A poeta, crítica literária e editora Mia Lecomte dirige, em Roma, uma coleção
de poesia da Zone Editrice, dedicada aos autores da “migração”, isto é, autores
não italianos que moram/ moraram na Itália e que passaram a se expressar poeticamente
no idioma daquele país. É significativo, a esse respeito, que a coleção tenha sido
inaugurada com a obra de um poeta brasileiro pouco conhecido no Brasil, o pernambucano
Heleno Oliveira, que morou em Florença de 1983 a 1995. Em agosto de1995, numa viagem
a Lisboa, Heleno morre improvisamente, deixando parte da sua obra poética inédita.
A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andersen se interessou pela obra de Heleno
Oliveira e, após a sua morte, publicou, pela editora Caminho, uma escolha de seus
poemas, na antologia As sombras de Olinda (1997). A edição italiana publicada
em 2003 (Se fosse vera la notte) reúne uma série de poemas que o autor pernambucano
escreveu diretamente em italiano durante os anos da sua vida na Itália.
O segundo volume dessa coleção chamada “Cidadãos da
poesia” também está dedicado a um autor brasileiro, o juizforano Murilo Mendes,
que morou por dezoito anos em Roma, lecionando Literatura Brasileira na Universidade
da capital italiana, onde escreveu, em 1968, os poemas que compõem o livro Ipotesi
(prefácio de Luciana Stegagno Picchio, introdução de Nullo Minissi, posfácio de
Mia Lecomte. Zone Editrice. Roma, 2004). Esta obra ganhou uma primeira edição (póstuma)
na Itália em 1977, pela Editora Guanda, sob os cuidados da crítica Luciana Stegagno
Picchio. Por isso, a recente reedição do livro, pela Zone Editrice, é um acontecimento
significativo, consolidando a valorização desse autor no país que o acolheu em idade
madura. Trata-se da confirmação da reconhecida marca deixada por Murilo Mendes não
só no âmbito da literatura brasileira do século XX, mas agora também em escalas
maiores que são a cultura e a sociedade de um século XX atravessado por migrações,
exílios, cidades multiétnicas e plurilinguísticas.
Dentro desse cenário de culturas em transição, de poéticas
deslocadas do próprio ponto de origem, muitas vezes deslocadas da fonte primária
de criação que é a língua materna, surgem vozes poéticas que são, ao mesmo tempo,
“contaminadas pelo” e “agentes contaminantes do” cânone literário estabelecido,
como é o caso da literatura italiana, caracterizada por uma excelente produção poética
dialetal e, ao mesmo tempo, enriquecida (e ameaçada) por uma crescente produção
italiana de autores da “migração”. Como indica a editora Mia Lecomte no posfácio
ao livro, é nesse contexto que se inscreve a importância dessa nova edição italiana
da obra de Murilo Mendes, um autor que reivindicou a “cidadania poética”, isto é,
um lugar poético, portanto abstrato, onde pudessem desembocar todos aqueles que
estivessem vivendo em estado de errância, seja ela histórica, existencial ou linguística.
No belo prefácio à redição de Ipotesi, Luciana
Stegagno Picchio escreve sobre a obra de Murilo com a lucidez de quem reconhece
na sua poesia concisa e precisa, o leve esboçar-se do sorriso interior de astúcia
e desconfiança, reconhecimento que é marca indelével de uma proximidade afetiva
que, ao invés de prejudicar o minucioso escrutínio crítico, pôde enriquecê-lo ao
longo dos anos. Ela comenta que Murilo Mendes sempre foi muito sensível à paisagem
humana e escolhia os amigos por uma espécie de afinidade que perpassava a dimensão
da história. No entanto, ela ressalta que o poeta brasileiro estava atravessado
por angústias plurais, entre elas, a angústia histórica de viver longe de um Brasil
que, aos seus olhos, se engrandecia miticamente, inclusive naquilo que lhe parecia
errado. E essa transformação quase mítica da origem é um dos elementos mais peculiares
da experiência do exílio, embora no caso de Murilo Mendes não se trate propriamente
de um exílio político, e sim de um afastamento voluntário que resultou num efetivo
“exílio linguístico”.
Como escreve Mia Lecomte no posfácio, “a migração, voluntária
ou necessária, comporta um longo percurso atravessando todos os sentidos de uma
língua, e em alguns casos expatriar-se é exatamente o meio pelo qual visitar todos
os aspectos da língua e da própria existência”. Essa indagação linguística e existencial
perpassa o livro Ipotesi, já que Murilo Mendes vivia suas noites romanas
com o medo de não ter o domínio total sobre a língua italiana, de acordo com as
lembranças de Luciana Stegagno Picchio, que disse ter se tornado, naquelas tardes
de Roma da década de 60, uma habituée das ligações telefônicas do poeta e
amigo brasileiro, que queria esclarecer alguma duvida terrível sobre as duplas italianas
ou seus acentos.
Através de uma cartografia sentimental, mapeada por
cidades e referências a artistas europeus, Murilo Mendes dá pistas, nesse livro,
para que possamos ver o Murilo que se vestiu da língua italiana para expressar a
angústia existencial perante um mundo que ele não conseguia abarcar totalmente com
as palavras – é bom lembrar que Ipotesi foi escrito em 1968, quando a Europa
estava atravessada pela agitação estudantil, enquanto a ditadura no Brasil se tornava
mais obscura e sangrenta. Através da sua poesia, é possível reconhecer alguns dos
nomes que fizeram a história da literatura italiana do século XX. No entanto, como
bem escreve Nullo Minissi na introdução ao livro, seria arriscado comparar
a obra de Murilo Mendes com a do amigo, tradutor e poeta Giuseppe Ungaretti, embora
os dois tenham vivido um percurso parecido, já que o próprio Ungaretti morou entre
1936 e 1942 no Brasil, lecionando Literatura Italiana na Universidade de São Paulo.
Em realidade, uma vez em Roma Murilo aproximou-se primeiro
das artes plásticas, por uma afinidade estética que cultivava desde a juventude,
ainda no Brasil, quando se tornou amigo do pintor Ismael Nery. Com o passar do tempo,
o mesmo olhar poético atento para a plasticidade da pintura foi forjando uma poética
em língua italiana cujo gosto pela abstração das imagens e pela tendência ao epigrama
o conectou estreitamente com a poesia italiana produzida naquela época, mais especificamente
com os autores da chamada “linha lombarda” (cujas características podem ser resumidas
em uma tendência epigramática e irônica, na propensão para a análise da condição
do homem contemporâneo, numa poética em que o “mal de viver” delineia-se como o
incômodo de se viver na sociedade de hoje). Integravam essa “linha estética lombarda”,
entre outros, autores como Vittorio Sereni e Eugenio Montale.
No entanto, muito mais do que isso, a angústia que atravessava
o poeta em Roma tinha uma origem ontológica, pois levantava questões fundamentais
sobre a natureza da vida e, principalmente, da morte: “a morte será oval ou quadrada?”,
pergunta-se Murilo no poema Ipotesi. E a resposta é inquietante, se vem da caneta
do poeta que “queria ser dono do sistema” que é a língua, conforme explica Stegagno
Picchio no Prefácio : “A morte oval ou quadrada / nunca será escrita”(poema Ipotesi).
Embora Murilo Mendes não tenha escrito esse livro pensando num diálogo com os seus
contemporâneos italianos, já que ele sempre dialogou com a Literatura Brasileira,
mesmo desde o “exílio romano”, é possível estabelecer alguns paralelismos “geracionais”
entre ele e a poética de Eugenio Montale, autor com o qual nunca teve uma proximidade
poética ou afetiva marcante. No entanto, a poética montaliana se aproxima da visão
de mundo de Murilo Mendes no que diz respeito è concepção de uma poesia que – como
recita Montale, na antologia publicada no Brasil em 1997 pela Editora Record, com
traduções de Geraldo H. Cavalcante – quer captar “o falcão que mergulha / como um
raio na canícula”, “a terra onde não anoitece” ou, ainda, “a pequena torção de uma
alavanca que paralisa a máquina universal”, ou voltando a Murilo, “o mal que nunca
fizemos [e que] nos espeta às vezes/ mais do que um remorso obtuso”(poema Epigramma),
ou seja, o mal-estar do ser humano vivendo numa sociedade traumatizada: a Europa
do pós-guerra e o Brasil da ditadura militar.
Essa semelhança entre as duas poéticas não é estilística,
nem sequer temática, mas se define pela maneira como os dois colocam o eu poético
diante das inquietações mais profundas do ser humano, Montale descortinando um mundo
sem ilusão, e Murilo tentando reinventar um mundo no qual, afirma poeticamente em
Proposta, “instalamos / em cada rua / relógios coloridos/ com ponteiros que indiquem
/ horas diferentes. // O homem será/ retirado do tempo/ cada um escolherá
sua hora pessoal / livre invenção/ acelerando a contagem às avessas da história/
e a desagregação do sistema”. É exatamente a procura dessa “desagregação do sistema”
que põe Montale e Murilo na mesma trilha poética.
A ironia e a leveza que atravessam o livro Ipotesi
estão também, em parte, nos últimos livros de Montale, sejam eles Satura
e diário de 71/72. Nessas obras o poeta ameniza a angústia com lances irônicos
e humorísticos, mas sem renegar a peculiar visão desiludida e crua da realidade.
Nesse sentido, é interessante observarmos que se, por um lado, os dois autores não
mantiveram nenhum tipo de relação pessoal, por outro lado eles parecem se encontrar
– novamente e casualmente – na homenagem ao poeta Camillo Sbarbaro, o grande poeta
italiano da “resignação desesperada”, cuja poesia anti-eloquente marcou, durante
as primeiras décadas do século XX, uma virada fundamental na lírica italiana. Montale
presta sua homenagem no livro Ossi di seppia (Ossos de siba), enquanto Murilo
escreve um poema comovido, na seção titulada Omaggi, para o poeta que “observava
o crescer dos liquens / os rabiscos abstratos das nuvens / a guerrilha entre vogal
e consoante / entre vírgula e ponto exclamativo” (Camillo Sbarbaro). Através dessa
homenagem percebemos a aparição, quase invisível, da figura do “outro Murilo”, o
italiano, que também vivia em estado de “guerrilha” entre as vogais, as consoantes,
os acentos imprevistos, as duplas maliciosas da língua italiana. E parece que ele
saiu inteiro dessa guerra, na qual não há vencedores nem derrotados e, sim, uma
poética que soube fortalecer-se com o passar do tempo. Prova disso é que agora nos
chega essa reedição, em 2004, quase trinta anos após a morte de Murilo, uma obra
na qual, como recita Max Martins, desde Belém, homenageando Murilo Mendes no seu
livro O Risco Subscrito, “o poeta se refaz / se lavradiz/ o verso se desfaz
/ se movediz / a palavra se desdiz / ver-diz/ reverdece Roma”. E junto com Roma,
reverdece essa poesia, brasileira na Itália, e um pouco italiana aqui no Brasil.
Prisca Agustoni
(Suíça, 1975). Poeta, ensaísta e tradutora. Autora de livros como Sorelle di
fieno (2002) e Días emigrantes (2004). Página ilustrada com obras de
Vicente do Rego Monteiro (Brasil), artista convidado desta edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 106 | Janeiro de 2018
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