é um termo que vem
do exército e da função de um grupo que se encarrega de informar e de destruir.
Isto diz muito do desejo de hegemonia dos grupos que se pretendem vanguarda e do
ataque sistemático e violento aos que não partilham a sua ideologia. A vanguarda
ignora a alteridade. E despreza a ética. E curiosamente a vanguarda se apropria
do título, se autodenomina vanguarda e, a partir disto, pretende deter e manipular
o poder. É uma sociedade de aparências. Mercado e política corromperam toda a mecânica
da comunicação? Quase que inteiramente. Principalmente se entendermos “mercado”
no seu sentido mais amplo, de venda de comportamentos, ideias, modos de ser.
JOSÉ ANDERSON SANDES
| Os mitos da objetividade
e, em consequência, credibilidade, sempre foram o calcanhar de Aquiles da mídia
– seja no passado, no presente ou no futuro. A notícia é um negócio e tem que existir
um pacto entre o leitor e o jornal. Não existe jornal sem leitor, como não existe
também literatura. Se olharmos a linha histórica da mídia brasileira no Século XX
sempre existiu contaminação entre jornais e poder público. Por isso vejo a mídia,
como uma instância de poder institucional. Para o bem ou para o mal. Veja como foi
formado o império Chateaubriand. Ou o império Marinho. Ou como se deram as relações
dos governos entre os jornais das famílias Mesquita e Frias. A questão é mais complexa
do que se imagina e está, sem dúvidas, na nossa origem autoritária. Sempre essas
duas esferas – mídia e poder – estiveram de mãos dadas. Ora o pêndulo puxando para
um lado; ora para outro. De Getúlio a Lula. Lógico que não era para ser dessa maneira.
Mas se pensarmos melhor, não foi apenas a mídia. Reflita sobre a SUDENE e as grandes
fortunas do Nordeste (só para ficar na nossa região). Hoje vivemos, como nos anos
1930, com a quebra da bolsa, uma nova quebra de paradigmas no campo. Sem falar no
avanço das novas tecnologias. Mas a Internet ainda é terra de ninguém. Invasões
bárbaras. O homem não vive sem informações desde a sua origem. O jornal surgiu com
as cidades e o fortalecimento do liberalismo. O homem precisa de notícias para viver
num mundo sempre caótico. Alguns estudiosos assinalam que a mídia coloca ordem no
caos da nossa irrealidade cotidiana. Penso muito nesse conceito. Hoje o Brasil está
despedaçado. Corações despedaçados. Mas não culpo apenas a mídia. Ela é apenas um
ator. Como nas crises passadas. Ao final dessa tormenta, teremos com certeza um
jornalismo com responsabilidade social e cidadão. As crises vêm para isso. E não
contem com o fim do jornal. Nem do jornalismo. Nem do livro. São como a roda.
A mídia tem um lado – o liberalismo –, independente
dos atores do xadrez político. Capitalista até a medula, sempre vai apoiar esse
sistema. Nem mercado, nem política corrompem o sistema de comunicação. E sim os
homens. Não sou defensor do livre mercado. Pelo contrário. Mas também não defendo
sistemas não democráticos, nem populistas. Quanto mais democracia, melhor a mídia.
Ao mesmo tempo em que você tem uma publicação reacionária de direita; você pode
ler uma de esquerda, também tão reacionária quanto a primeira. Fiz minha universidade
ao final da ditadura militar. Tempo do pensamento único. A imbecilidade da censura.
Líamos avidamente jornais alternativos para buscarmos uma luz no final do túnel
– Pasquim, Em Tempo, Movimento. Bem,
com 60 anos, vejo o mundo com uma lente de aumento. As ideologias são necessárias
como os sonhos. Idealizar, sempre. Como o personagem Setembrini, de A Montanha Mágica. Ou Nafta, do mesmo romance
de Mann. Um mundo sem fim através da palavra. Ou do tempo. Muitas respostas para
essa vida, amigo, estão na literatura. Ou no jornalismo. No drama no fim de cada
ato. Reitero: não contem com o fim do livro. Nem do jornalismo.
LÚCIO CARVALHO | Eu penso que as pessoas cada vez mais criam seus próprios itinerários
informativos. Nestes, a preponderância dos veículos nunca esteve tanto em dúvida,
já que a possibilidade de buscar informações e versões alternativas é inesgotável.
Ainda assim, acredito que há vórtices importantes, tanto na mídia convencional quanto
na desorganização da internet. E, o melhor de tudo, a possibilidade de contestar
estes vórtices, horizontalizando mais o processo comunicativo.
ZUCA SARDAN | A mídia aceita a visão liberal iluminista globalizada que domina o planeta. E a população mundial, empacotada na globalização aprova plenamente a ideologia de tal visão e quem estiver fora é desinformado ou… terrorista. As variadas igrejas, esvaziadas, já começaram a aceitar a globalização ideológica, e procuram se encaixar, harmonizando seus dogmas com as ideias iluministas do Globo liberal; e o Globo, benevolente, acolhe em seus fofos gomos as variadas igrejas. A própria China, oficialmente de credo marxista-taoísta, já discretamente aderiu e… está faturando bilhões. Quem estiver fora do Globo é mal visto, e… é alienação!! Seja no setor político, seja no econômico-financeiro, na filosofia, ética, e também, agora, na arte… que está sendo devidamente inserida na pós-modernidade. Seja quem for, de direita ou de esquerda, tanto faz… deverá ser absorvido pelos fofos gomos envolventes do Globo benevolente, pacificador, progressista, tranquilizador, e… adesivo.
ZUCA SARDAN | A mídia aceita a visão liberal iluminista globalizada que domina o planeta. E a população mundial, empacotada na globalização aprova plenamente a ideologia de tal visão e quem estiver fora é desinformado ou… terrorista. As variadas igrejas, esvaziadas, já começaram a aceitar a globalização ideológica, e procuram se encaixar, harmonizando seus dogmas com as ideias iluministas do Globo liberal; e o Globo, benevolente, acolhe em seus fofos gomos as variadas igrejas. A própria China, oficialmente de credo marxista-taoísta, já discretamente aderiu e… está faturando bilhões. Quem estiver fora do Globo é mal visto, e… é alienação!! Seja no setor político, seja no econômico-financeiro, na filosofia, ética, e também, agora, na arte… que está sendo devidamente inserida na pós-modernidade. Seja quem for, de direita ou de esquerda, tanto faz… deverá ser absorvido pelos fofos gomos envolventes do Globo benevolente, pacificador, progressista, tranquilizador, e… adesivo.
Finalizando este extenso editorial de aniversário, recordamos uma postagem
nossa no Facebook, há quatro anos, reproduzida há pouco, considerando a atualidade
da mesma e acrescentando comentário do músico Roberto Kalili (Paraná, 1964).
SAGA DOS EDITORES
BRASILEIROS, PARÁGRAFO ÚNICO | Hoje fui surpreendido
pela resposta informal de uma editora brasileira, frente à oferta que lhe fiz de
um livro meu. O livro é um estudo sobre o Surrealismo
no continente americano, a rigor um documento inexistente à beira do centenário
do surgimento do Surrealismo. Um dos coeditores me escreveu nos seguintes termos:
"Seu livro é maravilhoso, talvez um dos mais completos livros sobre o surrealismo
já escritos. O valor não está apenas na pesquisa, mas principalmente na articulação
das ideias, dos textos, dos autores, dos pensadores e teóricos. Abarca as origens,
a trajetória, chega até o presente. Mas, como você pode ver em nosso catálogo, nossas
linhas ainda estão muito distantes do foco de seu livro. Nós, que circulamos de
carrinhos modestos, nos vimos diante de um carrão, sofisticado e possante. / Então,
Floriano, não dá para nós. Poderíamos ter dito isso muito antes, mas não só fiquei
lendo com tanto prazer o livro como tentei algumas vezes sugerir à diretoria algum
incremento em nossas linhas editoriais. Infelizmente, ela não topou, até porque
somos apenas um braço de um grupo fortemente focado no comércio pesado dos livros.
Tenho saudades dos tempos em que me encontrava na Ática ou na velha Nova Fronteira.
Nessas duas editoras, o livro já estaria, sem dúvida nenhuma aprovado e já programado
para ser lançado correndo. Hoje, até mesmo essas duas empresas parecem ter mudado
muito.” Algo que não mudou é que em meados dos anos 1980 ofereci a outra grande
editora brasileira o projeto de uma antologia da poesia hispano-americana, ausência
inexplicável em nosso catálogo editorial em português. A resposta do editor – até
hoje conservo a carta manuscrita – se parece muito com esta. A tomar em sério a
palavra dos dois editores, o mercado – entidade que sempre me pareceu uma abstração,
pois afinal é regulada por alguém de carne & osso e satisfeita conta bancária
– impõe uma contradição entre o valor intrínseco e o valor de carga, a transitoriedade
permanente de uma estética de conveniência. Fica melhor assim, não? Tudo bem explicado.
Ao invés da retórica de uma subordinação contratual – dos editores contratados –
em discordância com suas preferências, até mesmo dentro do entendimento – aí sim,
dá-lhe abstração – do que seja vendável. Quem ainda não teve oportunidade de ver,
sugiro o documentário Mamonas para sempre
(2011), de Claudio Khans. Há editoras no Brasil que destinaram uma coleção à poesia
internacional. Deram boa contribuição trazendo para o leitor brasileiro alguns poetas
essenciais na tradição lírica de outros países. Um desses selos chegou a faturar
tanto em outras áreas que ao menos por delicadeza poética poderia ter mantido a
coleção de poemas. Não o fez e culpou o mercado. Quem lida com o balcão cotidiano
na burocracia brasileira sabe muito bem que a culpa de toda inoperância recai sobre
o sistema. Pura estratégia religiosa. Eu já fiquei retido em uma fronteira na América
Central por conta de uma falta de energia. Adoro essas entidades fantasmais. Deus
é uma delas, não? Quando inventaremos um mundo em que alguém assuma a responsabilidade
de suas decisões. Confesso que ficaria muito mais feliz ao receber a carta de um
editor dizendo que, por alguma razão, especificada ou não, aceitável ou não, ele
mesmo – e ninguém mais, muito menos o mercado – tenha decidido não editar meu livro.
Autores se encontram nas mãos de uma dupla fornada que se multiplica: a voracidade
mercantil e a retórica medrosa de uns meros soldados, funcionários de casa editorial,
que estão ali apenas para dar as más notícias de uma forma imbecilmente reconfortante.
Jamais entenderei como um volume de 600 páginas dedicado à compreensão e apresentação
do mais importante movimento artístico do século XX, sua atuação revolucionária
em todo o continente americano, um livro que reúne ensaios, documentos, enquetes,
depoimentos, iconografia, mostra poética, entrevistas, enfim, como um livro assim
pode ser desinteressante até mesmo para o mercado editorial. Não nos esqueçamos
que ninguém necessita vestir a roupinha justa de pitonisa para anunciar que em 2024
o Surrealismo cumprirá seu centenário. O mercado estará de portas e janelas abertas,
evidente, porém desde já me preocupo com a natureza do que será reportado em nome
do Surrealismo. Temos levado a vida, no Brasil, a corrigir coisas. Esta tem sido
a realidade de toda uma sociedade: remendar disparidades, livrar-se de baixarias,
reiluminar o chão batido. Editores brasileiros deveriam assumir claramente sua opção
por um mercantilismo vulgar. Nenhuma Junta Comercial rejeitaria sua opção. O que
verdadeiramente decepciona é que transfiram para a alçada burocrática ou a ingerência
fazendária a sua ausência de escrúpulo, a sua conivência com o rebaixamento cada
vez mais violento do ambiente cultural de um país. Eu tenho 56 anos e a carta de
recusa de um editor não move uma palha em meu espírito. Porém essas cartas se multiplicam
encaminhadas a gente de toda toada. A conivência entre autores e mercado, o silêncio,
o elogio velado, a domesticação de uns possíveis controversos. A agenda editorial
é feita disto. Tudo em nome da literatura.
ROBERTO KALILI | Bem escrito ao extremo, rebaixamento cultural,
perfeito, pensa no trabalho de Padre Sepp, 350 anos antes ele tinha um país onde
todos sabiam ler partituras e tocavam instrumentos, daí veio o Marquês de Pombal,
esses caras aí são os herdeiros modernos do Pombal, te digo, componho para traverso,
alaúde e viola da gamba, tenho esse problema o tempo todo, mesmo minha mãe me pede
para escrever letras rimadas… Ninguém investe na melhoria da alma desse povo, rebaixamento,
disse tudo!
Os Editores
ÍNDICE
AGACÍ DIMITRUCA | Tiempos griego-españoles
ALFONSO PEÑA | Conversa con Claudio Willer
ANDREA OBERHUBER | O livro surrealista como espaço transfronteiriço: Lise
Deharme e Gisèle Prassinos
ANTONIO CABALLERO | Harold Alvarado Tenorio y
un libro a cuchilladas
DANIEL VERGINELLI GALANTIN | Eliane Robert Moraes: perversos, amantes
e outros trágicos
ELVA PENICHE
MONTFORT | Fotografía y surrealismo: fetiches de Kati Horna
ESTELLE IRIZARRY | Eugene Granell: correspondencias
entre creación pictórica y literaria
ESTER FRIDMAN | A linguagem simbólica no Zaratustra de Nietzsche
FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 1
FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 2
FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 3
HAROLD ALVARADO TENORIO | 100 años de poesía en
Colombia
ISABEL BARRAGÁN DE TURNER | La isla mágica de Rogelio
Sinán
JOSÉ ÁNGEL LEYVA | Víctor Gaviria: El poeta y
el cine
LUIS FERNANDO CUARTAS | La ilusión siniestra de
los cuerpos y los engaños de la metamorfosis
MARIA LÚCIA DAL FARRA | Herberto Helder, sigilosamente Herberto
NICOLAU SAIÃO | Recordando uma comunicação de Mário Cesariny
RICARDO ECHÁVARRI | El poeta Arthur Cravan em México
SUSANA WALD | En el espejo retrovisor
ULISES VARSOVIA | Esencia y excedencia
de la poesía contemporánea
ARTISTA CONVIDADA | FELÍCIA LEIRNER | GISELDA LEIRNER | Felícia
Leirner, minha mãe
Página ilustrada com obras de Felícia Leirner (Brasil), artista convidada
desta edição.
***
Agulha Revista de Cultura
Número 100 | Julho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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18 anos de maturidade e qualidade cultural. Tarefa para raros homens. E você conseguiu e segue adiante! [Leila Ferraz]
ResponderExcluirFlor, parabéns pelos primeiros 100 números!! Agulha é o simbolo da poesia latinoa-mericana!! Abraxas, [Alfonso Peña]
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