sábado, 28 de abril de 2018

HENRIQUE PIMENTA | Renato Suttana & Os espantalhos e o mar




O que dois espantalhos teriam a dizer um ao outro? Imagina-se que “façam” o seu serviço em silêncio, em meio à imensidão de um campo cultivado. Espantalhos são, como se sabe, bonecos feitos com o objetivo de espantar os pássaros de hortas ou searas, a fim de que não se alimentem do que elas produzem. Espantalhos imitam humanos, mas são apenas roupas velhas preenchidas por palha e em suas cabeças feitas com mesmo material ostentam chapéu. Espantalhos simulam vida e geram temor. Temor que não é apenas o de pássaros famintos, pois existe de fato uma doença de ordem psíquica, que possui até uma terminologia científica. A pessoa com aversão e medo mórbido, irracional, desproporcionado e persistente por espantalhos está acometida de bogyfobia.
Supõe-se que espantalhos sejam péssimos “atores” devido a sua quase total imobilidade, e, quando se movem, seus raros movimentos são inumanos, promovidos pelo vento. Diz-se que os pássaros acabam descobrindo a farsa, que espantalhos são seres sem vida, energia, vontade e, por isso, não têm a capacidade de lhes causarem mal.
Os pássaros, portanto, depois de algum tempo de muita desconfiança e observação, acostumam-se com os espantalhos e atacam as lavouras para saciarem a fome. Há tempos existem métodos bem mais eficientes e eficazes que substituem o “trabalho” dos espantalhos. Enfim, com exceção da citada fobia, atreve-se aqui a afirmar que espantalhos não servem para nada. São inúteis.
Mas o conceito e os sentidos de um espantalho se ampliam no discurso poético de Renato Suttana, em especial no poema que dá nome a seu novo livro, “Conversa de espantalhos”.  No texto, os espantalhos são comparados a seres humanos desprovidos de emoções positivas, trabalhando sem ânimo para resguardar a messe, uma messe que não lhes servirá de fruto nem de usufruto. Independe que seja plantação de trigo, de medos ou de sonhos, o que metaforicamente é produzido não os beneficia. Aos homens que se reduzem à condição de espantalhos, resta apenas por sustento sua essência, seu estofo de palha, palha que até os dicionários apresentam como “coisa insignificante”. Esses homens-espantalhos são alienados de seus objetivos no “outeiro”, e conscientes de que, quando muito, podem conjugar apenas o verbo estar, nunca o verbo ser. O espantalho anula-se como ser e conforma-se com estar humano, um estar involuntário que talvez não espante nem mesmo a sua própria nulidade, também humana. É como se o espantalho se transfigurasse num Cristo às avessas, indigno de crença e de fé, empalado em cruz a fim de tão somente se manter imóvel, com os braços abertos ao nada. Já não é mais Cristo, é humano. Já não é mais humano, é humanoide. Já não é mais humanoide, é coisa.







Esse espantalho, sujeito lírico carregado de si e de angústias, aparenta estar em companhia de outro(s) espantalho(s), até mesmo para que haja a conversação anunciada no título. Mas o que provavelmente ocorre é um monólogo em que são expressos sentimentos e emoções por meio do plural de humildade: “abrimos”, “guardamos”, “Somos”. Mas ninguém há de se enganar com esse artifício discursivo e todos hão de perceber de pronto que existe o diálogo, sim, ainda que subliminar, ainda que “sem voz ou pensamento”, porque o espantalho tem a sigilosa interlocução do próprio leitor. Nesse aspecto, o espantalho se humaniza ao ser voz-e-pensamento que confidencia as aflições que qualquer um de “nós” somos capazes de vivenciar e contra as quais, muitas vezes, nada podemos fazer.
Num conjunto de 68 poemas, a angústia e a solidão são constantes, assim como a impossibilidade de agir contra elas. Entretanto, não significa que seja um livro com textos lamentosos. O que se percebe são composições bastante densas que, em teor elegíaco, tentam equilibrar emoção e razão. Nesse caso, uma figura usada abusivamente, e bem, é a do mar. O mar que é tropo de busca, de trânsito, de movimento e, também, na mesma linha de raciocínio, paradoxo navegação/naufrágio.
Há sempre um “eu” descontente de sua condição que encontra no mar pelo menos uma aspiração a um porvir diferenciado, ainda que na intrépida aventura marítima apenas se revele de modo especular e reflexivo o homem em toda a extensão de sua impotência ante as certezas e, principalmente, ante as incertezas da vida.
Qualidades tanto na forma quanto no conteúdo não faltam ao livro “Conversa de espantalhos”. Engenho e arte são instrumentos bem articulados nas mãos de um poeta meticuloso como Renato Suttana. Aos leitores de sua poesia, exige-se apenas a coragem da interlocução, que os levará numa viagem bastante audaciosa à boa literatura.


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Agulha Revista de Cultura
Número 111 | Abril de 2018
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