Ao final de seu Verdade Tropical (1997), Caetano Veloso refere-se
ao Brasil com sua “eterna indefinição entre ser o aliado natural dos Estados Unidos
em sua estratégia internacional e ser o esboço de uma nova civilização”. De alguma
maneira isto me recordou umas palavras de Paulo Moura, no encarte do CD Rio Nocturnes (1992), ao dizer que “a bossa
nova significou o advento da discriminação racial na música brasileira”. Deixemos
que o próprio Moura nos esclareça melhor: “Pode parecer loucura, mas existem grandes
evidências disso. Meu nome, por exemplo, nunca é ligado aos principais artistas
da bossa nova, embora eu tenha protagonizado o movimento desde o seu início. Musicalmente,
a bossa nova cresceu entre uma juventude branca e bem de vida. Os percussionistas
– que no Rio, tradicionalmente vêm dos bairros mais pobres, predominantemente negros
– não eram necessários na bossa nova. No samba eles eram fundamentais, mas a bossa
nova só precisava, quando muito, de um baterista.”
Ao ligar esta observação
àquela indefinição mencionada por Veloso, o motivo é apenas algo que me é intrigante:
como um riquíssimo exemplo da tradição musical brasileira, que é o choro, a partir
de um determinado momento foi relegado a uma instância menor, embora tenha seguido
como referência básica de nossos grandes músicos e seja gênero bastante considerado
por público e crítica no exterior? Caberia indagar até que ponto, no fervor dessa
indefinição de que nos fala Veloso, a música branca e bem nascida, no dizer de Moura,
teria sentido desprezo pelo choro, associando-o a uma classe menos favorecida. É
um aspecto curioso, pois o choro ao mesmo tempo nos aproxima da condição de “aliado
natural dos Estados Unidos” – se pensarmos no jazz – e do “esboço de uma nova civilização”,
por uma ambientação genuinamente brasileira.
Novamente me intriga
o fato de que o choro foi gênero cultuado por compositores brasileiros tanto eruditos
quanto populares. Francisco Mignone, por exemplo, chegou a compor um segundo piano
para várias peças de Ernesto Nazareth. O gênero tornou-se refinado nas mãos de compositores
como Pixinguinha, Garoto, K-Ximbinho e Radamés Gnattali. Posteriormente nomes como
Paulinho da Viola e Paulo Moura lhe deram uma consequência estimável. E esteve presente
mesmo nos primórdios, seja em Patápio Silva ou Villa-Lobos. E acrescentaríamos aí
uma grande lista, pensando em músicos como Waldir Azevedo, Abel Ferreira, Joel Nascimento.
Mas interessa mencionar a relação entre o que se habituou a chamar popular e erudito,
ou seja, o choro teria sido a referência central nessa quebra de barreiras. Se um
compositor erudito como Francisco Mignone chegaria a compor pequenas peças para
piano (choros e valsas), um compositor popular como Garoto escreveria partituras
para violão e orquestra, o mesmo acontecendo com Radamés Gnattali. Essa erradicação
de uma barreira entre popular e erudito encontraria uma crescente definição através
da obra de compositores como Paulo Moura, Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal.
Paulo Moura certa
vez comentou que Gismonti “não escreve um choro completo”, mas que capta-lhe o clima
e esse clima está presente em algumas de suas composições. É uma leitura atraente
e que bem define o diálogo entre jazz e música brasileira na obra de Gismonti –
sempre lembrando que aí estão presentes em maior grau de identificação compositores
como Stravinsky, Villa-Lobos e Mignone. No caso de Hermeto, ao choro devemos somar
o forró, sem esquecer certa ambientação jazzística, embora considerando que o choro,
tanto quanto o jazz, permite a divisão de solos entre músicos em cada peça. Moura
salienta que “o choro não é somente um gênero musical, uma forma de canção simplesmente,
é também uma forma de tocar”. Eis o ponto: a presença do músico interferindo na
partitura original, o improviso jazzístico como uma afirmação de vida. A arte em
sua plena condição de visceralidade. Tal argumento, no que teria de relação direta
com uma ruptura de padrões, acaso teria sido decisivo no tocante a uma menor consideração
pelo choro como grande gênero musical brasileiro?
Durante um determinado
período (de 23 de junho de 1996 a 22 de junho de 1997), Hermeto Pascoal se dedicou
a compor um choro por dia, resultando em uma obra quando menos insólita, intitulada
Calendário do Som (1999), livro com partituras
e diário de acompanhamento das sensações que envolveram o compositor em tal aventura.
Disse um dia Hermeto: “quando eu ouço as pessoas falarem, é como se eu fotografasse
os sons. A criação musical é o processo de revelação.” Tal declaração é muito importante,
porque raramente um criador brasileiro se coloca na posição de alguém que intercepta
o que há entre a memória e o desejo, aí percebendo o que lhe diz respeito direto
ou indireto, ou seja, o que é seu e o que lhe é dado. Em outra ocasião ele nos diz:
“Sou músico, e o músico é meio mágico também, só que sem truques, sem esconder nada.
Quando pego em um instrumento, sinto que estou flutuando. Tem horas que nem sinto
os pés no chão.”
Hermeto sempre se
mostrou como partidário de uma música feita por todos, o que de alguma maneira nos
recorda a célebre frase de Lautréamont apreendida pelos surrealistas, de uma poesia
feita por todos. Bruce Gilman disse certa vez que “a busca de Hermeto por novos
sons, criando novos instrumentos a partir de objetos inusitados, se assemelha à
do compositor americano experimental e inventor de instrumentos Harry Patch”. Gilman
recorda ainda que a “mistura de estilos” e “o uso de compassos nada
convencionais” aproxima Hermeto de Pierre Boulez. A ideia de identificação ou aproximação é sempre muito tentadora. Hermeto teve uma marcante relação de amizade com Miles Davis. Nos dois casos, temos exemplos de artistas que se permitiram soltura para criar escola, ou seja, propiciaram o que Gilmam chama de “um campo de treinamento em que se colheram extraordinários talentos”.
convencionais” aproxima Hermeto de Pierre Boulez. A ideia de identificação ou aproximação é sempre muito tentadora. Hermeto teve uma marcante relação de amizade com Miles Davis. Nos dois casos, temos exemplos de artistas que se permitiram soltura para criar escola, ou seja, propiciaram o que Gilmam chama de “um campo de treinamento em que se colheram extraordinários talentos”.
Talvez Hermeto seja
o ponto mais conflitante dessa “eterna indefinição” de que trata Veloso em seu livro.
Se dermos razão ao autor de Vereda Tropical,
em seguida nos perguntamos: por que não reconhecemos a genialidade de Hermeto Pascoal?
Claro que não estou falando em termos de mercado, no sentido medíocre em que nos
tornamos reféns desse mercado, mas antes em uma ambientação crítica da parte de
uma suposta classe intelectual que percebe o alheio com tamanha facilidade e raramente
se dá conta do que lhe é próprio. Eu havia planejado escrever aqui sobre o Hermeto
Pascoal, e achei interessante encontrar mais referências críticas a seu trabalho
nos Estados Unidos. Exceto notas jornalísticas, não há no Brasil uma reflexão contundente
acerca da obra desse grande compositor. Seu nome geralmente é vinculado ao de um
doido que sopra chaleiras e bate canos no chão. De volta a uma inclinação perpétua
da cultura brasileira pela negação de seu potencial intuitivo, mágico. Quando se
trata geralmente Hermeto por bruxo, é
uma referência desrespeitosa, que implica em distanciamento. Assim o temos, à distância.
Disse Paulo Moura
que “o Hermeto Pascoal tem alguns choros que vão entrar para a eternidade”. Como
saber disso? Como encontrar seus discos no Brasil? Airto Moreira disse que “ele
é popular por causa de sua figura, por causa dele como indivíduo, mas sua música
não é muito popular”. Gil Evans observou uma particularidade na obra de Hermeto,
o transbordamento, o excesso. Não se trata do demasiado inconsequente, mas antes
de uma defesa estética. Hermeto é o compositor brasileiro que se poderia de alguma
maneira vincular ao Surrealismo em seu entendimento de uma arte que fosse o reflexo
de uma existência, onde o componente cultural não se ausentasse da esfera existencial.
Airto referia-se ainda a uma busca permanente de sons. Hermeto tornou-se o “bruxo”
justamente pela relação inusitada com toda forma de extrair música do que quer que
se pense. Não à toa, um de seus discos se chama Só não toca quem não quer (1987), alusão a essa condição mágica da existência
humana que se foi dissipando em nome de um cientificismo.
Creio que Hermeto
Pascoal é o nome mais referencial quando se trata daquela “eterna indefinição” mencionada
por Veloso, ou seja, não resta dúvida de que sua acuidade musical tenha sabido ler
e dialogar com a tradição e os focos diversos de influência. Foi irreverente o bastante
para não seguir linhas de espécie alguma. Fundou uma particularidade de leitura
de mundo, cuja música é reflexo essencial. Sempre deu as costas ao mercado, basta
lembrar: “O Brasil não precisa fazer música como indústria. Acho que não tem nenhum
país no mundo que tenha grandes músicos como o Brasil”, e logo afirmava um aspecto
fundamental: “A indústria colocou na cabeça deles o medo de morrer de fome”. Aí
o Veloso de Verdade tropical merece ser
revisitado, quando supõe que nossa indefinição se dê em um plano ideológico, de
opção política.
Hermeto fez a opção
mais radical dentro do que poderíamos chamar de tradição musical brasileira. Formou
escola, sendo reconhecidamente influente na formação de vários músicos. Compôs para
formações populares e eruditas, transigiu de todas as maneiras imagináveis os estatutos
de bom comportamento de um artista, propondo fusões, leituras insólitas de instrumentos,
discrepância no tocante a escritas e execuções. Basta recordar a presença de animais
(porcos, galinhas, patos) em estúdios de gravações e a recorrências a objetos inusuais
(gargalos, chaleiras, tubos plásticos etc.) a compor um universo instrumental bastante
atípico. Há toda uma ambientação envolvendo a música de Pascoal que os brasileiros
não compreendemos. Seus discos não são encontrados em loja alguma. Nenhum músico
brasileiro se refere a ele. Não estamos mais pautados por uma indefinição. Há uma
cultura brasileira que pode ser identificada como tal.
ACAMPAMENTO
MUSICAL
FLORIANO
MARTINS
(Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor, tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições.
Este texto foi originalmente escrito em 2001 para publicação na Agulha Revista de Cultura do mesmo ano.
*****
Organização a cargo
de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado
| Farnese de Andrade (Brasil, 1926-1996)
Imagens © Acervo
Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos especiais
a Jovino Santos Neto
Esta edição integra
o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA
ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO,
I
3 O RIO DA MEMÓRIA,
I
4 VANGUARDAS NO
SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL
BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO,
II
8 O RIO DA MEMÓRIA,
II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL
A Agulha Revista
de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins
e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011
restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica,
sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto
original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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