quarta-feira, 19 de setembro de 2018

ADRIENNE KÁTIA SAVAZONI MORELATO | A Modernidade em Jorge de Lima



A obra de Jorge de Lima se compõe de um extenso mosaico, no qual poeta alagoano experimenta todas as técnicas da poesia, a fim de buscar uma própria. Nascido em Alagoas, em União dos Palmares, terra de Zumbi, região do rio Mundaú, sua terra de origem onde ele passou a infância deixará marcas inegáveis em sua poética. Médico, era conhecido pelas suas atividades profissionais e por suas diversas habilidades artísticas: pintor, escultor, jornalista, cronista, romancista, ensaísta, crítico, político e poeta, o que fez de Lima um escritor atuante em sua localidade e fora dela, numa tentativa de capturar a história principalmente através da palavra.
Para situar Jorge de Lima como um poeta da Modernidade Lírica é preciso antes entender quando e onde se começa essa modernidade e compreendê-la como uma ruptura e uma tendência da arte iniciada pelo Romantismo. O Romantismo está na base da Modernidade Lírica, ou seja, o Romantismo é o início da modernidade, tanto em sua configuração política quanto estética, as quais na verdade se fundem. Inaugurada politicamente com a Revolução Francesa, a Modernidade se inaugurará esteticamente com Baudelaire que ampliará a dissonância entre o significante e o significado da palavra, pois a verdadeira poesia da que deve tomar uma distância da linguagem comum, já que, esta linguagem de todo dia exclui o poeta e a sua arte. Compreendendo a arte como fazer e construção, o poeta moderno despersonaliza o eu – lírico para mostrar o quanto a realidade é esfacelada.
O poeta da Modernidade usa de sua palavra para transvalorar essa condição humana do ser cristão que se vê dividido, perdido em suas polaridades. Voltado para as coisas do coração, o poeta romântico inaugura a insatisfação perpétua, o horror à vida como o seu êxtase, da mesma forma que serve - se de sua arte, sempre insuficiente frente aos talentos inatos do gênio, e a usa para transcender toda realidade nojenta e mesquinha dos humanos comuns, elevando a em direção a uma beleza superior escondida num outro lugar que é paralelo a este mundo, porém perfeito.
Essa concepção neoplatônica da realidade se fundiu com a visão cristã de mundo, e entre o céu e o inferno, os Swenborguistas conceberam o poeta como aquele que devesse unir o mundo real com o mundo do obscuro, que é o do espírito, a fim de tirar o ser do vácuo em que ele se encontra. Baudelaire livrou o poeta de sua missão sacerdotal, pois a poesia passa a ser o fruto de uma imaginação guiada pelo intelecto, e não mais consequência de um dom divino. Entretanto, Baudelaire criou um outro sistema poético de salvação: a teoria das correspondências em que a associação de palavras tende aos símbolos.
A frustração dos poetas da Modernidade é a tensão entra a consciência de que não se pode abarcar o todo, porque ele é múltiplo, e a vontade de fazê-lo para instaurar o tempo eterno. Até o movimento simbolista predominava a analogia trazida para a poesia por meio do símbolo, que se remete à unidade antes da separação em sua realidade material. Após Mallarmé, a tentativa de coesão entre o tempo do mundo comum e o tempo da palavra poética se dissolve e o que antes era apenas dual, dividido entre o céu e a terra, o conhecido e o desconhecido, se mostra heterogêneo e múltiplo, fragmentário, numa impossível união.
O mito, antes redescoberto pelos românticos e pelos simbolistas para fundir o homem com o universo, é profanado pelos vanguardistas pela sua impossibilidade de se materializar por meio da palavra, sempre um referente incerto e distante, uma representação do real mas nunca o objeto em si mesmo, a apresentação da coisa. Na tentativa de desmembrar a palavra de sua referencialidade, Mallarmé se deparou com a inviabilidade da linguagem e com o seu fracasso de se transformar em poesia pura, que é a poesia liberta do mundo e plena no absoluto.
Jorge de Lima surgiu como poeta no momento histórico de libertação da poesia brasileira, do nosso Modernismo, e ao reunir uma obra tão extensa e diversa, para não dizer de alguma forma fragmentária por reunir tantas técnicas diferentes em seus texto, expõe a condição do poeta contemporâneo à sua época, o qual se vê tentado em seguir e se filiar em todas as correntes em voga na época, como o simbolismo, o parnasianismo, o modernismo, o verso metrificado e o verso livre, e de alguma maneira abarcar o todo, de unir através da palavra poética o universo visível com o invisível.
Como Baudelaire, Jorge de Lima quer fazer de sua poesia uma magia sugestiva, para que através da palavra possa libertar a alma humana das terríveis paixões terrenas. A palavra poética torna-se a salvação do ser que se perde na cruel ambivalência do desejo, desejo que se bifurca nos extremos do pecado e da purificação. Assim, observa a poesia de Lima entre o pecado, facilmente exposto pelas necessidades da carne e dos prazeres terrestres e a transcendência que eleva o espírito do ser à contemplação.
A imaginação seria inerente em todas maneiras de se escrever poesia, não importando qual a técnica utilizada, e sim a equivalência que o poeta consegue estabelecer entre os planos por meio da palavra. Tanto é assim, que as referências de Lima como os temas e personagens que ele cria, de alguma forma se repetirão durante toda a sua obra, exemplo temos o Mira Celi, que aparece em Invenção de Orfeu, criando uma atmosfera mística na busca desse todo coeso em sua poética, mas não unificado.
Jorge de Lima foi mais que um poeta que seguia as correntes literárias, foi um poeta que tinha uma concepção própria de poesia e de sua poesia, e que era aberto a todos os modos de escrevê-la porque queria que confluísse em sua poética toda experiência formal e filosófica da tradição literária e da nova tradição (modernidade). Neste sentido, Lima apreende a variabilidade do modo de se fazer e de conceber a poesia com o intuito de elaborar uma poética própria, multiforme e pluriforme, mas coesa pela imaginação criadora:

que a linguagem poética seja, com justeza quer o grande Eurialo Canabra, uma espécie de idioma próprio do poeta nada mais desejável. Mas não esquecendo os poetas também, como lhes adverte T. E. Eliot, de que devem saber comunicar aos outros a sua poesia e não sobrecarregá-la de tal obscuridade que torne incompreensível. A dificuldade da questão da linguagem reside precisamente nisso: ser linguagem de poeta e ser comunicável […] Isto está longe de significar eu se deva esvaziar o verbo poético do seu conteúdo lírico ou poético fundamental. A grandeza do poeta está em saber recriar poeticamente as suas palavras, tirando-as, como dizia Carlos Drummond de Andrade, de seu estado de dicionário para elevá-la a um estado de poesia.

Assim, o objetivo desse trabalho será de analisar a obra do poeta alagoano em face das influências e das confluências que o destacam como um grande poeta, com toda a sua singularidade e poética própria, da modernidade brasileira, como também os aspectos inerentes da Modernidade Estética que perpassam a sua literatura, a qual se coloca em ressonância com a tradição.

AS FACES DO POETA EM CONTRADIÇÃO E EM BUSCA DA COESÃO | Jorge de Lima foi um poeta de difícil enquadramento para os críticos literários que analisam o movimento modernista brasileiro. O primeiro livro do poeta alagoano foi “XIV Alexandrinos” escrito quando este contava com 18 anos, um livro que se filiava ao verso parnasiano desde a escolha da forma clássica do soneto de doze sílabas, quanto aos versos ricos no vocabulário primoroso, para mais tarde aderir ao verso livre do modernismo com o poema “o Mundo do Menino Impossível” em seu livro intitulado “Poemas”.
 Seguindo uma concepção própria de poesia, porém aberta ao aprendizado e às novas e outras tendências do fazer poético, Lima construiu uma poética autônoma, pluriforme e coesa em seu objetivo ambicioso de realizar uma obra completa e extensa, e que fosse tanto épica quanto lírica, enfim, uma obra que aliasse em si toda tradição literária da poesia quanto sua ruptura para se tornar uma das mais atuante da história brasileira.
Com certeza se Jorge de Lima não conseguiu realizar no todo o seu objetivo artístico e filosófico, pelo menos fez deste a sua obsessão da mesma maneira que Mallarmé fez em toda a sua carreira literária, perseguindo a poesia que tocasse o absoluto. Assim, Lima constrói uma obra variada, na qual observa-se formas clássicas como o soneto, a elegia, canções e baladas quanto formas modernas como o poema em prosa, a poesia prosaica, o verso livre etc. Também observa-se na leitura de sua obra a busca do poeta em estar atento ao que estava em moda como as correntes literárias, e ao mesmo tempo, escrever uma obra que pudesse superá-las, ir além das doutrinas e dos princípios políticos, autônoma para se fixar na consciência atemporal da humanidade.
A grande pergunta do poeta em face da Modernidade e das vanguardas era de que: Será que seria preciso matar toda uma tradição da poesia para criar uma poesia nova? Com esta pergunta Lima atordoará a crítica que não conseguirá enquadrá-lo em nenhuma estética a não ser a dele mesmo. Pode se até dividir em fases de acordo com a predominância de uma tendência ou de outra, mas elas nunca serão estanques.
Por exemplo: Alfredo Bosi divide a obra de Jorge de Lima em regional, negro, bíblico e hermético, mas elas se fundem na mesma experiência poderosa da imagem, o que faz dos motivos e temas recorrentes numa e na outra. Entretanto, há também em sua obra uma descontinuidade do processo criador, o que lhe dava a liberdade de abandonar uma corrente literária para seguir outra a fim de criar um estilo próprio. Estes quatros momentos que Bosi separa pode-se entendê-las como temáticas, apesar de que a fase hermética revela a condição precária de entendimento de obras que não se situam no contexto geral da literatura da época como “Invenção de Orfeu” e “Sonetos” por exemplo.
Antônio Cândido o dividirá em duas fases: a nordestina marcada pela presença do negro e dos senhores de engenho, fase agreste e sensual de sua poesia que se distingue da outra fase pela sua força telúrica e terrena, como também pela oralidade passada para a linguagem escrita, num encontro da poesia com o seu ritmo natural e primeiro(Octávio Paz). A outra fase seria a religiosa, fase construída por um catolicismo muito particular. Porém, na fase nordestina já é presente o religioso e o catolicismo do poeta, aliás; sua experiência religiosa foi edificada justamente pelo lugar no qual passou a infância, pois União dos Palmares era uma cidade onde todos os acontecimentos sociais se passavam em volta da igreja, e na qual a fé se tornava uma imagem concreta, presente no dia a dia.
Na poesia “Oração” encontramos os elementos situados da paisagem nordestina daquela época, fundido com uma religiosidade concreta pelos objetos vivos como o burrinho do padre e a oração que nina o menino:

ORAÇÃO (Poemas)

Ave Maria cheia de graça…
A tarde era tão bela, a vida era tão pura,
As mãos da minha mãe eram tão doces,
Havia, lá no azul, um crepúsculo de ouro… lá longe…
Cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita!
Bendita!

Os outros meninos, minha irmã, meus irmãos menores, meus brinquedos, a casaria branca de minha terra, o burrinho do vigário pastando junto a capela… lá longe…

Ave cheia de graça
_ bendita sois entre as mulheres, bendito é o fruto de vosso ventre…

Ë as mãos de sono sobre os meus olhos,
E as mãos da minha mãe sobre o meu sonho,
E as estampas do meu catecismo
           Para o meu sonho de ave!
E isso tudo tão longe… tão longe…

Nesta poesia encontramos não só os elementos regionais como “o burrinho do vigário”, “a casaria branca da minha terra”, “a capela… lá longe” como a própria canção que embala o menino que é na verdade uma oração católica: “Ave cheia de graça”. Se analisarmos estes elementos em vista da paisagem que eles compõem, não se poderá distinguir o regional do religioso pois de alguma forma; todas as figuras trazidas pelo estado de vigília do menino (que estava quase dormindo por meio de uma oração transformada em música) são figuras que se remetem à uma simbologia católica “estampas do meu catecismo”.
O poema também traz o tema da infância, muito abordado pelo poeta e que estará sempre presente em seus poemas, talvez pela vivência mitificada que a infância traz, na nostalgia de um tempo primeiro não recuperado em seu todo, mas quando levantado pela poesia, soa como imagem pura que leva o ser perto de uma potência cósmica e criadora (Deus), na qual perto dela o ser será sempre menino. A infância será a fase humana mais abarcada e valorizada pelos surrealistas, talvez pelos processos infantis serem a origem de todo trauma inconsciente e criador (Freud). Posteriormente, abordaremos em nossa análise a ligação poética de Lima com o surrealismo.
Novamente à fase regional, encontramos a figura e a temática do negro, não só como personagem, mas também como sujeito, dando a impressão muitas vezes de que foi um negro que os escreveu, e não um branco, da classe média e médico. Gilberto Freire, (1980), por exemplo, dirá que Jorge de Lima realizou em sua obra uma “interpretação de culturas ao lado do cruzamento de raças” e que foi para o sociólogo a maior contribuição política da obra poética de Lima.
Essa interpretação de sua fase regional, coloca o poeta alagoano como um poeta atuante em sua localidade e em seu tempo, numa tentativa de transpor essa localidade e esse tempo para qualquer espaço e para qualquer época, fazendo do regional a ponte para o universal da condição humana, o que permite ao poeta quando falar do negro, falar de todos os homens, bem como quando falar do menino que ele foi, falar do menino e da menina que todos fomos.
Assim, o negro de Jorge de Lima é um negro humano com sua vida cotidiana e com o seu sofrimento interior, que não é diferente de qualquer ser humano. Aliás, o poeta alagoano será um crítico feroz do poeta dos escravos; Castro Alves. Para Lima, o negro de Castro Alves não é mais que um instrumento político, enquanto o seu negro é visto dentro de sua cultura e valorizado enquanto humanidade. Contudo, Lima também não disfarçará a sua admiração pelo poeta romântico ao escrever na forma de poesia popular, que muito lembra a literatura de cordel nordestina, o poema Castro Alves – Vidinha na qual ele traça numa sincera homenagem, a curta trajetória do seu conterrâneo nordestino.
Não se pode também separar a fase negra da fase regional, porque o negro que Lima justamente trata é o negro de Alagoas, mais precisamente os remanescentes do quilombo dos Palmares, o que fará de sua temática e de sua escrita, um tanto política, ao retratar principalmente esse negro em seu caráter linguístico. Por exemplo, no poema abaixo temos:

BENEDITO CALUNGA (Poemas Negros)

Benedito calunga
Calunga-ê
Não pertence ao papo – fumo,
Nem ao quibungo,
Nem ao pé de garrafa,
Nem ao minhocão.

Benedito Calunga
Calunga-ê
Não pertence a nenhuma ocaia a nenhum tati,
Nem mesmo a Iemanjá,
Nem mesmo a Iemanjá.

Benedito Calunga
Calunga-ê
Não pertence ao Senhor
Que o lanhou de surra
E o marcou com ferro de gado
E o prendeu com lubambo nos pés.

Benedito Calunga
Pertence ao banzo
Que o libertou,

Pertence ao banzo
Que o amuxilou,
Que o alforriou
Para sempre
Em Xangô
Hum-Hum.

Na poesia acima analisamos o quanto é presente um vocabulário africano próprio nas palavras como “lubambo”, “banzo” e quibumbo. A busca por um vocabulário mais popular e mais brasileiro, também foi uma preocupação constante dos modernistas, o que resultou na salientação da oralidade dentro da literatura escrita. A voz do personagem não foi negligenciada, ao contrário, ela está viva nas expressões que o poeta fez questão de evidenciar como: “Calunga-ê” e “Hum- hum”, as quais também podem ser proferidas por outro negro, por outro escravo ao nomear e compartilhar com Benedito Calunga de seu sofrimento. Além do vocabulário africano, que é valorizado nesta poesia, temos os elementos da religião africana representados na figura de Iemanjá e de Xangô, o que mostra uma tendência à perspectiva do próprio negro dentro do poema, e não do autor. Embora seja eu – lírico criado pelo autor que esteja se travestindo de negro.
Sobre a questão política, observamos que Lima constrói o poema de forma a suscitar uma reflexão sobre a condição dos escravos, pois pela repetição do verso “Não pertence…” o poeta cria a sensação de desraizamento e de não identidade do personagem, principalmente com o lugar, com os objetos e com as pessoas que o tornavam escravo. Ele se indentificará e se pertencerá com aquilo que o libertara de sua condição que é senão a morte por depressão nomeada pelos negros de banzo. Sobre a ligação até política entre o poeta e a sua região, Octávio Paz irá falar que:

O poema, ser de palavras vai mais além das palavras e a história não esgota o sentido do poema, mas o poema não teria sentido e nem sequer existência sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta […] o poema não abstrai a experiência: esse tempo está vivo, e é um instante pleno de toda a sua particularidade irredutível e é perpetuamente suscetível de repetir-se em outro instante. (1997)

Neste sentido, percebe-se o quanto é difícil separar a sua fase regional da negra ou da religiosa, bem como ao retratar a sua localidade e falar de situações vividas e de paisagens criadas pela história, Jorge de Lima vai muito além das palavras, mesmo sem que essa não fosse a sua intenção, o que não se pode provar, pois o movimento modernista reforçou a descrição e a retratação de uma realidade brasileira (as localidades como elas são) na busca de se construir uma literatura brasileira e que finalmente fosse independente dos moldes europeus, se aproximando da literatura popular, do folclore e da oralidade.
A escrita literária se liberta da rigidez formal e da erudição que a tornava um objeto distante da realidade, ainda mais quando se tratava de uma realidade tão exótica quanto a brasileira, o que fazia da literatura um lugar de idealização do povo e da cultura brasileira, porque as coisas que mais nos representariam como a língua, o português falado brasileiro tido como desvio e como degeneração da língua mãe, era afastado da literatura erudita feita no Brasil, por medo que a língua popular também degenerasse a literatura.
Embora, o Modernismo recriou a literatura brasileira ao inventar uma estética própria, liberta da tradição portuguesa em busca de uma originalidade local, não se pode esquecer que este foi um movimento em consonância com as vanguardas europeias, e baseado em teorias sobre a estética da Modernidade elaboradas pelos poetas europeus, em particular os franceses, o que em solo próprio pôde significar um rompimento com a literatura portuguesa, mas não com a europeia.
Também se observa que no Modernismo brasileiro houve a tentativa de ruptura com a realidade-objeto representada pelo Realismo/ Naturalismo, a qual buscava a retratação mais fiel com aquilo que descrevia, o que significava a eliminação do autor da escritura, algo um tanto impossível e idealizado. Contudo, o Modernismo também não fugiu de uma representação da realidade tal como concebia, e de uma idealização, mesmo que essa realidade fosse representada sem a eliminação do sujeito que escreve da escritura, ainda assim ela é criação. Ao contrário, a preocupação com a retratação da realidade continua, aqui a brasileira, porém, ela agora é vista como fragmentária e dividida, assumindo as particularidades de cada local e de cada autor - criador.
Aliás, esse autor moderno se assumirá como criador de realidades, não escondendo o caráter ficcional de sua busca pela verdade, sempre subjetiva, e Jorge de Lima pode ser colocado como este autor que: ao buscar a verdadeira realidade, encontra-a múltipla e não única como acreditavam os racionalistas, e ao vê-la fragmentária, cria as suas na tentativa de não mais separar o real do sonho, o espírito da mente, a fantasia dos sentidos, revelando um desejo de totalidade do ser com o espaço, embora tivesse a consciência de que esta não fosse plenamente possível.
A partir desta consciência, Jorge de Lima transformará a sua obra constantemente, de acordo com a realidade a qual quer representar num certo momento e num certo espaço. Por exemplo: ao escrever a poesia homenagem à Castro Alves na forma do cancioneiro popular, a literatura de cordel, o poeta reforça a ligação e a origem nordestina tanto sua, (Lima era alagoano) quanto a do poeta dos escravos (Castro Alves era baiano).
Pode se dividir a obra de Jorge de Lima por meio das variadas técnicas que ele utiliza para compor de acordo com o espaço e tempo que devem ser representados, entretanto, quem lê a obra toda do poeta encontra uma grande unidade, apesar da fragmentação dos estilos e técnicas, porque: “a pluralidade do real manifesta-se ou expressa-se como unidade última sem que cada elemento perca sua singularidade essencial” (Octavio Paz, 1976). Da mesma maneira acontece com as fases do poeta alagoano, as quais se intercalam uma na outra através dos mesmos temas: a infância, a transcendência do ser, a religiosidade etc.
A busca de uma unidade última se realiza nas fases da obra de Lima sem perder as características essenciais de cada uma, o que se observa que; elas se solidificarão como únicas, por meio da junção da técnica escolhida com o tema, o qual perpassa as fases através da imagem. Essa grande unidade se manifesta na corporização da imagem como símbolo que fundem os polos contrários da realidade em si mesma. Essa volta para a imagem como princípio unificador, irá contra a modernidade vanguardista, a qual dessacraliza e desmitifica a realidade, deixando como diz Paz; um vazio na consciência.
O poema para o vanguardista, excluindo aqui os surrealistas que merecem um capítulo a parte, é sempre fragmentário e inacabado. Consciente disso, o poeta de vanguarda faz de sua poesia uma descontrução do mundo, no momento em que a sociedade ocidental perde as referências clássicas do que seja a realidade, objetiva e racional. Enquanto o poema para o poeta da modernidade de origem simbolista, é antes de tudo uma revelação do ser por ele mesmo, restabelecendo a palavra primeira através do mito fundador da linguagem e da imagem.
Jorge de Lima apreciará a fragmentação das vanguardas e refletirá criticamente sobre o seu processo de escritura, contudo não abandonará a tradição literária e a busca da experiência transcendental e filosófica do ser fundada no símbolo. Ele compartilhará, juntamente com George Bernanos que foi um dos expoentes de sua obra, uma reflexão crítica sobre a Modernidade:

Le monde moderne a mutilé et deformé l’art, l’astreignant aux petits détails, aux petits cubes, aux petits poèmes eroniques, aux petits bonbons lyriques si tant est que l’on puisse appeller lyrisme ce laisser –aller, cette plastitude, ce déconfort Qui tendent a corrompre la poésie moderne.

Bernanos pensa que a poesia moderna de vanguarda seja fria, sem a interioridade necessária. Jorge de Lima, ao contrário, fará de seu percurso poético um caminho entre uma poesia que retrata o mundo exterior e uma poesia subjetiva e intimista na busca de um desvelamento do ser. Neste sentido, temos em sua primeira fase uma poesia descritiva e oral e em sua segunda fase; uma poesia mais fechada em si mesma, mais voltada para o símbolo. A religiosidade, por exemplo, que é o princípio fundador tanto da poesia quanto da filosofia, passa a ser nesse percurso poético: um motivo na fase objetiva e regional, e um tema na fase subjetiva e atemporal de sua poesia.
Pode-se chamar essa sua primeira fase (aqui excluindo XIV Alexandrinos) como vivência geográfica da mesma forma que a primeira fase do Modernismo, enquanto a sua segunda fase, a subjetiva, de vidência psicológica e se ligaria à Segunda Fase do Modernismo. Porém, toda classificação e separação da obra de Jorge de Lima tem mera função didática, pois foi mostrado mais de uma vez neste ensaio a ligação estreita entre uma fase e outra através dos temas e da imagem como princípio fundador, a qual se transformou numa busca incessante para o poeta.
Ao corresponder a sua obra com o Modernismo brasileiro, deve-se ter muito cuidado, porque tomamos como referência o modernismo paulista e marioandradiano, enquanto Jorge de Lima estava ligado ao modernismo carioca, mais precisamente ao movimento engendrado pela revista “Festa” de caráter espiritualista e que valorizava a tradição portuguesa. Este movimento do Rio de Janeiro, no qual se filiou também Cecília Meireles e Vinícius de Morais, foi a base da formação poética de Lima, contudo, é de se saber que o poeta alagoano posteriormente correspondeu-se com os preceitos estéticos do modernismo paulista a partir do poema “O menino Impossível” e de seu livro Poemas.
A sua fase hermética, como é designada a sua fase subjetiva, a qual representa a sua postura mais mística, reforça a consciência do poeta de que a arte pura não é comunicação, ao contrário, ela deve transcender seu caráter referencial para se tornar apenas o ato de poetizar (Octavio Paz, 1976). A literatura como é feita de palavras se vê numa busca quase impossível, pois antes de se transformar em texto artístico; as palavras significam e nomeiam o mundo. O poema, por exemplo, luta contra a natureza das palavras para tentar dizer o indizível, obrigando-as ir além de si mesmas, porém, o poema é totalmente dependente delas o que torna o fazer poético um ato ambíguo. Ao mesmo tempo escrever poesia é nomear a sua história: datável e situada, e ir além desta, trazendo para si a experiência íntima humana anterior à história e acumulada em toda história. Neste sentido, Jorge de Lima expõe essa contradição vivenciada também por ele em seu fazer poético:

A dificuldade da questão da linguagem poética reside precisamente nisso: ser linguagem de poeta e ser comunicável. Isto está longe de significar que se deva esvaziar o verbo poético do seu conteúdo lírico ou poético fundamental, A grandeza do poeta está em saber recriar poeticamente as suas palavras, tirando-as como dizia Carlos Drummond de Andrade de seu estado de dicionário para elevá-las a um estado de poesia.

INVENÇÃO DE ORFEU | O surrealismo foi a última vanguarda europeia e talvez a que mais obteve impacto tanto nas artes quanto na política. Para além das rupturas estéticas, o que o surrealismo propôs foi a concepção de que a poesia fosse não só uma arte, mas uma filosofia de vida da qual pudesse modificar o ser humano em si, e em consequência; modificaria o mundo. A revolução se daria primeiramente no âmbito estético para depois acontecer no campo social.
O manifesto surrealista de Breton propunha que a poesia tornasse libertadora dos poderes obscuros da mente humana através da livre associação de palavras e imagens formulada pela psicanálise, ou através do sonho, o que dá um poder sem igual para o símbolo e para o mito que organizariam em si as diversas imagens trazidas pelo inconsciente. A verdadeira realidade seria trazida por essas imagens do inconsciente, as quais transformadas em poesia, revelariam a problemática da condição humana dicotomizada pela história racional, mas que essencialmente é una, na qual as realidades subjetivas e objetivas não se distinguem .
A partir destas concepções é que surgem as técnicas surrealistas de elaboração artística e escrita poética como: a escrita automática e fotomontagem, da qual a última será um recurso extremamente usado por Jorge de Lima, principalmente em sua obra “Invenção de Orfeu”. Escrito de forma épica, “Invenção de Orfeu” traz em sua estrutura uma profunda insatisfação com o tempo e com a poesia, e o caos do mundo contemporâneo em forma de fábula do maravilhoso.
Possuindo dez cantos como os Lusíadas, ele se distinguirá da epopeia portuguesa por não ter uma finalidade determinada, e por trazer em si, muito do inconsciente e do premonitório (Gaspar Simões, 1980). “Invenção de Orfeu” acabou sendo recebido pela crítica e pelo público como uma obra hermética e de difícil penetração, mal interpretado à luz do modernismo paulista, foi visto pela mesma como um regresso às formas clássicas inegavelmente tidas como superadas.
Realmente, “Invenção de Orfeu” tem muito do clássico, mais precisamente do barroco( aqui se entende o classicismo desde o Renascimento até a Revolução Francesa, tendo a sua ruptura com o Romantismo, o que incluí o barroco) em sua estrutura e mesmo em suas imagens “sobrecarregada de ornatos luxuosos” (Murilo Mendes, 1980). Contudo, na época em que foi publicado (terceira fase do modernismo 1945), se assemelhar aos clássicos, principalmente quanto à estrutura e ao rigor formal, era visto como um retrocesso e não como uma elaboração profunda e filosófica de poesia, embora fosse uma tendência comum aos jovens poetas daquele período como Drummond e Cabral de Melo Neto. O próprio Lima o denominava de cântico barroco, pois mistura em sua composição a mitologia grega com a cristã, além de propor imagens fincadas na antítese e no paradoxo como no canto XVIII Biografia.
Entretanto, o que mais atordoou a crítica em “Invenção de Orfeu” foi que apesar de sua estrutura épica, a obra não foi escrita nos moldes da epopeia tradicional, não, ela parece abrigar em sua unidade a mesma fragmentação formal de todo o percurso poético do poeta, além de trazer em si toda experiência filosófica, histórica e literária do conhecimento temporal, como também toda a experiência subjetiva do ser, a qual não se pode datar, nem situar, mas que se remete à condição humana.
Desta maneira, “Invenção de Orfeu” parece estabelecer em si, tanto na forma quanto no sentido, a fusão dos contrários: sonho e realidade, verdade e ilusão, corpo e espírito. Esta fusão dos contrários parece ser difundida pelos surrealistas como uma obsessão, um ideal, porque em seu plano de criação consegue fundir o épico, que em sua essência tem um caráter linear e heroico, com o cíclico e atemporal da lírica, na qual ocorre manipulações semânticas que terão por finalidade chocar o leitor ao fazê-lo rememorar toda trajetória humana, tanto espiritual quanto fatual.
Cada canto será escrito de uma forma diferente e dentro de cada canto também conviverá diversos estilos, como, por exemplo, o soneto e o verso livre, fazendo a ligação entre a formalidade da tradição e a estética da modernidade. Cada parte é um poema próprio compondo a arquitetura do livro e uma se remete a outra através da figura de Orfeu, o poeta que inventou a lira e enfrentou o inferno atrás de sua amada Eurídice, e da própria genealogia da imagem que se estabelece na construção do poema – narrativa. Os outros livros e os outros poemas de Lima também se farão presentes nos dez cantos, constituindo “Invenção de Orfeu” não só como síntese da literatura ocidental como também de toda a sua obra.
“Invenção de Orfeu” significa não só a invenção material do mito grego, a lira, mas também a invenção espiritual que é a poesia, da qual Lima se coloca como um verdadeiro seguidor, como se o seu épico lírico fosse um canto de iniciação impregnado pelo Orfismo. O Orfismo era uma religião que surgiu do culto e das lendas sobre Orfeu e que acreditava no antagonismo do ser, o qual era marcado pela sua dupla natureza. O mundo seria originário de um ovo, do qual surgiu Eros, o princípio gerador de todas as formas de vida e de não vida, como também dos deuses.
O ser humano seria originário das cinzas dos Titãs destruídos por Júpiter após matarem Baco, o deus-menino. Assim se constituíra o ser humano como mal e bem, luz e sombra, razão e emoção, antagonismos que os surrealistas procuravam unir na nova totalidade do ser. Enquanto os órficos acreditavam na salvação através da libertação da alma , ou seja, na transcendência. Esta será mais uma dualidade e conflito que Jorge de Lima terá de enfrentar em sua composição de “Invenção de Orfeu”: a procura pela transcendência do espírito por meio das palavras e a busca pela imanência do ser com o mundo, com o universo criador da qual emana as palavras.
O primeiro canto “Invenção de Orfeu” nomeado de “A invenção da Ilha” constitui como uma reinvenção das grandes navegações portuguesas e do descobrimento do Brasil, numa clara relação com os preceitos nacionalistas do modernismo paulista de que seria preciso reinventar a nossa história. É como se o poeta aqui refundasse a criação do mundo ao recontar a época do descobrimento do Brasil, ou seja, a reinvenção da Gênese a partir de uma nova narrativa sobre um novo mundo do ponto de vista de Orfeu, de quem foi inventado e não do inventor.
Se foi dessa época e nessa época que Portugal ganhou o seu épico se afirmando como nação, nada mais justo que nós brasileiros também tirasse o seu dessa história comum entre as duas nações. Assim, o poeta refunda a ilha, (o Brasil quando foi avistado pelos portugueses recebeu o nome de Ilha de Vera Cruz) ilha que perde pouco a pouco o sentido geográfico para ganhar a dimensão humana, através da paródia do grande épico de Língua Portuguesa: “Um barão assinalado/sem brasão, sem gume e fama”.
O que significa que a nossa história e a nossa formação como nação foi e é uma paródia de uma história grandiosa como a portuguesa, por essa razão que Lima reconstrói a viagem do descobrimento neste primeiro canto como uma nova gênese, uma nova criação do mundo na qual devemos abandonar a nossa concepção histórica – geográfica de país para nos tornamos uma nação. “Contemos uma história. Mas que história?/A história mal dormida de uma viagem.”
Para redesenhar a história mal dormida de uma viagem que foi o Brasil, e transportar a sua condição para a recriação do mundo, uma nova gênese a qual acaba sendo a condição de toda a obra, seria necessário cruzar os tempos, o passado e o presente se afirmando um no outro na busca de um tempo inicial, mítico e que rescreveria o brasileiro de hoje, o nosso modo de ser sem caráter: “faz de conta que somos homens feitos”.
Da mesma maneira que Macunaíma, somos ainda meninos como povo, uma nação infante e incompleta sem a grandeza europeia. Se é preciso reinventar o brasileiro é preciso também reinventar o homem por inteiro, desnudá-lo em sua animalidade, em sua condição de bicho:

que depois de refeito e decifrado
É a condição do bicho: carne, pelos
E sangue breve do homem desgraçado.

Essa reinvenção do homem e seu desnudamento, traz a consciência ao ser de como se é, e essa tomada de consciência de si faz o homem se deparar frente a frente com a sua desgraça. E em sua consciência de ser, há o pavor do descobrimento das imagens que surgem livremente na mente, e que faz de cada um criador de si mesmo e de seu mundo (o ser surrealista):

Meu Deus por que fiz isto? Desce a noite
Nem sei o que vos digo: há nessa viagem
o jogo inesperado, o cego sulco
a prisão clandestina da consciência
a eclosão dos estames e pistilos (…)
Ó subsolo de todas as criaturas.

Para se chegar ao subsolo de todas as criaturas há a necessidade de se fotomontar as realidades, criar uma nova memória e uma nova história mesmo que essa história seja a mal dormida de uma viagem “Lusíada desnudo vou coçar-me / às vezes pela areia bebo deuses.
Se o ser pode ser criador de imagens e assim se tornar criador de si mesmo e de sua realidade (Schopenhauer) há a imensurável vontade de potência( Nietzsche) que faz o ser chegar na condição de Deus, e desta maneira aniquilá-lo. Porém, Lima se vê entre a tensão de querer matar Deus para sê-lo, pois da mesma forma se é Deus o grande arquiteto da criação do mundo, é o poeta o arquiteto do poema, e a consciência de se ver como um ser limitado e frágil, o homem desnudo, o que faz de “Invenção de Orfeu” a tentativa imperfeita e inacabada de uma nova cosmogonia:

esse Imensíssimo Poema
Onde os outros se entrelaçaram
Datas, números, leis dantescas
Início, início, início, início (…)
Poema-Queda jamais finado
Eu seu herói matei um Deus.

Ao chegar na condição de ser do poeta, o criador de realidades, Lima também revela a condição do poema e do próprio ato de narrar e poetizar, pois “Invenção de Orfeu” é ao mesmo tempo uma narrativa e uma lírica, não apresentando a divisória costumeira clássica entre os gêneros, mas ao contrário, a mistura decadente e original entre os mesmos, entre os estilos e entre as artes acontecida dentro da Modernidade a partir do Romantismo. Essa mistura transforma a arte, principalmente a literária em não classificável e não datável como acaba acontecendo com “Invenção de Orfeu”.
O metapoema é uma consequência dos rumos que a poesia tomou na Modernidade, como também da maldição do poeta que se vê sem função econômica e por conseguinte social, após a queda da aristocracia e a ascensão da burguesia, pois se antes a arte era patrocinada e cumpria um determinado papel na corte e na igreja, na fábrica e no comércio do capitalista ela pouco tinha valor de uso e de venda.
A visão utilitarista da modernidade tecnológica não agradava os artistas que pregavam uma modernidade estética na qual todos os valores outrora rejeitados como feio, o hórrido, a morte, a destruição fossem colocados num mesmo plano que a beleza, a harmonia, a vida e a criação com o intuito não só criticar os clássicos, mas também a sociedade burguesa com sua vida voltada para o imediato e para a reprodução de mercadorias. O poeta ao contrário, estaria voltado para a imaginação libertadora, e a sua condição de criador já traria em si o novo e a originalidade de espírito. Para Calinescu: “o que define a Modernidade cultural é a sua liminar rejeição da Modernidade burguesa e a sua consumidora paixão negativa” (1999).
Neste sentido, Jorge de Lima compartilha em “Invenção de Orfeu” da mesma angústia dos poetas da Modernidade, o poema sem valor e função para a sociedade de mercado se volta para si mesmo, para a sua composição construindo sua própria teoria poética da reflexão solitária do que é a poesia e do que é o poeta para e na Modernidade, tanto a estética quanto a material.

IV
Se me vires inúmero, através
desse poema, entre as coisas e as criaturas
como se eu próprio fosse o que outrem é
dissipado nas páginas impuras

arrebatado pelo próprio poema
possesso, surpreendido, fragmentário
travestido de herói ou de réu, em
quase todos os versos degredado

O poeta é “arrebatado pelo próprio poema” no momento em que se volta para a sua estrutura indo até os limites do significante em busca da música que se faz da imagem, que aqui se trata de “Invenção de Orfeu”, mas que representa a dor de todos os poetas frente ao ato de construir o poema a partir de palavras, as quais são ingratas para a arte porque já em si trazem um significado e uma imagem preestabelecida. E com o um poeta da modernidade, Lima se vê também na condição baudelairiana de poeta maldito “quase todos os versos degradado”, além de revelar a dimensão do ser diante da modernidade material, na qual este não é mais uno e identificável, e sim “possesso, surpreendido, fragmentário” dividido entre a transcendência e a imanência, entre a maquinização do homem e a humanização das coisas.
Neste trecho, Lima também se refere à arquitetura híbrida de “Invenção de Orfeu” e a tomada de consciência do artista sobre a sua obra, a qual se mostra por si só surpreendida e fragmentária, dando a impressão de que o poeta alagoano é “inúmero” e que se vê dividido entre o prazer do mau, isto é, o deleite de criar uma obra que fizesse frente à criação de Deus, e a necessidade de ser bom, se reconhecendo como limitado pela imposição da linguagem e pela condição do ser “travestido de herói e de réu”. Desta forma, justifica a colocação deste trecho no canto “Subsolo e Supersolo”, pois como poema, “Invenção de Orfeu” revela o interior do eu humano e também a sua superfície.
A unidade de “Invenção de Orfeu” se fecha em torno das imagens construídas pelo processo surrealista da fotomontagem, em que Lima parece recortar e colar diversas imagens uma diferente da outra e reuni-las em uma única pelo processo de analogia “Lusíada desnudo vou coçar-me/ Às vezes pela areia bebo deuses” (1980) o que no Canto I representa a tentativa do poeta de criar um épico brasileiro, mas que esbarra na tomada de consciência de que a nossa história de formação é uma paródia irônica da portuguesa “A história mal dormida de uma viagem.”
O abandono da tentativa do poeta de situar nos geograficamente e historicamente no decorrer da obra, e a vontade de abarcar em si a cosmogonia num solilóquio da criação do mundo é colocado neste trecho “Lusíada desnudo vou coçar-me” com uma certa ironia marioandradiana lembrando a figura de Macunaíma, porém a ironia aqui é mais sutil pela própria complexidade da arquitetura do poema que tenta em sua estrutura, reunir todo o universo interior do ser em conjunção com o universo exterior.
 A fotomontagem nesta obra se realiza não só como um processo de fundição de imagens em busca daquela pura e primeira, mas também como um processo intertextual, na qual Lima compõe “Invenção de Orfeu” recortando e colando também trechos escritos e consagrados de outros poetas principalmente de “Os Lusíadas” como no canto IX “Permanência de Inês” em que o autor fala de Inês de Castro e que utiliza do mesmo trecho conhecido de Camões, mas com a sua modificação:

Estavas, linda Inês, posta em sossego. (Luís de Camões)

Estavas, linda Inês, nunca em sossego (Jorge de Lima)

No trecho de Lima há de observar o cuidado em preservar a vírgula, o verbo e a sequência do verso de Camões, porém a entrada da palavra nunca no lugar da palavra posta subtende uma mudança no significado contextual da imagem. Assim a intertextualidade se concretiza na sobreposição das duas imagens de Inês, a primeira, consagrada pelo tempo e mitificada pela história remete nos sempre a visão da musa deitada em seu leito à espera do seu resgate, enquanto a segunda no lembra o fato dessa imagem construída por Camões nunca ter sido abandonada pela história na construção do mito, perfazendo desta imagem o próprio mito e a sua história, não dissociando um do outro.
Dessa maneira, Lima parece fundar uma nova mitologia em “Invenção de Orfeu” como também um novo canto poético, uma nova poesia derivada do orfismo, dialogando com a velha tradição e com a nova tradição, se assim pode-se chamar a Modernidade. O rigor formal e estrutural da obra é intercalado com a associação livre de imagens como por objetivo devolver o ser à palavra inicial:

Antes que os lábios, amanhã, o poema,
hirtos se calam, vossos, serão vossos
esses cânticos de renunciação.

Ao ler Jorge de Lima, a impressão que se tem o leitor é que a cada livro surge um poeta diferente e até contraditório, porque se em “Poemas”, por exemplo, predomina o regionalismo de alguma forma circunstancial, em um livro como “Tempo e Eternidade” vê se um poeta preocupado com o universal, subjetivo e intimista. Porém, o leitor também irá observar a predominância em todas as fases de certos temas e motivos, como também o conflito gerador de sua poesia presente em todas as obras que é a divisão do homem em si próprio,  o ímpeto do ser de se situar no tempo e ir além do mesmo. Essa mesma obsessão de Lima que se vê e vê o ser dividido entre Deus e o Diabo, a purificação e a profanação do espírito, entre o terreno e o celeste, entre o pecado e a transcendência parece permear toda a obra do poeta até a chegada de “Invenção de Orfeu”.
“Invenção de Orfeu” é o máximo de sua poética, e a solução dos conflitos de sua obra, porque fixa o efêmero e coloca o pecado dentro dos planos de Deus, abolindo as diferenças entre a profanação e a religião, entre a maldade e a pureza. A grande questão de “Invenção de Orfeu” passa ser o drama humano de todos os tempos e o drama humano de cada um. A meditação da obra passa ser a expulsão do ser humano do paraíso terrestre, o que ocorreu conosco depois da queda.
Fábula do maravilhoso, reinvenção do mito dentro da modernidade, “Invenção de Orfeu” é antes de tudo uma narrativa lírica sobre o próprio ato de fazer poesia, sobre a angústia do poeta diante da palavra e sua estrutura já determinada pela língua e pela sociedade. Escrever um poema que se encontre com o que seria palavra pura e inicial parece algo impossível para o poeta porque as origens são sempre irrecuperáveis em seu todo, elas nunca deixarão de ser fruto de nossas projeções. Porém, é preciso que a poesia retorne ao seu estado primeiro para restaurar a palavra no poeta em ritmo e imagem. Mesmo que seja ilegível um poema feito de poesia pura (Octavio Paz), não há dúvida que Lima tentará realizá-la principalmente nesta obra que parecerá ao leitor um monumento inacabado.
Neste sentido, é que Jorge de Lima chamará seu monumento à poesia de “Invenção de Orfeu” que significará na realidade “Invenção de Poeta”, o qual utilizará das técnicas surrealistas de composição para chegar mais perto da livre poesia (associação de imagens) do inconsciente, ao mesmo tempo perguntará sempre: “Como contar e começar uma história, se tudo parece presente?” Se o ritmo e a imagem desfaz a temporalidade? Como contar e falar de algo, descrever a substância e a existência do homem e continuar no caminho da descoberta do ser que perpassa o homem? Conciliar narrativa e poesia, prosa e poema, épica e lírica, fala e canto parece ser a questão de realização de “Invenção de Orfeu”, e é claro que a sua estrutura não poderia deixar de aparentar esse conflito abarcando todas as formas e variedades de técnicas possíveis de poema.
Aliás, essa variedade parece ser uma constante em toda a obra Lima que se mostra um profundo conhecedor da tradição, do clássico, quanto da modernidade e das vanguardas em relação à concepção e a o fazer da poesia em toda história. A aparente indecisão do poeta diante da qual poesia ele gostaria de fazer e do movimento o qual ele deveria seguir, esconde na verdade um poeta autônomo, conhecedor de si mesmo e coeso diante de sua própria concepção de poesia. Esta deve ser pluriforme e multiforme, deve conciliar a forma com o tema, o que faz de Lima antes de tudo um pesquisador e um estudioso de sua poética, cuidadoso em escolher um motivo e um tema, os quais devem ser detalhadamente refletidos em torno daquela estrutura e forma de composição que lhe seja cabível.
A reflexão constante em torno da palavra e da criação poética por si só já coloca Lima entre os poetas da modernidade, que está além de seguir ou não seguir o modernismo, já que, os dois não podem ser confundidos. O modernismo é um dos movimentos de um processo muito mais amplo de ruptura e mudança, nas velhas formas de pensar e conceber o mundo e a arte, que se inicia com o romantismo e que vem a ser a Modernidade, embora ela tenha se dividido em duas: modernidade material e modernidade estética. Elas se dividem no momento em que a arte deixa de acreditar que possa ser veículo da política e da revolução para ser em si a própria política e revolução.
Ao voltar para dentro de si mesma a fim de não mais ser o espelho do mundo como ele é, mas como o mundo deveria ser, a arte e a poesia se tornam senhoras delas mesmas, enquanto o poeta se desvincula da realidade para se tornar autônomo e criador de uma realidade sua e original que se perpetua por meio da palavra. Por essa razão, é que a obra de Lima não está desvinculada da Modernidade, embora pareça estar do modernismo paulista mesmo que este também seja presente em alguns dos seus livros como “Poemas” e “Novos Poemas”. A obra de Lima não escapa da modernidade mesmo permeada também pela tradição, pois o autor de “Invenção de Orfeu” se mostra como um poeta original e reflexivo, autônomo e inovador em busca de uma poética sua, somente sua, mas que se deseja perpetuar além do tempo e do espaço igualmente quando fala do homem situado, e que em torno de si revela a linguagem no ser.


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ADRIENNE KÁTIA SAVAZONI MORELATO (Brasil, 1981). Poeta e ensaísta. Página ilustrada com obras de Juliana Hoofmann (Brasil, 1965), artista convidada desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 119 | Setembro de 2018
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