O que dois espantalhos teriam a dizer um ao outro? Imagina-se que “façam”
o seu serviço em silêncio, em meio à imensidão de um campo cultivado. Espantalhos
são, como se sabe, bonecos feitos com o objetivo de espantar os pássaros de hortas
ou searas, a fim de que não se alimentem do que elas produzem. Espantalhos imitam
humanos, mas são apenas roupas velhas preenchidas por palha e em suas cabeças feitas
com mesmo material ostentam chapéu. Espantalhos simulam vida e geram temor. Temor
que não é apenas o de pássaros famintos, pois existe de fato uma doença de ordem
psíquica, que possui até uma terminologia científica. A pessoa com aversão e medo
mórbido, irracional, desproporcionado e persistente por espantalhos está acometida
de bogyfobia.
Supõe-se que
espantalhos sejam péssimos “atores” devido a sua quase total imobilidade, e, quando
se movem, seus raros movimentos são inumanos, promovidos pelo vento. Diz-se que
os pássaros acabam descobrindo a farsa, que espantalhos são seres sem vida, energia,
vontade e, por isso, não têm a capacidade de lhes causarem mal.
Os pássaros,
portanto, depois de algum tempo de muita desconfiança e observação, acostumam-se
com os espantalhos e atacam as lavouras para saciarem a fome. Há tempos existem
métodos bem mais eficientes e eficazes que substituem o “trabalho” dos espantalhos.
Enfim, com exceção da citada fobia, atreve-se aqui a afirmar que espantalhos não
servem para nada. São inúteis.
Mas o conceito
e os sentidos de um espantalho se ampliam no discurso poético de Renato Suttana,
em especial no poema que dá nome a seu novo livro, “Conversa de espantalhos”. No texto, os espantalhos são comparados a seres
humanos desprovidos de emoções positivas, trabalhando sem ânimo para resguardar
a messe, uma messe que não lhes servirá de fruto nem de usufruto. Independe que
seja plantação de trigo, de medos ou de sonhos, o que metaforicamente é produzido
não os beneficia. Aos homens que se reduzem à condição de espantalhos, resta apenas
por sustento sua essência, seu estofo de palha, palha que até os dicionários apresentam
como “coisa insignificante”. Esses homens-espantalhos são alienados de seus objetivos
no “outeiro”, e conscientes de que, quando muito, podem conjugar apenas o verbo
estar, nunca o verbo ser. O espantalho anula-se como ser e conforma-se com estar
humano, um estar involuntário que talvez não espante nem mesmo a sua própria nulidade,
também humana. É como se o espantalho se transfigurasse num Cristo às avessas, indigno
de crença e de fé, empalado em cruz a fim de tão somente se manter imóvel, com os
braços abertos ao nada. Já não é mais Cristo, é humano. Já não é mais humano, é
humanoide. Já não é mais humanoide, é coisa.
Num conjunto
de 68 poemas, a angústia e a solidão são constantes, assim como a impossibilidade
de agir contra elas. Entretanto, não significa que seja um livro com textos lamentosos.
O que se percebe são composições bastante densas que, em teor elegíaco, tentam equilibrar
emoção e razão. Nesse caso, uma figura usada abusivamente, e bem, é a do mar. O
mar que é tropo de busca, de trânsito, de movimento e, também, na mesma linha de
raciocínio, paradoxo navegação/naufrágio.
Há sempre um
“eu” descontente de sua condição que encontra no mar pelo menos uma aspiração a
um porvir diferenciado, ainda que na intrépida aventura marítima apenas se revele
de modo especular e reflexivo o homem em toda a extensão de sua impotência ante
as certezas e, principalmente, ante as incertezas da vida.
Qualidades tanto
na forma quanto no conteúdo não faltam ao livro “Conversa de espantalhos”. Engenho
e arte são instrumentos bem articulados nas mãos de um poeta meticuloso como Renato
Suttana. Aos leitores de sua poesia, exige-se apenas a coragem da interlocução,
que os levará numa viagem bastante audaciosa à boa literatura.
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Agulha Revista de Cultura
Número 111 | Abril de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO
| FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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o pensamento da revista
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