sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1993 JOAQUIM BÜHRER


[ DEZ POEMAS ]

ORAÇÃO

ommm me proteja dos céus que caem raios e trovões me proteja de mim
santo agostinho meu filósofo caído me proteja de mim me proteja de ti
meu são jorge
meu são jorge me proteja das armas levantadas das pernas que derrubam me proteja são jorge das rasteiras
e que a chicoscience me protex dos micróbios bactérias analíticas nas mãos nos pelos no saco me proteja da aura pesada dos olhares grossos do mangue morto
meu santo sal minha vida meu beijo molhado seco me proteja até mesmo em pensamento
de todo todo todo todo o mal que eu me faço todo o mal que me entro de todos os meus tiros no pé meu santo expedito
das causas solícitas, me traga as ommm as paisagens me traga o jogo de cintura me traga a paciência me traga o pulso
meu querido
omm amem oxalá meu deus, que caiam vassouras que talheres espirem que parafuso empane quebre os espelho tudo
e nada em baixo da cama nada corrompa a alma o abrigo nada me faça desistir e que se eu desistir eu desista
santo ziper fecha meu corpo
santo lema fecha meus verso fecha meu ouro tolo meu alexandrino que não entre interferência que eu não escreva mais problema que
nunca saia da bença santo santo santo santo, pau
queima as agruras dessa babilônia
com seus 10conto pago na paulista eu me vou dormir tranquilo
tudo que é passagem que vai tudo que é que fique e que o mar me leve santa iemanjá
deus-cobra que habita o ventríloquo. que fale à beça


SOFREGUINHA

sinto uma inveja leve desse cara tomando Bavária no canudinho
Levíssima dor de cotovelo de quem junta mesada
da ponte Rio-Niterói da Rebouças tenho invejinha
do cabelo do Cristiano Ronaldo do Gil Cebola
tenho um ciuminho de todos os outros parças do Neymar
Cobiço de leve sua cama arrumada, te olhando deitar, te vendo fugir lençol acima eu tenho uma raivinha
do seu espelho matinal o primeiro a refletir ver solitária miragem sua tenho
um desejo pelo assento vazio na linha vermelha às 7 tenho
ciúme do seu post com 274 curtidas e 38 compartilhamentos seu poema amado e querido
sentimento palha
Pega fogo meu desejo, queria ter os baixos do teu queixo encher de beijos
sair correndo pelado cidade inteira me vê mas destoa qual
Ô inveja daquele passe do Cavani pro Suárez queria tanto ser parte de uma dupla dinâmica
de um trio parada dura. Ser um anexo de alguém Cris e Greg
Queria grama vizinho verde o comercial de margarina acordando lá em casa queria ter os gominhos da barriga do Diego Hypólito
uma cena poética beatnik uns amigos que morassem lá em casa e lavassem a louça
Oásis de pormenores
Queria tanto tanto tanto acorbatman rico mantedor de livros
Doar tudo ainda em vida filantrópico, ser citado em post alheio lembrado em aniversário
Queria ser aquele que no dia 1 de junho
Recebe stories que tem vários grupos de zap
nome de rua
Mil e uma notificações, altos retweets
ter ido em tantos shows quanto aquele cara da PUC ter tirado férias no guarujá sem
Garupa vazia
inveja de quem encosta a cabeça na janela do busão e nem pensa de tão bem resolvido
De quem come sem engordar
almoçar no McDonalds seu hambúrguer lixo de melhor qualidade
raivinha de leve de não ser seu @ número 1 de ter sido um beijo já foi
Raivinha mesmo, coadjuvante do meu roteiro, figurante na minha cena
lembrado pelas coisas que não devia
esquecido normalmente até pelas minhas costas
Ciuminho de quem fala mal
e nem é de mim;


VADE RETRO

conversei com o cão dia desses
de baixo da pia
naquele portal pro inferno que abre todos os dias lá pelo meio dia;
subiu o cheiro de enxofre e eu saí dá sala “quer saber? vou resolver essa fita” e fui lá com a cara e a coragem e muito puto porque puta merda que
sacanagem;
“eaí, vagabundo?” meti essa logo de encrenca;
e o chão se abriu, tudo avermelhou, chamas para todos os lados o fogo o mal o medo e lá ele o diabo no meio do trono sentado
cagando;
“chega aí” sussurrou
o cão é medonho;
tem olhos pequenos e nariz empinado;
baixei a bola e fui - cumprimentei co’a cabeça e parei logo em frente olhando no olho;
(puta zóio vermelho!)
“se liga aí!” ele me disse apontando co’dedo (dei um passo pra trás);
“não me desrepeita não” e peidou sonoramente, um peido infinito que lembrou mozart e a marcha fúnebre dos maçons um peido estranho e elegante e logo após isso veio o “tchuá”;
a merda caiu na água;
(imaginei que o diabo caga no ácido)
ele limpou com suavidade e pude ver que era neve dupla face com cheiro de rosas;
(deu pra ver a cara de satisfação do maldito!);
ele levantou do trono e foi lavar as mãos numa pia bonita que se materializou logo ali na frente dele mesmo e enxaguou umas três vezes aquela mãozona com unhas pretas e terríveis;
secou numa toalinha – e eu ali só olhando meio confuso mas tudo bem né o cara deve ser meio cheio de coisas pra fazer né e é melhor não desrespeitar como ele disse sei lá;
daí me chamou e duas cadeiras de praia apareceram e sentamos os dois um de frente pro outro, ele cruzou as pernas e os braços e ficou encarando;
“eaí?” eu disse;
“que papo é esse?” ele perguntou de fato realmente muito curioso;
“não sei não” eu falei já que realmente não tava sabendo;
daí ele desencanou a falar e falar e falar, contou que andam botando muito a culpa nele que tem uns caras falando que ele só faz maldade e eu disse “mas porra você é o cão né cara você só faz maldade” e ele concordou mas até chorou um pouco e percebi que era um momento oportuno, mandei logo a real “porque você abre essa porra de portal todo dia lá pelo meio dia?? vc fede cara tá foda!!” ele disse que no inferno era três da manhã que era normal que é coisa de fuso e sabe eu até que entendi aquele papo pareceu muito sincero;
mas já era meio tarde ele tinha umas torturas e eu faculdade o portal se abriu eu vazei e ele disse “volta mais cara vamos beber umas breja vamo combina” eu falei “opa pode deixar” e vazei meio queto sabe num é coisa que se vê todo dia;
sabe quando você responde meio que por educação? então foi mais ou menos isso que eu fiz, não queria ser cuzão com o cara né pô é o cão;
ficou só no blablabla mesmo porque toda vez que o portão abre eu vazo e vou bandejar mais ou menos por esse horário;
melhor evitar o contato;
conversei com o cão e foi só aquela vez;
não tenho muita paciência pra gente carente que tenta e provoca e fica no pé como se eu tivesse todo o tempo do mundo e o capa verde ainda teve as moral de me adicionar no facebook;
deixei lá no stand by uns três dias e só entro e olho não posto nada só pensando se aceito ou não;
na caixa ‘outros’ de mensagem tinha uma dele (eu não visualizei);
“eaí maluco tudo suave?? te achei por aqui… eaí vamo combina aquela breja??”;
até que um dia meio de saco cheio entrei lá e aceitei e já mandei essa “bora combinar”;
ele respondeu com um capetinha vermelho e um emoticom de sorriso;
eu mandei aquele da linguinha de fora;
o papo acabou aí;
graças a
Deus;


ANTIDADÁ N2

aproveita!!!
compre autores pela metade do preço
– promoção de última hora –
A Editora Tá Louca e largou os direitos
agora cada um que leia o que quiser de fabricação caseira
escrito a mão pelo seu autor escolhido
cada poema único e só seu a cada momento
disponível nas versões indie, clássica e bebedeira
alguns funcionam a vinho barato e outros precisam de Bunker
pacote de alimentação básica em qualquer modelo
um ano de combustível com a marca Café Pelé de fornecimento intensivo
garantia estendida por apenas uma nota de admiração ou comentário no facebook
quem der mais curtidas leva o leilão do tipo em excesso
os tais neo bukowskianos do último verão
que ainda estão escrevendo a mesmíssima coisa;




eu sei que coisas assim não existem
tipo cores de outros espaços
cores de nada
translúcidas como a alma humana
transparentes como a razão
guerra de tinta suplente
como botos de rosa ou burros quando fodem
mas cores entram em guerra entre si
quando se pintam ou não
o nada
o nada tem nada demais
mas tem tudo de menos
como branco e preto insones
sépias iluminattis
antigas fotos com luz e sombra
a cor de nada surrupia a noite
com seus devaneios do desconhecido
arrasando muros pintados de cinza
com suas destruições descoloridas
sem paleta


FOI LOKO

qual a chance de encontrar um amigo perdido em meio ao ônibus em meio ao caos e cair em são paulo e ver as pessoas como se fossem logo ali?
qual a chance da vida esquecer e permitir e trazer só o que é bom de uma forma irônica e esquisita?
qual a chance dum brother colar duma ponta acender dum raio cair duas vezes no mesmo
lugar?
qual pergunta eu me faço sozinho em frente ao espelho do quarto quando acaba o rolê e eu me vejo como sou sem as pregas sociais?

é estranho;
às vezes as pessoas te seguem na rua e cachorros são mais gente que um amor e a paranoia atinge um certo grau absoluto alto demais;
às vezes as noites são longas e as brigas intermináveis e os poemas açucarados que parece que falta alguma coisa no meio termo da problemática;
parece que a gente vive bem lento enquanto o ano passa inteiro e a projeção da existência adquire um outro ritmo na tela dos olhos castanhos;
e a gente se pergunta o porquê;
mas é que as coisas são assim incontroláveis e as palavras impossíveis tanto que é mais fácil achar um companheiro para beber do que alguém para trocar meia dúzia de ideias;
mas o ano passa e as lentes chegam e sempre aparece um maluco um cabeludo uma doidinha alguém da pá virada;
e essa pessoa fala dos astros e da política e dos poemas ou da confusa sensação que sentimos quando o vazio lateja;
ela te entende mesmo que superficialmente e a angústia melhora e parece que realmente falta pouco para sair desse buraco;
mas alguma coisa acontece no percurso rolê-casa trabalho-vida faculdade-vivência e o espírito se perde e vaga e não se reconhece mais;

foi loko pensar que essas coisas não se escrevem com k e que a linguagem formal é mais limitante que revolucionária;
que o rolê acabou antes que começasse e que o sol não nasceu que só veio a névoa estranhamente familiar e acolhedora;
que os malucos e doidos se atraem toda vez que um deles se sente sozinho e mesmo que a gente não pareça a gente se importa;
que uma garrafa de cerveja pode ser tanto um simulacro quando propriamente um pouquinho de felicidade líquida;
que desejar ano novo seja tão simbólico mas tão importante a ponto de alguém dizer “acredite, cara, acredite”;


NIRVANA COMPRÁVEL

o om
vibra e desliga e suplica que o zen budismo vá além do paz & do amor;
– sarvesham svastir babatur – o bem que vem em nome de tudo e todos pela simples moeda de dupla face da aceitação
ela o dinheiro do chakra, a economia do samsara inabalável
abalada
pelo desequilíbrio pelo fogo pelo cotidiano supra moderno
e a horda de samanas esculpiu as palavras sábias nas pedras do caminho
eles avisaram que não era no meio urbano não era no modo ocidental não era por ali;
sidarta caminhou solitário até encontrar o riso do buda, seguiu as pedras;
mas só encontrou a paz quando tornou-se o caronte brâhmane
shanti shanti shanti é uma balança de duas ogivas
é destruição mútua garantida
nós só estamos seguros porque homens andam armados e câmeras filtram nossas almas e porque morreremos antes de notar
que shiva só virá pelo fogo;
o dia tem todas as horas e é único mas não é presente
vivemos no limbo do quase futuro e quase escrúpulo mas nada indica calmaria se não o terno e a gravata sob 35 graus;
aceite o calor a crise a bomba o medo da morte a ogiva aceite a existência aceite e troque isso por meia dúzia dos seus últimos sorrisos;
seja o
asceta que ignora a jornada de trabalho e anda cego pelo vale da sombra da morte
o faquir desmedido ermitando como zaratrusta deitado sob a árvore dO Buda com a ergonomia duvidosa do tecido urbano encarado pelos sem-teto nas novas cidades
sobrevoando as nossas rezas infantis com seus jatinhos particulares e queimando por dentro
com uma boa dose de scotch ou de essência universal
e de luz divina que ninguém conheceu;
saia aos quatro ventos pregando a aceitação depois de comer no restaurante chique
diga ao pobre que não reclamar emitir boas energias e ranger os dentes em vez de xingar é satisfatório
cada um
no seu
lugar;
é o bushido diário a jornada do herói a humilhação cotidiana
só o tapa da realidade te põe no teu lugar no universo enquanto te acaricia com as pitadas do aceite
é melhor terceirizar sua culpa quando o travesseiro é inevitável e quando o seu condomínio é mais caro que a renda da população inteira residente nos prédios abandonados do centro
nas cascas vazias
nas favelas nos bairros nas
periferias
distantes;
a fé as suas fotos do insta com sinal de meditação a meia hora sentado agradecendo pela sorte e pregar o conhecimento interior vão resolver os malefícios do mundo
o amor o amor o amor o amor vai resolver os problemas do mundo;
mas o mantra mais próximo que posso ouvir solitário é só um disco da Tina Turner sobre mantras;
o Om vibra inaudível enquanto te ouço falar;


DES/CARPEM DIEM

abram As Flores do Mal no canto XII
leiam sobre o azul das vagas dos fulgores e dos escravos
leiam sobre a única ambição de decifrar ‘o segredo da dor a que ia desmaiar’
que anunciava Baudelaire na Paris de Haussman
a ressignificação dos lugares inconstantes
da utopia urbanística renovada e natimorta: O Parto
o nascimento
do dia que nunca teve um fim;

a realização da modernidade é um exercício de narrativa
que acabou no fim da história: o Estado
trata-se do nosso inimigo de longa data mais do que só/reformulado
o Estado de Bucolismo
a última rima de um movimento interno ao Capitalismo
que trouxe para sempre o Carpe Carpe Diem;
abram a antologia do Jorge de Lima no Mundo do Menino Impossível
onde lá detrás da igreja surge a lua cheia para chorar com os poetas
onde o Menino Impossível destruiu os brinquedos que os vovós lhe deram
e destruiu os Soldades de Chumbo de Moscou
acalentado por Mãe-negra Noite
o poeta moderno imerso n’Orfeu;

chega a hora de cruzar as linhas imaginárias
perder a perda de significado: o messias
Descascar a Cebola projetando a virtualidade da Utopia
Concretizar a crítica moderna e transpor a auto-significância abstrata
Romper Romper Romper Romper Romper a plenitude do dia eterno
Trazer a Noite, nascer o amanhã, passar uns anos, passear pelo parque
Literalmente VER a cidade que nasce & morre
comer-se pelas beiradas;

abram o coração amarelo no Frango Hieroglífico
o primeiro verso é o novo cirurgião: a aproximação da sombra no crepúsculo
é a dúvida crítica do dia do SEU amigo enguiçado
Neruda já apontou O medo do fim do dia, o medo da morte singular
O medo do Depois
a Fênix não nasce no coração incauto e sobressalente
mas não há como evitar o crepúsculo inevitável
ele vem
ele vem;

os poetas de hoje/niilistas: o idealismo rasgou suas vísceras
proíbem moralismos ou constituem formas
só a Estética marca o contexto temporal
no alto do dia eterno produzimos qualquer arte de qualquer tempo
no alto do medo do crepúsculo inventamos qualquer lanterna colorida
os poetas de hoje jazem bucólicos em seus sofás e computadores mofados e solitários
esvaziam suas mentes de parto e suprimem o Desejo que urge:
o Messianismo nosso de cada dia,
sejamos o SINAL
ó Falsos Poetas;

abram o Uivo no Primeiro Verso que sabemos de cor e embriagado
os expoentes da geração e a ladainha mortos nus loucura
Ginsberg que em 1955 depois da Grande Guerra sentiu os calafrios do Dia Eterno: o frio da ausência
onde Peiote e Marijuana e O Sexo são Frágeis
mas a fragilidade é uma arma contra o Vietnã Diário
e as nossas flores nos fuzis já não valem mais a distribuição de LSD
e ser Louco já não é o bastante
é preciso SER;

o Carpe Diem é uma mistura de hedonismo e sacrifício
a nossa compra diária é uma alma lavada no 5àsec
a Literatura rasgou o céu e viu demais ao longo das eras
abriu-se uma forma hedionda na camada de Ozônio
as nuvens se encontraram num canto qualquer
e a ausência do giro causada pelo superman de 1978
inverteu nossos passos em direção ao contrário:
Precisamos Perder O Que Perdemos
Ou Morremos: Whitman mandou o recado
“Soltem as fechaduras das portas & Soltem também as portas de seus batentes”
Arrombem, Arrombem, Arrombem,
não aproveitem o dia
Percam-se;


O ET PÚRPURA E SUA PLANTAÇÃO PROIBIDA

abri a janela e tocou um jazz
era meia noite e mesmo que eu quisesse não poderia entender que luz era aquela no meu quarto
a luz atrativa lembrou o sugo mugwumpítico dos meus três olhos - espera, três?
eu tinha me visto no espelho da lua
eram três olhos;
quando subitamente um alienígena púrpura atrapalhou o rolê
fumou um baseado a duas milhas de distância do periscópio da polícia, mas mesmo assim os vermes viram
e resolveram assar a carne bem aqui na frente;
fechei o olho da testa - o olho azul e bonito e brilhante
eu sou uma criança índigo na fase adulta e minha missão é encontrar matar e destruir o alien púrpura
antes que decole sua carruagem voadora e seus três cavalos caguem no espaço aéreo terrestre;
a merda atrapalha o trânsito de almas nebulantes e voadoras que adoram voar por aí em projeção astral;
é compreensível que o alien se vá antes que eu perceba, não gosto de prestar atenção ---
o jazz tocou e atrapalhou a minha
concentração;
não, não foram os iluminattis, foi o et púrpura - ele fumou o baseado (que diga-se de passagem fora muito muito muito bem bolado) e a erva verdinha podia ser sentida a milhas de distância daqui;
foi o sinal perfeito e os tiras logo sacaram “vamos averiguar o que esses putos tão aprontando”
e agora essa é a minha missão;
não era davis e nem ellington, o jazz era diferente-envolvente-cê-vai-ver e eu não tenho vitrola;
não foi e nem é o ed motta
nem a elba ramalho
nem o armandinho;
o ventania já tinha avisado naquele som bizarro sobre o gnomo e o diabo -
“tem um alien púrpura com sapatos vermelhos carregando uma pá de maconha por aí” - ele mocozou muito bem o resto da erva antes dos coxa pegarem ele de pau;
meu terceiro olho é segredo
FEDERAL;
ele dá uma potencializada na parada, a gente vê looooonge e distante - tipo os tiras e aqueles binóculos de bafômetro;
os malditos são capazes de sentir uma erva a milhas e milhas de distância
e sempre colam na roda pra pedir um pouco;
os tiras são foda;
mas olha só, fechei a janela, chega por hoje
o esquema é desgrudar o adesivo de nicotina do cotovelo e cagar e andar para o alien;
esse negócio de marijuana ainda vai botar muita gente em cana;
vou dormir, durma também, em projeção é mais seguro continuar esse papo;


IN MEMORIAN

eu te vi saindo da ambulância quase em coma dentro de uma maca e seus olhos esbugalhados vibravam entre pus e fome e medo e ácido lisérgico;
os bombeiros te tiraram de um emaranhado de mato-e-abelhas do qual você não pôde escapar;
sua presença ainda se fazia forte quando seu último suspiro esvaiu numa maca qualquer de hospital;
e na unidade de tratamento intensivo você respirou com ajuda e remédios inundaram suas vias neurais de drogas psicoativas;
em casa nós esquecíamos que a realidade podia ser tão dura ou que o mundo nos quisesse separados;
e te vi pela última vez num sonho inexplicável que antecedeu o dia da sua partida;
você se foi e eu mal tinha idade para entender o que isso significava num viés prático;
ou qual realmente era o preço que pagaríamos dali para frente em parcelas dolorosas e certeiras;
não houve nem um dia sequer desde então sem que eu me lembrasse do seu velho amigo arrebentando o cadeado de casa;

naquele dia você cozinhou bolinhos de chuva enquanto eu e meu primo nos sentávamos na mesa de jantar;
seu avental-cor-de-gasto ilustrava o quanto você amava preparar guloseimas;
e ouvimos sobre os causos de lobisomens e sacis e mulas-sem-cabeça e outras lendas;
você as jurava que existiam e que os homens-lobos apareciam buscar sal depois da noitada;
em frente a casa em que as suas orelhas bateram numa madrugada de lua cheia;
isso aconteceu quando o mané passou a noite trabalhando e seus filhos te fizeram ficar acordada;
eu senti que algo estava diferente naquele dia estranhamente pacato para uma quinta feira;
era dia de baile da terceira-idade e você partiria logo numa dança em valsa com seu grande amor;
você se foi e eu não soube exatamente para onde e nem porquê;
chorei com medo de nunca mais ver os primos e os tios e as tias e o vô;

nos domingos eu me irritava com seu falatório interminável sobre latim e poesia e piadas sem graça;
nunca vi alguém devorar um frango assado com tanta vontade e habilidade;
você me contava sobre os tempos de faculdade e o quanto é valoroso um curso de engenharia;
que política não era um negócio mas que os homens tinham seus interesses;
e que as vezes um macarrão ao sugo é tudo que um homem pode querer numa tarde ensolarada;
sua poltrona-cadeira ainda está aqui, toda remendada, e as vezes me sento nela;
e as vezes penso em dizer algo que me lembre da sua astúcia com as palavras;
ou do quanto o sangue forte correndo nas veias pode influenciar na sua personalidade;
sua presença se foi numa cama de hospital sem nem lembrar direito os nomes dos seus filhos ou quem você era;
as vezes me pergunto se naqueles dias alguma enfermeira ouviu um poema sobre a Ave-Maria;

nós deixamos de ser próximos há muito tempo;
talvez antes de existir consciência do que é ser próximo e porque a família é tão importante para uma criança em desenvolvimento;
ninguém teve culpa e eu ouso dizer que se tratou de um processo natural;
e um vale montanhoso e cheio de vida selvagem brotou entre nossos pensamentos antes que uma ponte sólida fosse construída;
quase dois anos atrás eu soube do que viria a ser a doença que mais vou odiar e temer pelo resto da vida;
evitei te visitar talvez por receio ou por ser incapaz de acreditar que algo tão ruim pudesse simplesmente ocorrer;
pensei que logo nos encontraríamos num bar e que no futuro cumpriríamos as formalidades de uma família conservadora;
como um baptizado ou casamento ou primeira comunhão ou formatura;
mas recebi uma ligação numa quinta feira e saí assim que pude para rezar ao seu lado numa cama de hospital;
eu estava arrependido e vou morrer arrependido por ter ficado tão longe;
levarei comigo a edição 66’ do batman e robin que seria o seu único presente meu em anos;


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

JB | Amor e liberdade me orientam numa práxis poética: práxis porque poesia não apenas representa, para mim, uma forma dotada de capacidade de enquadramento, movimento, observação & flashes ou grandes sacadas, mas sim um processo criativo, de ação direta e de apropriação direta sobre e pelas coisas que existem e que não existem. Por isso a liberdade e o amor são muito importantes: para que essa apropriação se dê no seu espectro mais puro e ao mesmo tempo mais real, mais preparado, mas sem tomar como verdade e inacabado o processo de viver e andar por esta terra. Fazê-lo sempre novo e sempre possível. Também por isso minha vida, minhas influências, e nosso mundo, nossa visão e possibilidade; um conteúdo-presença, que se faz contemplação e interação.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

JB | Drummond pelos retratos da realidade; Tristan pela possibilidade de brincar com seu sentido; Poe pela criatividade em cima da matéria; Lovecraft pela capacidade de lapidar um conto como quem escreve um relatório; Alan Moore por me trazer a magia como prática poética; Breton por me explicar segredos em metáforas; Piva por me dizer que é possível; Minchoni por me explicar na fala os segredos de recitar; Whitman por me abrir uma estrada; Ginsberg por despertar o interesse e servir como deus-louco; Lorca pela poesia posicionada; Maiakovisky pelas formas e letras e pela ação direta política e bem vinda; Márquez por me trazer de volta para o chão que piso com outros olhos; Palahniuk por me ensinar a escrever diálogos; Gaiman que me ensina a contar metáforas, causos e mitos; K. Dick por me deixar sempre em dúvida; T. S. Elliot pela estética e pelo voo da reinterpretação; Willer porque poucas vezes vi uma definição de amor tão bela; Mano Brown pelas rimas e pelo raio-x da realidade; Sabotage pelo talento e pela foto e pela rima e pela velocidade; Leminski pelos ruídos perdidos nas palavras; Haroldo por me abrir a porta da linguagem.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

JB | Muitos amigos tem tentado ‘dar nomes’ às ideias que preambulam nas cenas em que participo – que envolvem saraus e poetas de editoras independentes no eixo SC-SP-RIO, alçando voos a outros estados e direções, mas ainda muito forte e presente nesse contexto espacial. Entre nós a internet abriu caminhos de experimentação e comunicação muito intensos e relevantes: o que levou Tomaz Amorim a definir o momento como ‘Poesia de Internet’, num tom irônico e levado, mas provavelmente muito certo quando pensado no ‘meio’ onde nos encontramos e fazemos nosso rebuliço [pensando no pós-2008, meu momento de atuação poética]. Não, é claro, que isso anule @ poeta de criar longe e muitas vezes na negação desse mesmo meio. Talvez seja isso, em tempos de ironia, em tempos de efemeridade ou de máquinas/páginas que produzem mais poesia do que é possível ler. Mas talvez não. Talvez o espírito moderno do Walter Benjamin explique a desnecessidade de novos ‘movimentos literários’ como marcas d’água pela própria característica desses tempos inacabados: um carpe diem eterno, onde sempre vivemos no presente interminável – tempo da indústria e do capitalismo financeiro que Jameson pensa ‘romper significado e significante’. Ou talvez as confluências temporais presentes na estética e no estilo e nos significados adquiram aqui um caráter tão diverso e tão esparso que é difícil ou até mesmo impossível de enquadrar um movimento. Penso que essa discussão vai longe –


 [ FOLHA DE VIDA ]

Joaquim Bührer (São Paulo, 1993). Poeta. Professor de geografia, mestrando FFLCH/USP em geografia humana & urbana. Colunista/editor da Coluna.co. Baterista e pseudo violonista, poetinha publicado em: mallamargens, novos poetas, originais reprovados, carnavalhame, etc. Romancista de tumblr (seasickpoetry.tumblr.com), antidadaísta, sarauzista (Sarau Comunitário Itapeva) e agitador (@joatimbc). Contato: @joatimbc ou seasickpoetry.tumblr.com ou joaquim.campolim@usp.br.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019



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