De minha mãe, Felícia Leirner teria muita coisa para escrever. Poderia falar
do ponto de vista afetivo ou sobre seu trabalho vigoroso como escultora. Poderia
falar sobre impressões que ficaram gravadas em minha memória. Como não ficarei com
nenhum ponto de vista em particular, vou resvalar para a memória, fazendo um percurso
ao passado.
Felícia nasceu
em Varsóvia, em 1904. Sua mãe, Sheindla Eichenbaum, e seu pai, Pincus Eichenbaum,
também eram poloneses. O pai passou a vida toda debruçado sobre os livros da sabedoria
talmúdica. Eu o descrevi em um dos meus livros como um velho atarracado, de barbas
ruivas e olhos azuis, em paz com Deus mesmo quando alguns de seus filhos morreram.
Foram sete ao
todo, e ficaram só Felícia, Ana, Jacub e Louis. Esse último, tendo se tornado americano,
passou a ser chamado de Uncle Lou.
Jacub, grande
engenheiro inventor de máquinas para a indústria pesada e também homem de vasta
cultura, casou-se com uma alemã que viria a lhe dar dois filhos. Ela e um dos filhos
se tornaram nazistas. Jacub, então, fugiu com o filho menor para a Itália, onde
foi escondido por uma mulher cristã e italiana durante toda a guerra. Finda a guerra,
casou-se com ela. O filho conseguiu ir para os Estados Unidos e Jacub viveu seus
últimos anos em Milão.
Sheindla era
uma velha senhora que teve a coragem de deixar seu país, sua família e seu marido,
para acompanhar a filha em sua nova vida. Ela chegou com minha mãe em São Paulo
em 1926. Meu pai, Isai Leirner, já aqui se encontrava para recebê-las.
Sheindla nunca
aprendeu o polonês nem o português. Falava o ídiche e foi com ela que aprendi a
língua dos judeus, mantive a cultura e os conhecimentos de minha origem. Felícia
e Isai falavam o polonês e rapidamente aprenderam o português, que passou a ser
a língua usada em casa.
Algum tempo depois
de sua chegada ao Brasil, Felícia e Isai se naturalizaram brasileiros. Judeus, sempre
se consideraram brasileiros. Nunca mais voltaram à Polônia, mesmo quando faziam
viagens à Europa.
A Polônia tinha
lhes deixado um gosto amargo, pelo preconceito antissemita e pela intolerância que
ali existia e continuou existindo mesmo depois da guerra. A cidade de origem, Varsóvia,
foi deixada para trás no começo do século XX.
Como escreveria
mais tarde a grande amiga de Felícia, a romancista Maria de Lurdes Teixeira, “Varsóvia
era uma cidade debruçada sobre as águas do Vístula, capital do país das vastas planícies,
das florestas de olmos, faias, bétulas e pinheiros”. Cidade que, aos olhos da menina
Felícia (Fayga, em sua língua nativa; ou Faygucha, para a família), em tudo parecia
monumental.
O bulevar Cracóvska,
os palácios em seu esplendor barroco, os jardins como o Krasinski, o Saski. Os teatros,
os museus, as bibliotecas, a ópera, as salas de concerto, a filarmônica – a música.
Sim, sobretudo a música. No apartamento acanhado da rua Dzielna a vida era difícil,
parcos os recursos. Mas não faltava música. Fayga chegou a ser primeiro soprano
lírico da Ópera de Varsóvia.
Ao chegar ao
Brasil, meu pai – que fora estudante em Varsóvia – precisava não só se sustentar
como comprar as passagens de navio para Sheindla e Felícia. Não tendo ofício, foi
aprender a trabalhar em uma máquina, como operário em uma malharia, das poucas que
já existiam no Bom Retiro.
Ali se instalaram,
em uma pequena casa na rua Júlio Conceição. Pouco restou, no Brasil daquele começo
de século xx, da vida pobre, porém culturalmente rica que Felícia tivera na Polônia.
Meu pai vinha de uma família da alta burguesia que nem o ídiche conhecia. Tinha
estudado em escolas importantes, participado de conferências e encontros de associações
literárias, os chamados“Werein”. Frequentava a Ópera de Varsóvia, onde conheceu
minha mãe. Felícia, por ser muito loira e de olhos azuis, era sempre confundida
como de origem não judaica.
Em seu começo
de vida no Brasil, o imigrante Isai Leirner passou a ser um operário, sem dinheiro
ou condição social. Minha mãe deixou de cantar para sempre. Só cantava em casa.
Lembro-me de sua belíssima voz de soprano lírico. Quando melhoraram de situação
econômica, mudaram-se para uma casa na rua Ribeiro de Lima, em frente ao Jardim
da Luz. Tinha dois andares.
O térreo era
ocupado por nossa família. Ali, vivíamos eu e meu irmão Nelson. Adolfo nasceu mais
tarde, gozando de uma situação um pouco mais amena. No fundo do quintal, meu pai
armou uma oficina de malharia, com duas máquinas que eram chamadas de retilíneas.
As circulares, bem mais imponentes, apareceriam depois.
Assim fomos crescendo.
Minha mãe ajudando meu pai, costurando e bordando nossas roupas. Felícia era exímia
bordadeira e tinha muita habilidade com o tricô e o crochê, habilidades manuais
que nunca abandonou mesmo já bem velhinha, em seu luxuoso apartamento em Higienópolis.
Conforme prosperavam, meus pais também iam fazendo amigos, todos judeus poloneses
que continuavam a chegar em fuga da penosa situação europeia.
Muitas vezes
acolhiam um ou outro casal em casa, até que conseguissem situação mais confortável.
Mudaram-se para
uma minúscula casa em estilo normando na rua da Consolação. A casa era realmente
minúscula. Mal cabíamos todos ali, mas o jardim tinha sessenta metros de comprimento.
Isso e mais o fato de ser no Jardim América contribuíram para a escolha. Minha mãe
sempre teve uma forte relação com a natureza. Lembranças de suas estadas nas casas
dos tios, donos de florestas, onde trabalhavam como madeireiros, em Lukow.
Lembranças da
casa com seus depósitos nos grandes terrenos de fundos, onde secavam a madeira,
que estalava fogos à noite. Isso e mais a dança iluminada dos vagalumes deixaram
em Felícia uma eterna saudade.
Quando ainda
morávamos na casinha normanda, Felícia adoeceu gravemente e, ao acordar depois de
uma cirurgia, ainda sob efeito do clorofórmio (usado como anestésico naquela época),
teve uma visão que transformou sua vida. Vultos negros, de longas barbas, longilíneos,
debruçavam-se sobre ela, dizendo: “Ela não vai morrer porque ainda tem uma tarefa
a cumprir.”
Quando acordou,
a pergunta constante que passou a fazer parte de seu cotidiano era: Qual tarefa
teria de realizar? Não sabia. Assim, passou um longo período indagando, enquanto
andava pelo comprido e estreito jardim de nossa casa. Lembro-me de sua fisionomia
angustiada na procura da resposta para uma e única questão: qual seria a tarefa
para a qual estava destinada?
Naquela época,
eu já tomava aulas de desenho e pintura com Yolanda Mohalyi. Acompanhou algumas
aulas, mas não estava satisfeita. Yolanda, então, indicou-lhe uma artista magnífica,
nunca devidamente reconhecida: Elizabeth Nobiling.
Elizabeth era
ceramista e escultora. Morava no bairro do Sumaré, onde expunha todos os seus belos
trabalhos em terracota. Fui junto com minha mãe a essa primeira visita. Felícia
teve ali seu contato inicial com o barro, material que a fascinou imediatamente.
Sentia-se bem moldando aquela argila macia e, ao mesmo tempo, resistente. Foi seu
começo como escultora.
Um dia, ao passar
pelo canteiro de obras do que viria a ser o grande Monumento às Bandeiras, no Parque
do Ibirapuera, resolveu entrar no barracão-ateliê onde Brecheret trabalhava. A mulher
delicada, loira e bem vestida queria tomar aulas de escultura. Brecheret jamais
tivera alunos nem teve outros além de minha mãe. O grande escultor (sabe-se lá o
que lhe passou pela cabeça) mandou-a sentar-se no chão, deu-lhe um monte de argila
e chamou uma menina que por ali perambulava para que posasse para minha mãe.
Foi assim que
nasceu Felícia escultora. Felícia estudou com Brecheret durante alguns meses até
o dia em que ele disse: “Você pode ir. Já está pronta para enfrentar seu caminho
sozinha.”
E assim foi.
Meu pai construiu um enorme ateliê no fundo do belíssimo jardim de nossa casa, que
já era a grande mansão branca no Jardim América.
Nasceram ali,
nos anos de 1950, seus primeiros trabalhos. O começo de um longo caminho que terminou
com as últimas esculturas que fez para o seu museu em Campos do Jordão, com o conjunto
escultórico de mais de uma centena de trabalhos doados ao Governo do Estado de São
Paulo.
Cumpriu assim
a artista, em mais de quarenta anos de faina exemplar, a tarefa que lhe foi outorgada
pelo destino, conforme a premonição daquela visão já diluída na perspectiva do tempo
e do espaço. Felícia nunca esqueceu sua origem e manteve um diálogo constante com
suas raízes. Aos noventa anos de idade, escreveu:
Quando eu era menina, o mundo não era meu, e eu não
era do mundo.
Eu não dormi e não sonhei.
Eu não era tempo e não era cor. Ao pensar, também não
era eu.
Agora,
com noventa anos, o mundo é meu, e eu sou do mundo.
Durmo e acordo. Sonho e pergunto: para onde foi meu
presente, onde está tudo que amei,
sofri, e o tempo o que é?
Será que nasci só para perguntar e acreditar, sonhar
na eternidade sem fim, e sempre morrer… morrer.
Com a mesma amorosa
minúcia com que tinha esculpido imponentes formas tridimensionais, Felícia escreveu
mais de duzentas páginas inspiradas.
São singelas
e poéticas reflexões sobre arte, amor, Deus, vida, natureza e tantos outros temas
que lhe ocuparam o pensamento quando não mais tinha forças para modelar a argila.
Aqui está uma seleção deles, em homenagem e memória.
GISELDA LEIRNER (Brasil, 1928).
Romancista e contista, a quem agradecemos a permissão de dedicar este número de
Agulha Revista de Cultura à sua mãe. Página ilustrada
com obras de Felícia Leirner (Brasil), artista convidada desta edição.
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● ÍNDICE # 100
EDITORIAL | 100
números e a dinâmica imóvel do cotidiano
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/08/agulha-revista-de-cultura-100-julho-de.html
AGACÍ DIMITRUCA |
Tiempos griego-españoles
ALFONSO PEÑA | Conversa con Claudio Willer
ANDREA
OBERHUBER | O livro surrealista como espaço transfronteiriço: Lise Deharme e
Gisèle Prassinos
ANTONIO CABALLERO | Harold Alvarado Tenorio y un libro a cuchilladas
DANIEL
VERGINELLI GALANTIN | Eliane Robert Moraes: perversos, amantes e outros
trágicos
ELVA PENICHE MONTFORT | Fotografía y surrealismo: fetiches de Kati Horna
ESTELLE IRIZARRY | Eugene Granell: correspondencias entre creación
pictórica y literaria
ESTER
FRIDMAN | A linguagem simbólica
no Zaratustra de Nietzsche
FLORIANO
MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 1
FLORIANO
MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 2
FLORIANO
MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 3
HAROLD ALVARADO TENORIO | 100 años de poesía en Colombia
ISABEL BARRAGÁN DE TURNER | La isla mágica de Rogelio Sinán
JOSÉ ÁNGEL LEYVA | Víctor Gaviria: El poeta y el cine
LUIS FERNANDO CUARTAS | La ilusión siniestra de los cuerpos y los
engaños de la metamorfosis
MARIA LÚCIA
DAL FARRA | Herberto Helder, sigilosamente Herberto
NICOLAU
SAIÃO | Recordando uma comunicação de Mário Cesariny
RICARDO ECHÁVARRI | El poeta Arthur Cravan em México
SUSANA WALD | En el espejo retrovisor
ULISES VARSOVIA | Esencia y excedencia de la poesía contemporánea
ARTISTA
CONVIDADA | FELÍCIA LEIRNER | GISELDA LEIRNER | Felícia Leirner, minha mãe
Agulha Revista
de Cultura
Número 100 |
Julho de 2017
editor geral
| FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente
| MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design
| FLORIANO MARTINS
revisão de textos
& difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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