[ DEZ POEMAS ]
[UMA
NAUVE PARA BISPO DO ROSÁRIO]
uma
nauve para bispo do rosário:
sobrevoar
a nado o nada
a
ponte de safena plantada no sonho desenha a concha pra se ouvir o céu
um
chinelo que saiba alçar
a
bainha portando flor
joias
de pendurar na alma
bússola
apontando o triângulo das bermudas capital de andrômeda
o
leme guiado pela sorte
motor
movido à lágrimas
um
náufrago de imediato
o
capitão que afunde só
uma
tesoura que cole
um
carrasco rebobinado
um
ataúde que ressuscite
um
carlos torto um torquato alado
rita
lee sua imagem e semelhança
um
pugilista taxidermizando mariposas e libélulas
que atracam as línguas
metade
de um lobo x 8 j'é matilha
-
um pássaro + relógio = 00:00
X
as
365 luas entre o ovo - larva- pupa- fase adulta
um
celular com requeijão
um
pão com a tela virada pra baixo
os
dois a 80 por séculos XXI?
um
auto um labirinto uma arca cheia
de
estranhas
com
animais que a natureza esqueceu de inventar
o
quanto de centauro que cabe no atalho de cada paralelepípedo
uma
vara de pescar nuvens num jardim suspenso pra levar os dogmas pra passear
esquecer
de levar o que se lembra do mundo
exceto
os inseticidas pros etnocidas
a
poesia quitando o aluguel
[FLAGREI
O TEMPO]
flagrei
o tempo em que a galinha consegue correr sem a própria cabeça
o
tempo do sossego
sem
peso pra pensar religião previsão do tempo atestado médico se vai ser ovo cozido
ou escorpião na mistura ou se o cavalo dorme na própria janta ou janta o próprio
descanso ou me lembrar de amarrar os sapatos antes de mergulhar
[TRAJAR
TRAPO]
trajar
trapo
tirando
cartola de coelho
dando
canja pra desafinar de galo
com
voz de cigarra
ser
o piolho que descabela o mundo
ser
murro ao ser mudo
ser
ponte ao ouvir de muros
ser
diminuto enquanto os outros tem hora
rir
com as bruxas pois se é caipora
e
ir embora ao perceber que ficou
armado
até os dentes de dente
pra
desfilar sorriso
um
camelô de sonhos matando sedes
um
aras no deserto dum peito
de
uns séculos pra cá
há
de se reinventar os abraços
os
toques
deve-se
lembrar que a pele é pena
pena
que de tão leve ninguém leve a sério
deve-se
febre aos médicos
e
devem ser tartarugas as lebres
deve-se
desaprender das contas do tempo
deve-se
desobediência, pois
quem
prometheus o fogo não avisou da conta do gás
deve-se
ignorar a conta da luz
deve-se
queimar a conta das trevas
devemos
chama ainda em chuva
deve-se
barracos os balões
deve-se
pipas ao céu
deve-se
o véu sereno da noite
ao
coração de uma criança etíope
deve-se
sobretudo
alongar
o espírito
adocicando
nosso
abissal
[DES]
des
desfoucault
da questão des
desfoucault
da questão des
desfocault
da questão
seus
juramentos de hipócrates!
des
desfoucault
da questão
é
tanto adorno
des...
des...
desfoucault
da questão
tudo
tão confúcio
des
desfoucault
da questão que freud estraga...
desfocault
da questã - não freud!
desfoucault
da questão
but
i kant!
des...
des...
descartes!
des
desfoucault
da questão... des... seus juramentos de hypocrates!
desfoucault
da questão que
é
tanto adorno
tudo
tão confúcio
que
nada fica nietzschedo
a
vida mais parece o gato de schrödinger amarrado num pão com requeijão
[A
LÍNGUA LIXA FELINA]
a
língua lixa felina
limpando
o pelo
da
carcaça que
apela
limpando
o que sobra dela no limbo entre o dente e a mandíbula
a
língua
formiga
a
língua lagarta
a
língua afogada em outra
feito
peixe afogando em ar
feito
um feito natural
fato
a
língua
das coisas
mordida
queimada
ainda
a
língua lâmina riscando o verbo no chão
fatiando
o vento fóssil
a
língua migrando de carne em carne
de
cerne em cerne
a
língua que faz dos trapos coração
a
língua sem freio poeta na minguação da lua
mendigando
um oral
[O
PEIXE GOELA ABAIXO]
o
peixe goela abaixo
nível
do mar
as
moelas céu da boca
acima
são
os dentes das aves
e
ficam boas se bem temperadas
a
carne cu a fora
forma
a merda que dentro tem carne
que
dentro tem capim
que
dentro tem chuva e sol
goela
abaixo
tudo
goela abaixo
deglutido
ainda que não curtido
ainda
que seja cru ainda que já tenha passado
é
necessário se portar feito avestruz
e
engolir tudo: pranto, bala, sapos
é
necessário imitar cachorro:
ter
fome de lixo sempre
e
ainda ter que abanar o rabo
e
ainda ter que fazer festa
pro
seu bandido de estimação
desjejuar
um saco sem fundo
engolir
o murro no centro do umbigo
a
seco
tirar
a farinha do porão da cabeça e jogar no pirão
nem
que seja a palo
nem
que seja pela asma da vaca
desjejuar
um saco sem fundo até não caber o mundo
pra
suportar a lombra dos húmus
[MARTELEI
PRA CADA PEGADA UMA MINHOCA]
martelei pra cada pegada uma minhoca pra cada
cabeça de seu coração pra cada quadro que me falha lembrar de comprar um pouco de
sopa pra pôr nas moscas um tanto de sapo
[LUTO
POR TODA FORMA DE AMOR]
luto
por toda forma de amor
entre
uma menina com fobia de peixe e o mar
um
nefelibata e uma roseira
uma
hipertensa e uma chorona
do
diabético com os lábios de mel
pra
que internemos a anatomia de vez
por
um esquema mais elétrico pois quem perde tempo pensando é cérebro
-
e já não temos mais espaço para isso –
para
que nos abrasemos forte e ascendemos
para
que aprendamos mais com os fósforos
é
que saibamos dar ouvidos ao amor como van gogh
[NO
JULGAMENTO DO OLHO]
no
julgamento do olho, lua e bola de gude tem o mesmo tamanho
na
ótica da alma afetada, o nada serve tanto quanto o tudo
na
surdez, trovão é lindo e nada mais
fofo
de artifício não tumultua cão
navegando
o mar talvez não seja tão bonito
lava
é ferida quando tato
cacto
é flor vez em quando
água
viva de longe é medusa
de
perto mijo ou uma espécie de ovo frito de e.t.
dois
corpos produzem mais incêndio que especulação imobiliária
fio
elétrico é o que liga tênis e anjo
não
há chuteira ortopédica que ajeite garrancho
não
há garrincha que não entorte a caligrafia
não
há guache que a gramática dome
osso
é duro, mas par cachorro é baba
gravidade
é questão de interpretação
como
um sorriso de ponta cabeça é uma expressão triste
[ TRÊS PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
PB | Amor e liberdade são o motor da poesia.
Quem faz poesia acredita nisso, independente do estilo. Tem que ter e querer os
dois pra se fazer uma. De alguma forma você quer ser livre, você tem algo a dizer.
E se você não ama o que faz, não há sentido em fazer. Poesia é o jeito como significo
o mundo, que me encontro nele, por inúmeras razões, mas principalmente porque é
o que mais amo fazer e porque acredito em liberdade, pra criação, pra viver. Pode
me chamar de romântico, só não me chama de rei de Roma.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
PB | Carla Diacov. Não tenho o que falar de
Carla sem ser o exagero que ela merece e ainda não sendo… Essa mulher é a maior
de todas as poetas de nossa língua. Minha maior influência. Sinto arrepio de lembrar
que ela pertence a essa época, do nosso lado, viva e potente, cada dia mais potente.
Junto à Stela do Patrocínio, Carla dá um novo sentido à poesia. As duas merecem
muito mais reconhecimento e um pedestal que alcance as nuvens. E ainda é pouco.
Muito pouco.
Arthur Bispo do Rosário sem
dúvidas é uma das figuras que mais me interessam na vida, esse ser que é 2 e 1000
em uma noite e n’outro dia o triplo, uma máquina pilotada por Pégasus, um santo
da criatividade que teve que caminhar pela terra e ainda deu a sorte-azar de pousar
no Brasil.
Stela do Patrocínio: já falei
um rato dela, mas ela é o reino dos bichos e dos animais, ela é poesia em carne
em cerne e sina, não dá pra separar, tudo nela é magia.
Leonora Carrington, Frida Kahlo,
Remedios Varo: as mulheres surrealistas que conheci numa exposição aqui em SP, eu
creio que em 2015. Fiquei impressionado com a criatividade e com a facilidade delas
pra caminhar, ou melhor, voar por diversas plataformas como esculturas e figurinos
que me tocam muito. Com a Frida, eu (e milhões de pessoas) tenho aquele carinho
a mais, principalmente por partilhar da relação osso-parafuso-parafuso-osso-cirurgia-parafuso-osso,
e também pela mesma razão que ela tem de não se considerar surrealista: “Nunca pintei
sonhos. Pintava a minha própria realidade.”
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas
nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto
na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido
de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento.
O que observas a este respeito?
PB | Nosso país é a voz de tudo, de todos. Mas
é uma voz de muito sangue. Temos sorrisos manchados de sangue e muito sorriso correndo
nas veias. Um lugar passional onde tudo é muito, do beijo pra guerra é uma campainha.
Povo bicho. A gente tende a ser denso, tenso, firme – “mas sem perder a ternura”.
Não sei quando dizer que o país foi ou é mais surreal, mais absurdo, mais sei lá
o que, mas que a televisão de 1980/90 que era um mix de Xuxa invocando o diabo/montando
num anão, seguido do Fofão e sua faca, depois yuyu hakusho, além da imaginação
(Twilight zone) e Linha direta antes de dormir, ajudou essa
juventude a entortar as ideias, é isso, é fato. As novas vozes aqui são piradas,
tem coisa repetida, claro que tem, mas a galera que compra a própria pira e joga
na banguela, independente do estilo, do movimento, se é sexy sem ser vulgar, ou
seja, o que for, é muito boa e merece muita atenção. Se deixar teria que ter umas
três páginas só pra citar quem acho foda. Tenho muito orgulho da nossa poesia, da
poetada do nosso país. ‘Tamo muito bem representados.
[ FOLHA DE VIDA ]
Pedro
Blanco (São Paulo, 1991). Nascido no sol de Touro. Resiste em São Paulo. Falhador
de poesia, pescador de peixe fora d’água e achador de causas perdidas. Usuário de
Rita Lee. Fundador e único membro do movimento barroso: vocês podem considerar que
tudo o que ele fala é meio Manoel de Barros ou tudo uma completa merda mesmo. Autor
de Inmôcodo (Edições Doburro, 2018).
*****
EDIÇÃO
COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista
convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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